Na maioria das vezes, o preconceito nos atrapalha a conhecer boas histórias, a descobrir pessoas interessantes, a vivenciar experiências novas e a ver a realidade com outros olhos. Eu acredito que, no fundo da nossa alma, todos nós possuímos algum tipo de preconceito. Se não temos uma opinião pré-concebida e negativa sobre o tema A e o tema B, provavelmente teremos sobre o tema C ou D. Isso é normal do ser humano, infelizmente. Calcamos nossa existência em cima de paradigmas criados ao longo da nossa existência e é muito difícil largarmos tais concepções no dia a dia.
Estou falando tudo isso porque tinha certo preconceito em relação a um livro. Ele estava na estante da minha biblioteca há muito tempo e eu não tinha coragem de lê-lo. Acho que ele repousou completamente fechado na minha prateleira por alguns anos (algo atípico para um livro, geralmente consumido em questão de dias ou semanas, no máximo em poucos meses). O nome dele é "Cândido" (L&PM Pocket) de Voltaire. Curiosamente, essa obra faz parte de uma coleção lançada pela Editora Abril em bancas de jornal com alguns clássicos da literatura mundial. Adquire a coletânea inteira e me pus a lê-la avidamente. O único livro em que não tive coragem de abrir foi justamente o Cândido.
Analiso agora o possível motivo desse meu receio em ler esta obra. Acho o preconceito a principal razão. O que me assustou foi ler o nome do autor na capa: "Voltaire"! Eu pensei comigo: "Jamais vou conseguir entender um livro deste grande pensador do Iluminismo francês" e "Essa publicação deve ser de difícil compreensão, pois Voltaire deve ser daqueles autores enigmáticos, profundos, quase inacessíveis e de difícil entendimento". Puro preconceito! Com esses dois pensamentos equivocados na cabeça, a consequência natural foi ter deixado o livro na estante por um longo tempo.
Essa situação durou até o dia em que não tinha nada de novo para ler em casa. Desesperado por uma novidade, comecei a revirar a estante até achar aleatoriamente "Cândido" em um canto empoeirado. Respirei fundo, tomei coragem, saquei a brochura do seu lugar e abri suas páginas. Comecei a ler...
"Cândido" é um livro excelente! Ele não é difícil como eu tinha imaginado inicialmente. Pelo contrário. Ele é de uma leitura rápida e divertida. Acredite se quiser! Dá para lê-lo em uma tarde. A história é ótima! Ela mistura aventura, ação, humor e crueldade com filosofia e reflexões existenciais (como a origem do mal nos homens e o papel de Deus no nosso confuso planeta). Os capítulos são bem curtos, tornando a narrativa ágil e leve. O livro é cheio de desgraças, com sucessões intermináveis de tragédias e desencontros e muita violência. Apesar dessas características poderem ter tornado a publicação pesada e desagradável, a forma como o escritor trabalhou seu texto tornou tudo muito leve e, surpreendentemente, divertido. Ao ler "Candido" nos sentimos acompanhando um filme cômico ou ao antigo programa "Aqui Agora" do SBT, com cenas de sangue, violência e sensacionalismo a todo o momento. A rapidez da história também é impressionante. Tudo acontece em uma velocidade de carro de Fórmula 1, não dando chances para enrolação.
Diz a lenda que Voltaire escreveu este livro em apenas três dias. Eu duvido. Publicado em 1759, o livro é curto (tem aproximadamente 130 páginas), mas é muito bem escrito e tem vários detalhes, inclusive ótimos diálogos. Por mais que tenha trabalhado sem parar, o autor não conseguiria aprontar tudo em apenas 72 horas. Ele deve ter investido um bom tempo para lapidar cada trecho da obra. Há também uma versão na qual Voltaire teria negado a autoria de "Cândido". O autor teria considerado a obra "uma brincadeira de colegial". Uma grande injustiça para esse clássico da literatura.
A história do livro, como o próprio nome da publicação indica, aborda a vida de Cândido. O jovem e bem afeiçoado funcionário do castelo de Vestfália é expulso do lugar onde mora e trabalha por beijar a jovem Cunegundes, filha do barão proprietário do castelo. Isso se passa já nas primeiras páginas da obra. O barão não aprova o gesto do rapaz. Assim, Cândido ganha o mundo, sendo obrigado a passar pela Guerra dos Sete Anos entre França e Prússia (1756-1763), pelo terremoto que devastou Lisboa (1755), por uma longa e perigosa viagem pela América do Sul e pela chegada ao Eldorado (um lugar construído com ouro). Enquanto vaga pelo mundo, o nosso herói tenta localizar sua amada Cunegundes, que também precisou abandonar o castelo onde vivia, pois ele fora invadido por criminosos.
Enquanto tenta se salvar no perigoso mundo onde vive e tenta localizar sua amada, Cândico conhece dois personagens incríveis: Pangloss e Martinho. Os dois homens, de opiniões e visões de mundo opostas, irão oferecer o embasamento filosófico na qual esta obra está ancorada. Vale a pena acompanhar atentamente os diálogos travados entre eles e Cândido.
Ler "Cândido", admito, foi uma ótima experiência. Com certeza, ele está entre os livros dos quais mais gostei. E isso quase foi atrapalhado por um preconceito bobo...
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