![O Estrangeiro Albert Camus](https://static.wixstatic.com/media/5801fd_3a1b84a5b1f04f2b87bc8a905ef79926~mv2_d_1528_2355_s_2.jpg/v1/fill/w_980,h_1510,al_c,q_85,usm_0.66_1.00_0.01,enc_auto/5801fd_3a1b84a5b1f04f2b87bc8a905ef79926~mv2_d_1528_2355_s_2.jpg)
O Desafio Literário de setembro começa justamente com a análise da obra ficcional mais famosa de Albert Camus, o autor que será estudado pelo Bonas Histórias nas próximas quatro semanas. “O Estrangeiro” (Record) não é apenas o livro mais importante da carreira do escritor francês nascido, em 1913, na Argélia. Ele também é considerado pela maioria dos críticos literários como um dos principais títulos da literatura universal. O jornal francês Le Monde, por exemplo, o colocou na posição número 1 de obra mais influente do século XX, à frente de clássicos como “Em Busca do Tempo Perdido” (Globo), de Marcel Proust, “O Processo” (Companhia das Letras), de Franz Kafka, “O Pequeno Príncipe” (Agir), de Antoine de Saint-Exupéry, “As Vinhas da Ira” (BestBolso), de John Steinbeck, “O Nome da Rosa” (Record), de Umberto Eco, etc. A revista brasileira Bravo, em 2007, foi mais sensata e listou “O Estrangeiro” como a vigésima sexta trama ficcional mais relevante da história. Independentemente de sua posição nessas listas, fica nítida a importância desta publicação para a literatura ocidental.
“O Estrangeiro” é a novela filosófica de Camus produzida em meio ao horror da Segunda Guerra Mundial. Neste livro, o escritor franco-argelino mistura críticas sociais e análises negativistas sobre o caráter humano a uma trama psicológica densa. Assim, temos a exposição do lado sombrio da alma dos homens e do mundo construído por eles. O protagonista desta narrativa é um rapaz inerte e insensível. Nada parece capaz de emocioná-lo, seja positiva ou negativamente. A morte da mãe, o casamento com uma linda namorada, o espancamento de uma mulher pelo amante, a liberdade de um cachorro, o assassinato banal de um jovem, a promoção no emprego e a condenação à morte são encarados como eventos banais por sua mente anestesiada.
Publicado em 1942, “O Estrangeiro” integra a trilogia de Albert Camus sobre o absurdo. Composta também por “O Mito de Sísifo” (Record), ensaio de 1942, e “Calígula” (Alianza), peça teatral de 1941, essa coletânea discute questões existencialistas através da exposição do absurdo. Ficam nítidos nesses trabalhos camusianos a crítica ao totalitarismo, o pessimismo exagerado, o vazio da condição humana, a brutalidade do mundo, a desilusão com a religião e a precariedade da alma humana. Esses elementos são, obviamente, influências diretas de um dos períodos mais sombrios da história humana, o do Entre Guerras. Em 1967, esta história ganhou uma adaptação cinematográfica. O longa-metragem foi dirigido pelo italiano Luchino Visconti (não confundir com um filme homônimo lançado em 2017, este baseado em um romance do britânico Stephen Leather).
![Albert Camus](https://static.wixstatic.com/media/5801fd_4229911ceec1454fb26ae329da7d59c2~mv2.jpg/v1/fill/w_900,h_605,al_c,q_85,enc_auto/5801fd_4229911ceec1454fb26ae329da7d59c2~mv2.jpg)
De certa maneira, naquele momento, Albert Camus se alinhava aos conceitos existencialistas de Jean-Paul Sartre, por mais que negasse isso depois. Os dois autores franceses se tornaram amigos por causa da publicação de “O Estrangeiro”. Sartre escreveu uma crítica muito elogiosa sobre a novela de Camus em um jornal parisiense, dizendo desejar conhecer o autor desta incrível narrativa. Assim, quando os dois se encontraram em uma festa, Camus fez questão de se apresentar ao autor de “O Ser e o Nada” (Vozes). Era o início de uma grande amizade que seria rompida na década seguinte por desavenças conceituais e ideológicas.
O motivo da briga entre eles foi o lançamento de “O Homem Revoltado” (Record), livro de Camus de 1951. Nesse ensaio, Albert afirmava que a única saída ao absurdo da condição humana era a revolta individual e não a coletiva, como proposto anteriormente por Sartre, partidário das crenças socialistas. Depois disso, os dois escritores nunca mais quiseram se falar. E há quem ache que as discussões políticas e ideológicas protagonizadas atualmente pelos brasileiros nas redes sociais, capazes de abalar amizades antigas, sejam eventos exclusivos do nosso tempo. Infelizmente, a intransigência à opinião discordante é um fenômeno muito antigo e presente em diferentes sociedades.
“O Estrangeiro” foi traduzido para meia centena de idiomas e continua sendo, ainda hoje, vendido em boa parte das livrarias dos países ocidentais. Quando Albert Camus recebeu o Nobel de Literatura, em 1957, ele foi apresentado pela Academia Sueca como o autor que produziu “O Estrangeiro”, desde aquele momento uma obra pertencente aos cânones. Ou seja, esta obra foi um divisor de águas na carreira do escritor franco-argelino. Fica difícil dizer se Camus seria condecorado com o prêmio máximo da literatura se não tivesse escrito esta novela. Porém, é inegável a sua elevação ao patamar dos grandes nomes da literatura a partir desta produção.
O enredo de “O Estrangeiro” se passa na Argélia, nesta época uma das principais colônias francesas da África. Meursault é o protagonista e narrador desta trama. O rapaz é um escriturário pacato e bastante calado. Ele leva uma vidinha sem qualquer emoção em Argel, a capital do seu país. Seu relato começa com o recebimento de um telegrama informando que sua mãe morreu. A senhora morava em um asilo em Marengo, cidade a oitenta quilômetros de Argel. Ela fora colocada neste lugar afastado pelo filho, que achava um fardo muito grande ter que cuidar de uma mulher idosa.
![Livro O Estrangeiro](https://static.wixstatic.com/media/5801fd_109cd8e2ce224735b0cd7537b88c4ccc~mv2_d_1880_1250_s_2.jpg/v1/fill/w_980,h_652,al_c,q_85,usm_0.66_1.00_0.01,enc_auto/5801fd_109cd8e2ce224735b0cd7537b88c4ccc~mv2_d_1880_1250_s_2.jpg)
A mensagem do falecimento da mãe não tira Meursault do seu marasmo típico. Mesmo assim, o jovem decide participar do velório e do enterro em Marengo. Para isso, viaja de ônibus para o interior do país. Lá, ele surpreende a todos, do porteiro ao diretor do asilo, por não chorar e, principalmente, por não ficar triste com o ocorrido. Sua desculpa é o cansaço pela viagem, que o deixou paralisado emocionalmente. De maneira fria, ele age como se nada de especial tivesse ocorrido.
De volta a Argel, Meursault retoma rapidamente sua vida regular. Em questão de horas, o rapaz esquece completamente da mãe. Ele inicia um relacionamento amoroso com Maria Cardona, uma antiga colega de trabalho. O casal vai ao cinema assistir a uma comédia já no dia seguinte ao enterro da mãe de Meursault. O protagonista da novela também faz amizades com dois vizinhos, Raimundo Sintès, um cafetão violento e desequilibrado emocionalmente, e Salamano, um senhor idoso que maltrata seu cão.
Algumas semanas mais tarde, a rotina de Meursault é quebrada por uma viagem de final de semana à praia. O rapaz viaja de ônibus com Maria e com Raimundo. A ideia do trio é passar uma tarde tranquila à beira-mar. Entretanto, Raimundo acaba envolvendo-se em uma briga feia com antigos inimigos de Argel, que o seguiram. Depois da confusão, Meursault decide caminhar sozinho pela praia. Durante o passeio, o jovem entra em delírio causado por uma insolação e acaba assassinando a tiros o desafeto de Raimundo. Preso em flagrante, Meursault é enviado para uma penitenciária até o julgamento do seu caso.
Na prisão, ele se comporta naturalmente, como se nada de especial tivesse sucedido. Sua frieza chama novamente a atenção de todos. O narrador da novela não entende o desespero do seu advogado nem a preocupação do promotor. Rapidamente ambientado à rotina do cárcere, ele passa os dias alegremente, sem temer seu futuro e sem se arrepender dos seus atos passados.
![Livro O Estrangeiro](https://static.wixstatic.com/media/5801fd_5639a0da6e5a47bb814d86f10674353f~mv2_d_1880_1253_s_2.jpg/v1/fill/w_980,h_653,al_c,q_85,usm_0.66_1.00_0.01,enc_auto/5801fd_5639a0da6e5a47bb814d86f10674353f~mv2_d_1880_1253_s_2.jpg)
“O Estrangeiro” é um livro curtinho. Ele tem pouco mais de 120 páginas. É possível lê-lo de uma vez só. Não gastei mais do que três horas para concluí-lo de ponta a ponta nesta antevéspera de feriado. A obra mais famosa de Albert Camus tem duas partes. Na primeira, acompanhamos a rotina de Meursault até o assassinato perpetrado na praia. Na segunda parte, o narrador-protagonista relata os dias passados na prisão e a espera pelo julgamento. Se a banalidade do cotidiano de Meursault deixa a primeira metade do livro um pouco lenta e com um tom enfadonho, os capítulos da metade final mergulham na complexidade psicológica da personagem principal. Aí temos, enfim, toda a profundidade dos conceitos de Albert Camus, o que deixa a novela mais interessante para o leitor.
Em “O Estrangeiro”, temos a teoria do Absurdo apresentada por meio de uma prosa ficcional. Nela, a existência humana é desprovida de sentido, de lógica e de propósito. A vida do homem é, na verdade, um grande vazio existencial, por mais curiosas que sejam as interpretações que se possam dar a ela. Daí surge a angústia, um sentimento inevitável do ser humano crente da sua inutilidade e da busca em vão por um motivo para viver. Segundo Albert Camus, o absurdo nasce do paradoxo de procurar uma razão em algo que não possui qualquer sentido.
Outra questão que chama a atenção nesta novela é o caráter inconsciente do crime praticado por Meursault. Ele matou um homem sem um motivo lógico. Agindo por impulso, como se a vida humana não valesse muita coisa, ele assassina friamente o inimigo de Raimundo. Tão impressionante quanto a frieza do ato em si é a maneira como o protagonista sempre encarou sua vida. A existência de Meursault é pautada pela apatia e pelo imobilismo. Nada é capaz de emocioná-lo, nem positiva nem negativamente. Sua vida é um fardo que ele carrega independentemente dos acontecimentos e do ambiente externo. Isso fica evidente em vários momentos da narrativa. Tanto a morte da mãe como a possibilidade de ser condenado à morte não o entristecem. Por outro lado, quando patrão o convida para se mudar para Paris ou quando Maria cogita se casar com ele, Meursault não esboça qualquer alegria.
A construção da personagem principal de “O Estrangeiro” é espetacular. Meursault (não sabemos seu nome, apenas seu sobrenome) é uma figura contraditória e bastante polêmica. A narrativa em primeira pessoa lhe é nitidamente favorável. O leitor acaba sentindo uma empatia natural pelo rapaz, por mais absurdos que sejam seus comportamentos e reflexões. Muito provavelmente isso não seria capaz de acontecer em um texto em terceira pessoa.
![Livro O Estrangeiro](https://static.wixstatic.com/media/5801fd_505981d529d24b1caafe5d00aab9e9cc~mv2_d_1794_1300_s_2.jpg/v1/fill/w_980,h_710,al_c,q_85,usm_0.66_1.00_0.01,enc_auto/5801fd_505981d529d24b1caafe5d00aab9e9cc~mv2_d_1794_1300_s_2.jpg)
Meursault nos faz recordar duas personagens de Fiódor Dostoiévski: Rodion Raskólnikov de “Crime e Castigo” (Editora 34) e o narrador anônimo de “Memórias do Subsolo” (Editora 34). A diferença é que o protagonista de “O Estrangeiro” não sofre de dor de consciência como Raskólnikov nem é retratado com tintas tão negativas como a personagem principal de “Memórias do Subsolo” (curiosamente, uma narrativa também em primeira pessoa).
De forma geral, Meursault simboliza a crise do homem da metade do século XX, uma pessoa apática, sem um propósito claro de vida, descrente em relação às instituições políticas, religiosas e sociais, sem sentimentos claros aos humanos (como compaixão e empatia, por exemplo) e desiludido quanto ao futuro. Mesmo assim, no final das contas, o protagonista da novela desponta como uma figura positiva aos olhos do incrédulo leitor, capaz de se purificar frente a cólera da vida e de ver alguma beleza em sua existência rudimentar. Essa questão fica mais nítida no desfecho da trama.
Apreciei também o humor que tangencia todo o livro de Albert Camus. São vários os momentos hilários em “O Estrangeiro”: o julgamento não se atém aos fatos do crime e sim ao comportamento social do acusado; a indignação do promotor ao saber que o preso não acreditava em Deus é maior do que a falta de um motivo para o assassinato; e a ausência de sexo na cadeia incomoda mais Meursault do que a falta de liberdade. Camus consegue construir um texto profundo e inteligente com sagacidade, quebrando com bom humor parte do drama da sua história (algo que faltou, por exemplo, nos livros de Dostoiévski citados no parágrafo acima).
A reflexão entre a liberdade e a condição humana marcou o pensamento existencialista europeu na primeira metade do século passado. Por isso, a importância de “O Estrangeiro”, ainda hoje um título clássico da literatura francesa e universal. O texto desta novela, assim como o conteúdo de quase todas as obras de Camus (principalmente seus romances e novelas), mistura trechos de uma narrativa ficcional com as observações filosóficas sobre a essência e o caráter dos homens. Dessa forma, é aconselhável realizar esta leitura com a atenção redobrada. Apesar de não ter um texto difícil à primeira vista, este livro possui muitas nuances que, muitas vezes, só são perceptíveis ao leitor em uma segunda ou terceira leitura.
![Albert Camus](https://static.wixstatic.com/media/5801fd_53612298b7834ffe9b3f0f6ebf10b3c1~mv2.jpg/v1/fill/w_980,h_623,al_c,q_85,usm_0.66_1.00_0.01,enc_auto/5801fd_53612298b7834ffe9b3f0f6ebf10b3c1~mv2.jpg)
O Desafio Literário deste mês começou com tudo, hein? Acredito que não poderíamos ter uma obra melhor do que “O Estrangeiro” para iniciar a análise da literatura de Albert Camus. O segundo livro do autor francês que será comentado em setembro no Bonas Histórias é “O Mito de Sísifo” (Record), ensaio lançado no mesmo ano que “O Estrangeiro”. As duas publicações integram a trilogia do Absurdo. O post sobre “O Mito de Sísifo” estará disponível na próxima segunda-feira, dia 10. Não perca!
Gostou da seleção de autores e de obras do Desafio Literário? Que tal o Blog Bonas Histórias? Seja o(a) primeiro(a) a deixar um comentário aqui. Para saber mais sobre as Análises Literárias do blog, clique em Desafio Literário. E não deixe de curtir a página do Bonas Histórias no Facebook.