Nesse domingo, li mais um livro de Pablo Neruda. "Vinte Poemas de Amor e Uma Canção Desesperada" (Martins) foi a primeira grande obra do chileno. Publicada em 1924, ela foi escrita quando o poeta tinha apenas vinte anos de idade. Seu conteúdo está relacionado aos primeiros amores e, por consequência, as primeiras desilusões afetivas do escritor.
Nessa publicação, Neruda relaciona o erotismo do corpo feminino aos fenômenos da natureza. O amor inocente e puro do poeta parece invocar o mundo externo em uma perfeita comunhão estética. A representação dos sentimentos das primeiras relações amorosas de Neruda surge metaforicamente encenada pela fauna e flora local.
Assim, a solidão resultante da ausência da amada é comparável ao escurecer provocado pelo crepúsculo. Os beijos e os carinhos a dois são como a produção de mel pelas abelhas. A dependência atiçada pelo amor intenso é parecida com a necessidade de ar e de alimento pelos seres vivos. A doçura das partes do corpo da mulher é tão afrodisíaca para o homem como são as flores e o néctar das plantas para os pássaros. E os momentos carnais vividos com a outra metade são tão intensos como as tempestades no mar e as agitações do céu.
Abaixo estão alguns fragmentos extraídos dos poemas chamados de Amor.
"Ah vastidão de pinheiros, rumor das ondas quebrando,
lento jogo das luzes, solitária cabana
crepúsculo abatendo-se em teus olhos, boneca,
caramujo terrestre, em ti a terra canta!
Em ti os rios cantam e minha alma se perde neles
como tu o desejas e fazia para donde tu o querias".
"Silenciosa, minha amiga,
solidão do solitário desta hora das mortes
e cheia das vidas do fogo,
pura herdeira do dia destruído".
"Eis que manha chega de tempestade
em um coração do verão.
Como alvos lenços de adeus passeiam as nuvens,
e o vento os sacode com suas mãos andarilhas.
Incontável coração do vento
batendo sobre nosso silêncio enamorado".
"Recordas-te como era no último outono.
Era a boina gris e o coração em calma.
Em teus olhos guerreavam as chamas do crepúsculo
e as folhas caíam na água de tua alma.
Apegada em meus braços como uma trepadeira.
as folhas recolhiam tua voz lenta e em tua calma".
"Abelha branca zumbe ébria de mel em minha alma
e te estorces em lentas espirais de fumaça.
Sou o desesperado, a palavra sem ecos,
o que perdeu tudo, e o que tudo esvai".
Das poesias intituladas de amor, a que mais gostei foi a de número doze (os poemas são numerados de um a vinte). Confira-a na íntegra:
"Para meu coração basta-me teu peito,
para tua liberdade basta, minhas asas.
De onde minha boca chegará até o céu
o que estava entorpecido sobre tua alma.
É em ti a ilusão de cada dia.
Chegas como o orvalho das corolas.
Socava o horizonte com tua ausência.
Eternamente em fuga como a onda.
Eu falei que cantavas com o vento
como os pinheiros e como os mastros.
Como eles é alta e taciturna
e entristeces de pronto, como uma viagem.
Acolhedora como um velho caminho.
Te povoam ecos e vozes nostálgicas.
Eu despertei e às vezes migraram e fugiram
os pássaros que adormeciam em tua alma".
A poesia 15 foi posteriormente musicada por Vicente Bianchi e interpretada por Arturo Gatica.
Como toda poesia de amor juvenil, essas contêm o exagero e a extravagância do impulso do autor pouco contido e sem qualquer experiência de vida. Aí estão as principais qualidades e defeitos do texto. Em "Vinte Poemas de Amor e Uma Canção Desesperada" temos um jovem Pablo Neruda extremamente passional e platônico. Assim, suas poesias se tornam sinceras (percebe-se que vieram dos seus mais nobres sentimentos) e imbuídas de uma força arrebatadora (como são típicas dessa idade) - essas são as qualidades. Ao mesmo tempo, elas são infantis e completamente desvinculadas da realidade - aqui estão seus defeitos.
Por isso, a melhor parte do livro surge no final. Quando o escritor toma "um pé na bunda" da sua amada, ele escreve a tal canção desesperada que complementa o título da obra. Esse desfecho tem a profundidade da primeira parte, mas possui um tom realista e concreto que a outra não tinha.
"Abandonado como o impulso das auroras.
É a hora de partir, oh abandonado!
Sobre meu coração chovem frias corolas.
Oh sentina de escombros, feroz cova de náufragos!
Em ti se ajuntaram as guerras e os vôos.
De ti alcançaram as asas dos pássaros do canto.
Tudo que o bebeste, como a distância.
Como o mar, como o tempo. Tudo em ti foi naufrágio!
Era a alegre hora do assalto e o beijo.
A hora do estupor que ardia como um faro.
Ansiedade de piloto, fúria de um búzio cego
túrgida embriaguez de amor, Tudo em ti foi naufrágio!".
O livro é interessante. De rápida leitura, se gasta aproximadamente uma hora para lê-lo com atenção. Contudo, ele está longe de caracterizar a fase de maturidade e excelência de Neruda. "Ainda", livro lido há alguns dias, é uma obra muito mais rica e profunda (fora escrita nos últimos anos de vida do chileno). "Vinte Poemas de Amor e Uma Canção Desesperada" serve para termos uma noção do potencial que tinha o jovem Pablo Neruda no início da carreira. Ele estava, nessa altura, um pouco distante do poeta que seria condecorado como um dos principais do século XX.
É verdade que Neruda já possuía, nesse início de trajetória profissional, um talento enorme e suas obras já continham elementos e características que o definiriam como poeta: sentimentalismo exacerbado, o canto de amor à mulher amada, a criação de neologismos, os versos não metrificados, as rimas livres, a linguagem ousada e a citação da natureza para descrever seus sentimentos e os encontros amorosos.
Já é possível notar em "Vinte Poemas de Amor e Uma Canção Desesperada" o DNA de Pablo Neruda como poeta. Porém, para conhecermos o ápice da escrita desse autor, precisamos avançar na leitura dos livros produzidos durante a fase mais madura de sua vida. É com esse objetivo que começarei a ler "Cem Sonetos de Amor" (L&PM Pocket), sua obra mais conhecida e que será analisada em um post do Desafio Literário no dia 15. Não perca as próximas novidades sobre Pablo Neruda no Blog Bonas Histórias.
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