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Bonas Histórias

O Bonas Histórias é o blog de literatura, cultura, arte e entretenimento criado por Ricardo Bonacorci em 2014. Com um conteúdo multicultural (literatura, cinema, música, dança, teatro, exposição, pintura e gastronomia), o Blog Bonas Histórias analisa as boas histórias contadas no Brasil e no mundo.

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Ricardo Bonacorci

Nascido na cidade de São Paulo, Ricardo Bonacorci tem 42 anos, mora em Buenos Aires e trabalha como publicitário, produtor de conteúdo, crítico literário e cultural, editor, escritor e pesquisador acadêmico. Ricardo é especialista em Administração de Empresas, pós-graduado em Gestão da Inovação, bacharel em Comunicação Social, licenciando em Letras-Português e pós-graduando em Formação de Escritores.  

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Teoria Literária: Elementos da Narrativa - 2 - Personagem


Elementos da Narrativa: Personagem

No mês passado, vimos aqui no Blog Bonas Histórias, o primeiro elemento da narrativa, o enredo. Hoje, na coluna Teoria Literária, vamos estender essa discussão para o segundo componente: a personagem.

Ao todo, são onze os elementos constituintes de uma narrativa ficcional (BONACORCI, 2018). Cada um deles deve ser estudado pelo analista literário em uma investigação de cunho acadêmico-científico. É impensável se fazer uma análise de uma obra, de um portfólio literário ou de um estilo narrativo sem contemplar esse conjunto de peças isolada e, depois, integradamente.

Para que sejam jogadas mais luzes sobre esse debate, vamos apresentar mensalmente, ao longo de 2019, cada um dos elementos da narrativa. Esta é a proposta central desta segunda temporada de Teoria Literária (na primeira, verificamos os tipos de análises literárias que podem ser feitas em um estudo científico e acadêmico). No mês que vem, por exemplo, será a vez de olharmos com mais atenção para o espaço narrativo. Em maio, por sua vez, nossas atenções se concentrarão no tempo narrativo. Ambos, espaço e tempo são, respectivamente, o terceiro e quarto elementos da narrativa (BONACORCI, 2018).

Depois dessa introdução que acabou se estendendo mais do que eu gostaria, vamos entrar de uma vez por todas no tema do post de hoje: a personagem.

Teoria Literária: Elementos da Narrativa - Personagem

A personagem ocupa um lugar central na análise da prosa romanesca (MOISÉS, 2014, p. 139). Ela é o ser fictício responsável pelo desenrolar dos acontecimentos da narrativa. Ou seja, é quem produz efetivamente as ações no interior das obras literárias e, por consequência, sofre os efeitos gerados pelos eventos da trama. Ao mesmo tempo, ela é uma invenção da mente do autor. Por mais reais ou verossímeis que pareçam, mesmo quando baseadas em pessoas do mundo concreto (fora da ficção), as personagens de uma obra literária são sempre seres ficcionais (GANCHO, 2014, p.17).

Vasco da Gama, o protagonista da epopeia Os Lusíadas, de Luís Vaz de Camões, é uma personagem fictícia quando inserida na literatura, apesar de estar associado a uma figura que existiu de verdade entre os séculos XV e XVI. O mesmo acontece com Dom João V e com padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão, em Memorial do Convento, obra de José Saramago, com Diogo Álvares Correia, em Caramuru, poema épico de José de Santa Rita Durão, e com Getúlio Vargas, no romance Agosto, de Rubem Fonseca. Uma vez dentro das páginas da ficção, todos eles se tornam figuras literárias.

Segundo Cândida Vilares Gancho:

A personagem é um ser que pertence à história e que, portanto, só existe como tal se participa efetivamente do enredo, isto é, se age ou fala. Se um determinado ser é mencionado na história por outras personagens, mas nada faz direta ou indiretamente, ou não interfere de modo algum no enredo, pode-se não o considerar personagem. Bichos, seres humanos ou coisas, as personagens se definem no enredo pelo que fazem ou dizem, e pelo julgamento que fazem delas o narrador e as outras personagens (2014, p. 18).

As personagens podem ser classificadas de três maneiras distintas: (1) de acordo com o papel que desempenham na trama, (2) quanto ao dinamismo de suas características ao longo da narrativa e (3) em relação às suas características básicas. São esses os aspectos que vamos analisar a partir de agora.

1) Classificação de acordo com o papel desempenhado no enredo:

As personagens de uma narrativa, segundo o papel desempenhado por elas na trama ficcional, podem ser classificadas como protagonistas, antagonistas ou figuras secundárias (GANCHO, 2014, p. 18-20).

1.1) Protagonista:

Os protagonistas são as personagens principais do enredo. Para identificar a quem recaí o protagonismo de um romance, é preciso avaliar antes o conflito existente na obra. As personagens principais são aquelas que possuem desejos que serão impedidos ou dificultados pelos antagonistas, gerando os conflitos centrais das tramas. A relevância dos choques de interesses entre protagonistas e antagonistas e a complexidade de suas resoluções são o que acabam justificando (ou não) a produção dos materiais literários (pelos escritores) e atiçando (ou não) a curiosidade de leitura da narrativa (por parte dos leitores).

O protagonista pode ser do tipo herói (quando ele possui características superiores às de seu grupo, destacando-se positivamente) ou do tipo anti-herói (quando possui características iguais ou inferiores às de seu grupo, sendo marcado pelas qualidades negativas). Assim, nem todos os protagonistas são figuras certinhas e elogiáveis do ponto de vista ético e moral.

Peri, de O Guarani, romance romântico de José de Alencar, Gabriela, de Gabriela, Cravo e Canela, livro de Jorge Amado, e Aquiles, de Ilíada, epopeia de Homero, são típicos exemplares de protagonistas heroicos da literatura. Por outro lado, Paulo Honório, de São Bernardo, romance de Graciliano Ramos, Macunaíma, de Macunaíma, livro de Mário de Andrade, e Dom Alonso Quixano, de Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, são classificados como protagonistas do tipo anti-herói.

1.2) Antagonista:

Os antagonistas são as personagens que se opõem aos protagonistas, atrapalhando as ações e as pretensões desses. São, portanto, os responsáveis por provocar o estabelecimento do conflito que rege a trama. Os antagonistas possuem geralmente características opostas às dos protagonistas, sendo chamados normalmente de vilões. Isso não quer dizer que o antagonista terá sempre predomínio de características negativas, pobreza de caráter ou uma péssima moral.

Em Memórias de um Sargento de Milícias, romance de Manuel Antônio de Almeida, o major Vidigal, uma mistura de delegado e de juiz, é quem exerce o papel de antagonista. Apesar disso, ele possui mais características positivas do que o próprio protagonista, Leonardo, um típico anti-herói que vive aprontando arruaças e pequenos crimes pelo Rio de Janeiro.

1.3) Personagem Secundária:

As personagens secundárias, também chamadas de coadjuvantes, são aquelas que possuem menor importância para o enredo do romance. Elas aparecem de maneira pontual, ocasional ou de forma tímida. Geralmente, não provocam, propositadamente, significativas alterações na trama. As personagens secundárias comumente desempenham o papel de ajudante dos protagonistas e dos antagonistas, sendo, portanto, figurantes na narrativa.

Em Navalha na Carne, livro de Plínio Marcos publicado após a peça teatral homônima ter sido censurada pelo governo militar brasileiro na década de 1960, Veludo é a personagem secundária da trama. Apesar de sua atitude ter precipitado a violenta discussão travada entre as personagens principais, sua função durante o enredo é de coadjuvante. O desprezo e a violência de Vado (o antagonista) por Neusa Sueli (a protagonista) eram tão fortes e intensos que sua fúria teria surgido, uma hora ou outra, mesmo sem o roubo do dinheiro realizado por Veludo.

2) Classificação quanto ao dinamismo de suas características

Quanto ao dinamismo das características das personagens, elas podem ser classificadas como planas ou redondas (MOISÉS, 2014, p. 139-142).

2.1) Personagens Planas:

As personagens planas são aquelas que mantêm suas características, seus comportamentos e suas crenças de maneira uniforme durante todo o romance. Ou seja, elas não mudam nem se transformam ao longo da trama. Normalmente, são personagens com um número limitado de atributos, facilmente identificáveis pelo leitor. Por isso, pode-se dizer que são bidimensionais, dotadas de altura e largura, mas sem profundidade. As personagens planas são tradicionalmente pouco complexas psicologicamente e dividem-se em tipos e caricatura.

O tipo é a personagem plana reconhecida por suas características típicas (daí o seu nome). Essa personagem possui contornos bem peculiares de um grupo conhecido da sociedade. São, por exemplo, o padre da paróquia conservador, o empresário ganancioso, a dona de casa pacata, as comadres fofoqueiras da cidade pequena, o político inescrupuloso, a moça bonita, mas fútil, etc.

A caricatura é a personagem plana reconhecida por suas características ridículas e um tanto exageradas. Essa figura está presente, normalmente, nas histórias de humor. O Analista de Bagé, criação de Luis Fernando Veríssimo, é um exemplo de caricatura, pois exagera e ridiculariza, ao mesmo tempo, duas figuras: o psicólogo freudiano e o gaúcho másculo. Assim, o Analista de Bagé é um psicanalista com um estilo de trabalho autointitulado "bem gaúcho". Nesse caso, o "estilo gaúcho", segundo o autor, é sinônimo de postura machista, violenta e rude. Conselheiro Acácio, de O Primo Basílio, romance romântico de Eça de Queiroz, é o típico burocrata mais interessado em bajular os poderosos e em passar a imagem pretensiosamente intelectual de si do que de trabalhar duro ou de transmitir alguma informação relevante para seu interlocutor.

2.2) Personagens Redondas:

As personagens redondas são aquelas que não mantêm suas características, seus comportamentos e suas crenças durante o romance. Elas mudam ou se transformam ao longo da trama. Normalmente, são personagens com uma maior complexidade do que as personagens planas, adquirindo uma maior dimensão. Possuem tridimensionalidade. Afinal, além da altura e largura, também apresentam profundidade.

Para se fazer uma descrição completa e detalhada de uma personagem redonda, é preciso analisar todo o romance. Afinal, a personagem do início da narrativa é completamente diferente da do final. Além disso, dependendo da situação, ela pode se comportar de um jeito totalmente diferente (muitas vezes contraditório).

Um bom exemplo de personagem redonda é Léa Delmas, protagonista de A Bicicleta Azul, obra mais famosa da francesa Régine Deforges. A Léa do início do romance é uma menina ingênua de 17 anos, tola, mimada, fútil, vaidosa e desinteressada pela política do seu país. Além disso, é extremamente provinciana e virgem. A Léa do final do livro é uma jovem de 18 anos, madura, idealista, chefe de família e extremamente politizada. Também possui várias experiências sexuais e é engajada socialmente, tendo viajado pela França em meio à Segunda Guerra Mundial.

As personagens redondas dividem-se em caracteres e símbolos. As personagens caracteres possuem uma acentuada complexidade, característica que vai se acentuando cada vez mais durante a obra, tornando-se insolúvel seu conflito. Um exemplo disso é Édipo, protagonista de Édipo Rei, peça teatral de Sófocles. Qual poderia ser o desfecho para uma personagem que matou o pai e se casou com a mãe que não fosse o suicídio, a automutilação ou o exílio? Difícil imaginar um desenlace diferente desses para um protagonista tão sofrido e que se considera culpado pela desgraça de sua vida.

As personagens símbolos, por sua vez, ultrapassam as condições humanas, atingindo o status de transcendentalismo. Elas adquirem profundidade psicológica incomum e colecionam feitos inimagináveis, que surpreendem o leitor. Suas ações rompem com a linearidade da trama e provocam impactos inimagináveis na história. Diadorim, personagem de Grande Sertão: Veredas, romance de João Guimarães Rosa, é um ótimo exemplo de personagem redonda do tipo símbolo. Seus comportamentos contraditórios (Diadorim é um jagunço meigo, limpo, educado e carinhoso, mas ao mesmo tempo, é um rapaz inteligente e idealista que não esconde sua coragem, sua violência, seu autoritarismo e seu ciúmes doentio pelo colega) só podem ser explicados pelo desfecho surpreendente dado por Guimarães Rosa.

3) Classificação em relação às características básicas

Outra maneira de classificar as personagens é por suas características básicas. Tradicionalmente, os seres ficcionais são descritos por cinco características: as físicas, as psicológicas, as sociais, as ideológicas e as morais (GANCHO, 2014, p. 21-24).

As características físicas incluem corpo, voz, gestos e roupas. É importante compreender que uma característica física só é importante quando ela é decisiva para o desenvolvimento da trama ou para a constituição da personagem. Por exemplo, as características físicas de Brás Cubas, de Memórias Póstumas de Brás Cubas, romance de Machado de Assis, são um tanto irrelevantes para o leitor e para a história. Por outro lado, entender a sensualidade do corpo de Gabriela, de Gabriela, Cravo e Canela, livro de Jorge Amado, é fundamental para entender a personagem, suas relações com as demais pessoas e os acontecimentos da obra.

As características psicológicas relacionam-se à personalidade e aos estados de espírito das personagens. Bento Santiago, narrador de Dom Casmurro, romance realista de Machado de Assis, era extremamente ciumento, enquanto Sérgio, narrador de O Ateneu, romance naturalista de Raul Pompéia, era inseguro e medroso.

As características sociais são aquelas que indicam a classe social, a profissão, as atividades sociais e políticas, o poder financeiro e a posição hierárquica do indivíduo em uma comunidade. Fabiano, protagonista de Vidas Secas, clássico de Graciliano Ramos, é um sertanejo pobre e analfabeto. Ele está em constante migração, em uma busca obstinada por uma vida melhor para sua família. Com isso, acaba sendo explorado pelos fazendeiros nordestinos. Para completar, é alvo da violência policial. Por outro lado, G.H., protagonista do monólogo A Paixão Segundo G.H., de Clarice Lispector, é uma socialite carioca que não trabalha e passa os dias na cobertura do seu apartamento divagando sobre a vida.

As características ideológicas referem-se ao modo de pensar e de ver o mundo das personagens. Incluem, aqui, a filosofia de vida, as opções políticas e as crenças religiosas dos indivíduos ficcionais. Policarpo Quaresma, personagem central de Triste Fim de Policarpo Quaresma, romance de Lima Barreto, é um homem nacionalista e apaixonado pelo Brasil. Florípedes Madureira, protagonista de Dona Flor e Seus Dois Maridos, uma das obras mais famosas de Jorge Amado, é uma mulher profundamente religiosa e crente no sagrado poder do casamento. Por isso, ela dá muita importância à fidelidade conjugal, não concebendo trair o marido por nada neste mundo.

E, por fim, temos as características morais. Elas remetem aos julgamentos feitos pelos leitores, pelo narrador ou pelas outras personagens da trama em relação à bondade, à honestidade ou à moralidade de uma pessoa dentro da narrativa. Assim, as personagens podem ser vistas como sendo boas ou más, honestas ou desonestas ou morais ou imorais. Essas definições, obviamente, dependem do ponto de vista adotado. Madalena, a antagonista de São Bernardo, romance de Graciliano Ramos, é vista pelo narrador, seu marido, como uma mulher pouco confiável, promíscua, desinteressada pela fortuna da família e extremamente fútil. Ela é descrita também como alguém que se preocupa com coisas banais, como a educação dos filhos dos funcionários da fazenda e o bem-estar das pessoas pobres. Obviamente, Madalena é vista de outra maneira pelo leitor e pelas demais personagens do romance. Ela é uma mulher boa, altruísta, socialmente-responsável, honesta, fiel e muito generosa. Portanto, as características morais de uma personagem não devem ser descritas imediatamente, sem uma grande investigação por parte do analista literário.

Este foi o debate sobre as personagens ficcionais. Espero que você tenha gostado. No mês que vem retornamos à coluna Teoria Literária para apresentar a discussão sobre o terceiro elemento da narrativa: o espaço narrativo. Não perca a continuação desta temporada de Teoria Literária, uma exclusividade do Blog Bonas Histórias. Até lá!

Bibliografia:

BONACORCI, Ricardo. Análise Literária dos Romances de Rubem Fonseca - Investigando a Nova Literatura Brasileira. Projeto de Iniciação Científica. Varginha: Centro Universitário do Sul de Minas (UNIS-MG), 2018.

GANCHO, Cândida Vilares. Como Analisar Narrativas. 9a ed., Série Princípios, São Paulo: Ática, 2014.

MOISÉS, Massaud. A Análise Literária. 19a ed. São Paulo: Cultrix, 2014.

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