Ao olhar pela janela do ônibus, fiquei surpreso com a movimentação intensa no lado de fora. Vários veículos, na maioria caminhões, percorriam a Via Dutra nos dois sentidos. Em contraste ao trânsito pesado daquele início de tarde, o cenário à margem da estrada era de um bucolismo acachapante. As construções cinzentas das cidades de São Paulo e de Guarulhos tinham dado lugar ao mato. Pelo verde das árvores e do gramado na beira do asfalto, já tínhamos passado o centro de Arujá há algum tempo. Contudo, não conseguia precisar, pela vista da janela, aonde o ônibus e eu estávamos.
Mergulhado em pensamentos turbulentos, não havia reparado, até então, que deixáramos a rodoviária nem que seguíamos impassíveis para São José dos Campos. O balançar suave do veículo me ninara. Pouco a pouco a realidade nua e crua de minha vidinha foi se impondo sobre a letargia, a introspecção e o mutismo que me dominara por um período incalculável.
De tão imerso que ficara no mundinho íntimo de minhas angústias mais severas, não conseguia, agora, nem ao menos me lembrar do que havia feito desde a saída do café da Rodoviária do Tietê. Só me recordava de três coisas: caminhar até a plataforma de embarque, dar as malas para o motorista colocar no bagageiro externo e me sentar na poltrona. Com exceção dessas cenas, nada mais vinha à minha memória. De certa forma, me parecia uma sorte danada eu não ter entrado no ônibus errado. E, de repente, acordei de um longo sono de olhos abertos. A sensação é que um estalar de dedos tivesse me trazido a consciência de volta.
De tão abalado que tinha ficado com a possibilidade de não conseguir entregar o livro para a editora do Paulo, acabei me esquecendo até de dar uma passadinha na livraria antes de embarcar. Onde já se viu viajar de ônibus e não ter nada para ler no caminho?! Não é preciso dizer que algo assim, para mim, era uma heresia das mais cabulosas. Desacreditando que poderia ter cometido um erro tão grosseiro, um pensamento novo me pegou de supetão: será que eu não teria comprado uma revista ou um livro, mas não estava me recordando? Empolgado com essa possiblidade, comecei a procurar ao meu redor uma publicação. Infelizmente, não havia nada perto de mim com essa finalidade. Em minhas mãos, havia apenas uma garrafa de água ainda lacrada.
Foi no instante em que tirei os olhos da janela e coloquei-os pela primeira vez dentro do ônibus que pude notar a calma que reinava no interior do veículo. De onde estava, mais ou menos na metade do carro, não dava para ouvir nenhuma conversa ou barulho. Os passageiros das fileiras da frente ocupavam aproximadamente metade dos assentos disponíveis e pareciam aproveitar o silêncio para tirar a siesta. A porta fechada que dava acesso ao motorista nos deixava inacessíveis, como se habitássemos um aquário.
Só após ter procurado os inexistentes livros e revistas e de ter ficado alguns minutos olhando para frente, desloquei meu campo de visão para o lado direito. E, neste momento, reparei que havia uma passageira sentada na poltrona vizinha, junto ao corredor. Era uma senhorinha com uma fisionomia simpática, do tipo que acolhe os mais necessitados por simples caridade. Com o cabelo ruivo bem armado, roupas de madame chique e olhos vívidos, ela devia estar me observando curiosa há certo tempo. Não pude esconder a surpresa que tive quando notei sua presença.
– Problemas, meu rapaz? – sua voz tinha um ar maternal de quem capta os problemas alheios sem muito esforço. Ou ela devia ter algum poder telepático ou mesmo mediúnico. Refletindo melhor, talvez fosse a minha fisionomia a culpada por entregar o meu caos interno.
Balancei a cabeça afirmativamente e forcei um sorriso. Queria que ele soasse sincero e empolgado, mas tenho dúvidas se ele não saiu na verdade tímido e receoso.
– Quem não os tem, não é verdade? – ela prosseguiu com uma amabilidade natural – Só espero que os seus não sejam do tipo que não possam ser resolvidos. Porque se ainda forem resolvíveis, não precisamos nos atormentar tanto.
Pensei em suas palavras. E não era que elas tinham razão! Nenhuma das minhas preocupações eram insolúveis. Se analisasse bem a situação, talvez eu estivesse procurando pelo em ovo. Quem disse que eu não poderia entregar uma obra de qualidade para os meus contratantes, hein? Sempre fizera isso. E por que dessa vez haveria de ser diferente? Instantaneamente, senti uma enorme paz de espírito, que refletiu no aumento considerável do meu sorriso.
– Obrigado. A senhora tem toda a razão. Talvez eu esteja mais preocupado do que deveria – ri em um misto de timidez e de arrependimento por ter sido tão besta.
– Agora que parece mais calmo, diga-me: o que você faz da vida? – ela retribuiu o sorriso que estava recebendo.
Fui responder, mas minha voz se calou subitamente. Algo veio de dentro de mim e secou as cordas vocais. Minha feição deve ter mudado para uma grande cara de interrogação. O que dizer: trabalho com mudanças ou sou escritor? Difícil definir tão de bate-pronto.
Confesso que minha reação instintiva foi falar a primeira alternativa. Afinal, era assim que eu respondia a essa questão há anos. “Eu faço mudanças” saía quase que automaticamente. Porém, eu estava agora atuando como escritor. Qual o problema, então, de responder a segunda opção? Nenhum! Havia mudado de profissão e precisava anunciar essa transição algum dia. Ou talvez estaria eu tendo apenas uma recaída literária, enquanto meu destino fosse carregar as bugigangas dos outros por toda a vida?
Em questão de segundos, meus medos mais íntimos afloraram novamente, dominando-me outra vez. Senti-me desnudado pelo olhar traiçoeiro de alguém que nem me conhecia e já me atirava contra a parede com questionamentos tão (in)sensíveis. Quem era aquela inquisidora desalmada para ficar me interpolando assim?!
– Qual é a sua profissão? – sua insistência me fazia lembrar das mais cruéis operadoras de caixa dos cafés paulistanos.
Desviei o olhar da senhora, voltando-me para a paisagem da janela a minha esquerda. O cenário da estrada era mais reconfortante e seguro. Não sabia mesmo o que responder. Talvez as preocupações que acalentava estivessem ligadas a esta questão aparentemente tão banal. Se me fingisse de surdo, será que ela pararia de falar comigo?
– Sabe, meu amigo, é perfeitamente normal a pessoa não conseguir definir qual é a sua missão de vida – ela prosseguiu indiferente ao meu silêncio, falando agora com as minhas costas – Há quem passe uma vida inteira sem descobrir suas verdadeiras habilidades profissionais. Outros acabam sucumbindo aos desafios na hora da mudança de carreira. E tem também um monte de gente que sabe o que deseja, mas nunca descobriu como chegar lá. Eu mesma já passei por isso.
A última frase foi a responsável por fazer meu corpo retornar involuntariamente para a posição em que pudesse ver seu rosto. De um segundo para outro, a janela não me parecia nem um porto seguro para contemplação nem um lugar tão interessante para meditação.
– Até meus quarenta anos, eu era bioquímica. Trabalhava em um laboratório de pesquisa em uma multinacional de bens de consumo e tinha uma vida estável. Sabe como é: bom emprego, situação financeira invejável, casamento feliz e filhos saudáveis. Mas tinha algo que me incomodava há anos e eu não sabia o que era. De alguma forma, esse sentimento me acompanhava desde os trinta. Eu só fui entender que o meu sonho era ser psicóloga quando meu marido brincou comigo. Em uma viagem que fizemos para a praia, ele falou: “Para uma bioquímica, você carrega muitos livros de Psicologia. Você não seria uma psicóloga frustrada?”.
– Na hora fiquei brava – ela continuou sem perceber que tinha transformado nosso diálogo truncado em um monólogo fluído – Ser frustrada não combinava comigo. Por outro lado, eu queria mesmo ser psicóloga, apesar de não ter cogitado essa possibilidade até aquele comentário despretensioso do meu marido. Daria um braço se preciso para trocar o laboratório por um consultório. Como eu queria deixar os problemas da empresa de lado e cair de cabeça nos problemas pessoais de possíveis clientes.
Entendi o que ela sentia. Eu também faria qualquer coisa para largar as mudanças e mergulhar de vez na literatura. Isso é, se eu fosse remunerado por isso, né? Porque trabalhar para os bacanas da editora e não receber pelos serviços prestados não estava nos meus planos.
– Sabendo no que eu queria trabalhar, passei a analisar qual a área da Psicologia que mais me encantava. Uma vez identificado o que desejava fazer, o problema mudou de lugar. Como migrar para outra profissão sendo casada, com três filhos adolescentes e pré-adolescentes e tendo uma carreira bem-sucedida em outro campo de atuação? Nesta hora, o desafio passou a ser como fazer e não mais o que fazer.
Talvez essa fosse minha angústia naquele instante. Apesar do meu longo silêncio, minha mente fervilhava. Eu sabia que queria ser escritor. Pelo menos lá no fundo da minha alma, eu sabia. Porém, não entendia como faria a transição de carreira. Como iria adquirir, neste novo ofício, a estabilidade e a competência que já havia conquistado em minha primeira profissão?
Porque nas mudanças, admito sem falsa modéstia, eu era muito bom. Eu não apenas fazia o transporte dos móveis como o Raul, o Peixoto e o Álvaro. Eu fazia bem todas as etapas desse serviço. A Rachel não abria mão de mim na hora da pré-mudança (a parte de embalar tudo direitinho para não haver quebras ou avarias) e do pós-mudança (a arrumação de tudo na casa do cliente). Se eu não tinha a força braçal dos meus colegas, possuía, por outro lado, a atenção e o cuidado necessários para deixar os clientes bastante satisfeitos. Será que um dia isso também aconteceria em meus projetos editoriais?!
– Para responder à pergunta do que fazer, devemos seguir o coração. Já para a pergunta de como fazer, aí devemos agir racionalmente. A criação de um planejamento de atividades minucioso e completo é condição sine qua non para o profissional que deseja ser bem-sucedido em um novo campo de atuação.
Quando ela usou o termo planejamento, minha cabeça fez um nó. Quase explodi de excitação. Eu estava viajando para São José justamente para escrever um livro sobre esse tema e a passageira ao meu lado no ônibus discorria sobre esse assunto com a legitimidade de um guru. Suas palavras não soavam como um discurso piegas de autoajuda. Não! Elas eram certeiras, fruto da experiência e da sabedoria, e se encaixavam perfeitamente no que eu estava sentindo. Eita mundo pequeno este, em que tudo parece estar conectado. Estaria o universo conspirando ao meu favor? Pela primeira vez naquele dia, os ventos começaram a soprar na direção correta.
– O plano para me tornar uma psicóloga passou por ingressar na faculdade e, depois, realizar algumas pós-graduações. Fiz também trabalhos acadêmicos sobre Psicologia Infantil, minha grande paixão. Para isso, precisei fazer sérias mudanças em minhas rotinas familiar e profissional. Aí está justamente a importância do como. Em alguns casos, o mais difícil é a pessoa descobrir o que fazer. Uma vez identificada a profissão ideal, a maneira de viabilizá-la vem naturalmente. Foi isso o que aconteceu comigo. Demorei muito mais para descobrir o que queria fazer do que como fazer. Em outros casos, a pessoa até sabe, sem grandes complicações, o que ela deseja realizar. O difícil é viabilizar suas pretensões, entender como fazer para atingir o patamar sonhado na nova profissão.
Não é que fazia sentido tudo o que ela falava! Eu queria ser escritor há bastante tempo e até tinha feito um planejamento informal para me tornar um. Fiz faculdade de Letras, corri atrás das editoras, consegui meus primeiros clientes como ghost writer, lancei alguns livros... Nessa altura do campeonato, eu não era um novato. Agora precisava calcular os próximos passos de minha carreira. Como fazer para pular mais um degrau: sair do semiprofissionalismo, patamar que eu estava até aquele instante, para o profissionalismo, nova condição que eu almejava.
– De qualquer forma, meu rapaz, uma coisa eu te digo: a trajetória nunca é fácil para ninguém. Os desafios são enormes, independentemente da profissão escolhida. As pedras no meio do caminho parecem muitas vezes intransponíveis. E elas surgem em todas as etapas das carreiras. E isso é o que faz muita gente boa desistir durante a ascensão profissional. Como falava uma professora minha dos tempos da graduação, se você não tiver certeza do que deseja e não insistir pra valer em seus sonhos, você desiste na primeira curva mais acentuada ou na primeira ladeira mais íngreme. Ela usava o termo constância de propósito. Sem muita insistência e sem grande força de vontade, ninguém chega a lugar nenhum.
Constância de propósito... Será que era isso o que me faltava? Será que eu não desistira do ofício de escritor logo nos primeiros tropeções? Pode ser. Por que será que nunca bati no peito e gritei para o mundo a plenos pulmões que eu era um profissional das letras?! Mesmo nos meses em que trabalhava integralmente para as editoras, eu raramente me apresentava como escritor. A Dora era quem me exibia como ghost writer para as amigas. Para minha família, jamais pensei em anunciar a nova profissão. Engraçado eu pensar nisso agora. Será que nunca confiei no meu taco? Por que a vergonha de ser escritor?!
– Toda mudança desperta os medos que temos dentro da gente. Se o ser humano é feito de sonhos, ele também é feito de receios, desconfianças, preocupações... Como se fossemos um veículo, temos o pedal do acelerador e o pedal do freio. Eles estão lado a lado e nos ajudam na condução de nossa vida. Nossos sonhos são o pedal do acelerador. Nossos medos são o pedal do freio. Um bom piloto sabe usar cada um deles na hora certa e na intensidade adequada.
Sim! Nesse sentido, eu era um péssimo piloto de minha vida profissional. Confesso que nos últimos meses estava com os dois pés atolados no pedal do freio. Meus medos tinham me dominado ao ponto de suplantar minhas aspirações. E o pior, eu usava várias desculpas aparentemente justificáveis para embasar minha estagnação. Abrira mão dos meus sonhos simplesmente por conveniência. Ai, ai, ai!
Analisando agora a situação com mais calma, entendia que se não fosse a atitude completamente inconsequente e fora do padrão do Paulo, eu não teria aceitado participar deste novo livro da Pomelo. E mesmo assim, eu balancei. Como pude ser tão medroso?!
– Na prática, a administração da carreira não é algo simples. Cada caso é um caso diferente. Todos eles escondem desafios próprios e exigem do profissional grande dose de esforço e superação. E em teoria, há alguns pressupostos que devemos seguir sempre. Uma vez identificado o propósito, o próximo passo é montar um plano para alcançar os objetivos almejados. Ao mesmo tempo, a pessoa deve implementar um programa poderoso de treinamento e capacitação. Não há sucesso sem um nível elevado de conhecimento e competência naquilo que se está produzindo. E o desenvolvimento pessoal-profissional deve ser constante e intenso. E com raras exceções, não há limite de idade para um trabalhador se especializar em algo e adquirir as habilidades necessárias para a nova profissão.
– Mas para isso o indivíduo precisa de coragem – complementei naturalmente o discurso daquela senhora. Minha voz saiu quase que automaticamente, me assustando um pouco. Ter identificado claros sinais de covardia em minhas atitudes recentes havia mexido comigo – Cada fase da profissão exige uma postura confiante e firme da pessoa. Sem coragem, a roda não gira, né?
– Exatamente! – Ela bateu carinhosamente a palma da mão em meu joelho três vezes – Acho que você pegou o espírito da coisa, filho. Assim que se fala!
Não sei se ela ficou mais feliz por perceber que eu estava acompanhando atentamente seu discurso ou por notar que eu concordava com tudo o que havia sido exposto. Se não fossem meus olhos brilhando e o tamanho do meu sorriso, poderia dizer que como plateia de explanações psicológicas eu era péssimo.
Em suma, foram mais de uma hora e meia de uma conversa profunda e riquíssima. A passageira do meu lado, que poderia ser muito bem confundida com um anjo que tinha sido enviado à Terra para me orientar, era agradável e não tinha qualquer receio de apontar seus planos profissionais. Por timidez ou por certa intimidação (era inegável o quanto ela era melhor do que eu na administração de sua carreira), quase não abri a boca para falar de mim. Minhas falas ficaram restritas a dúvidas e indagações pontuais. Se alguém estivesse ouvindo nossa conversa, na certa ficaria perplexo. A impressão era que eu tinha vários anos pela frente e nenhum plano concreto. Minha companheira de viagem, ao contrário, tinha em teoria menos tempo pela frente, mas muitos planos.
Quando reparei, já havíamos chegado ao destino. Nos despedimos ainda no ônibus. Ela pegou sua bolsa e seguiu pela plataforma de desembarque com a tranquilidade dos sábios. Eu, encafifado com meus pensamentos cada vez mais inquietantes, fui até o bagageiro externo para pegar minha mochila e minha mala.
Enquanto aguardava a retirada dos itens, notei que uma dupla de passageiros reclamava do atraso do ônibus. Olhei para o relógio da rodoviária e ele apontava 16 horas. Meu Deus, pensei incrédulo, a viagem tinha demorado uma hora além do previsto. Ao questionar o motorista, que nesse instante retirava as malas e as entregava aos respectivos donos, sobre o motivo do atraso, ouvi uma resposta um tanto atravessada:
– Como assim? Você não viu o acidente na estrada?! Batida feia. Ficamos parados por quase meia hora.
Não tinha visto o acidente. Simplesmente o tempo parecia que tinha parado durante minha conversa. Não reparei em nada que tenha acontecido dentro ou fora do veículo. A sensação é de que eu mergulhara em um mundo paralelo. Sabe quando você fica tão imerso no filme durante a sessão no cinema e acaba se esquecendo da vida a sua volta? Foi o que aconteceu comigo dentro do ônibus.
Somente quando apanhei minha bagagem, lembrei de algo. Eu conhecia tantas coisas sobre aquela passageira, mas não sabia o básico: seu nome. Eu deveria ter perguntado. Na verdade, eu tinha tantas coisas ainda para questioná-la. Se nossa viagem tivesse demorado mais uma ou duas horas, eu não iria reclamar.
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