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Bonas Histórias

O Bonas Histórias é o blog de literatura, cultura, arte e entretenimento criado por Ricardo Bonacorci em 2014. Com um conteúdo multicultural (literatura, cinema, música, dança, teatro, exposição, pintura e gastronomia), o Blog Bonas Histórias analisa as boas histórias contadas no Brasil e no mundo.

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Ricardo Bonacorci

Nascido na cidade de São Paulo, Ricardo Bonacorci tem 42 anos, mora em Buenos Aires e trabalha como publicitário, produtor de conteúdo, crítico literário e cultural, editor, escritor e pesquisador acadêmico. Ricardo é especialista em Administração de Empresas, pós-graduado em Gestão da Inovação, bacharel em Comunicação Social, licenciando em Letras-Português e pós-graduando em Formação de Escritores.  

  • Foto do escritorRoberto S. Inagaki e Ricardo Bonacorci

Novela: O Ghost Writer - Capítulo 4, Pé Esquerdo


O Ghost Writer - Capítulo 4 - Pé Esquerdo

Coloquei o recibo no bolso da camisa, agradeci ao taxista e desci do carro. Em minhas mãos, equilibrava a mochila e o celular. O aparelho telefônico, acredite se quiser, tinha sobrevivido mais ou menos intacto ao acidente no café da Rodoviária do Tietê. Foi o que percebi quando cheguei ao quarto de hotel que a editora tinha me reservado em São José dos Campos. Bastou encaixar a bateria, que havia desprendido com a queda no chão, e meu celular voltou à vida. Entre riscos no visor e novas lascas na lateral, ele permanecia funcionando. Ufa!


Por falar naquela cena de filme de terror de algumas horas atrás, assim que saí do táxi, esqueci das situações constrangedoras que havia vivenciado em São Paulo. Ao pisar na calçada e erguer a cabeça, notei que estava agora em outro mundo: uma esquina elegante do Jardim Aquarius. Não era preciso ser morador de São José para compreender que me encontrava, naquele finalzinho de tarde e início de noite de quinta-feira, em um dos bairros mais nobres da cidade do Vale do Paraíba.


À minha frente, em uma rua residencial arborizada, um sobrado de três andares apresentava-se imponente. Ao avistá-lo pela primeira vez, ali na calçada, senti uma lufada de ar frio vindo em minha direção. Estremeci. O arrepio seria o prenúncio da volta dos maus momentos?! Esperava que não. A conversa com a passageira misteriosa do ônibus, há pouco, tinha injetado ânimo em mim. As palavras dela suscitaram uma coragem que nem mesmo eu sabia que possuía.


A partir de agora, anote aí, nada poderia me desviar do caminho traçado. Se era para escrever um livro, eu iria escrever o livro e ponto final. Como diziam os versos de uma antiga música dos Engenheiros do Hawaii: “Falando assim parece exagero/mas se depender de mim/eu vou até o fim/Não vim até aqui para desistir agora/eu vou até o fim”.


Com alguma dificuldade, já que estava com as mãos ocupadas, fechei o zíper do casaco e aplaquei um pouco o frio e o pessimismo que voltava a bater à porta da minha alma. Sai para lá, pensamento ruim!


Uma garoa chata estava começando ou não tardaria para dar definitivamente as caras. Pelo clima, me senti em São Paulo, apesar de ter a sensação de que São José dos Campos fosse ligeiramente mais fria. Talvez fosse a chegada da noite a responsável pela queda da temperatura. O cheiro gostoso de mato-natureza que vinha com a umidade também destoava consideravelmente do ambiente típico da capital paulista.


Mais protegido da friagem, mas não do sereno, olhei novamente para a construção à minha frente. Não sei definir o que mais me chamava a atenção em sua fachada: a pintura creme impecável das paredes externas; as sancas de gesso branco das enormes janelas envidraçadas que se multiplicavam para onde se olhasse; as plantas posicionadas estrategicamente nos jardins que contornavam a escada que levava os visitantes do térreo, onde ficava a garagem, para o primeiro andar, onde estava a entrada principal; o sótão (e suas duas pequenas janelas quadradas) a encarar com certa timidez, lá do alto, quem o contemplasse; ou as fortes luzes dos incontáveis cômodos da casa que iluminavam boa parte do quarteirão? Uma coisa eu tinha certeza: estava diante de uma morada impecável.


O relógio do celular indicava 18 horas em ponto. Se era para chegar entre o final da tarde e o início da noite na casa do Roberto, nada melhor do que aparecer às 18 horas. Juro que não tinha programado isso. Na verdade, imaginei chegar pelo menos uma hora antes, mas o atraso do ônibus intermunicipal mudara meus planos.


Para mostrar meu profissionalismo e minha pontualidade, passei um recado rápido de SMS para o Paulo: “Acabei de chegar. Vou entrar. Quando sair, te aviso o que rolou na reunião. Abraço”. Para escrever e enviar a mensagem, coloquei a mochila no chão e digitei no celular. Evitava a todo custo vestir a mochila nas costas, não queria amassar minha camisa. Dentro da mochila tinha o que eu chamava de kit escritor: notebook, caderno, agenda, estojo com canetas de várias cores, gravador de áudio e guarda-chuva. Guarda-chuva?! Para quem ficou surpreso, passe uma semana na cidade de São Paulo que você entenderá a inclusão deste item.


Se o autor quisesse começar naquele dia mesmo a trabalhar, eu estava prontíssimo. Porém, intuía que, neste primeiro contato, ele iria querer me conhecer melhor, trocar umas ideias informalmente. Era assim que acontecia quase sempre no encontro inicial entre o ghost writer e o autor verdadeiro da obra. Essas reuniões preliminares, vale a pena dizer, geralmente aconteciam nas editoras sob a supervisão do editor-chefe. Não entendi o motivo de precisar ir até a casa do Roberto para me apresentar. Bem que o Paulo me disse que o cara tinha hábitos peculiares. Por isso, não reclamei.


Mensagem enviada, celular no bolso e mochila novamente em mãos, rumei à porta da casa. Subi as escadas em direção ao hall de entrada. De perto, a residência era ainda mais bonita. Ela exalava um bom gosto e um refinamento raros de serem encontrados. Isso era perceptível nos detalhes. Os vasos nos jardins eram padronizados. O piso era funcional, protegia o usuário contra um possível escorregão, sem abrir mão da estética classuda. A porta principal pintada de branco, igualzinho às sancas das janelas, era robusta e tinha acabamentos metálicos. Se um designer de interiores e/ou um arquiteto não tivessem passado por ali, os moradores daquele lar tinham noções excelentes de decoração.


Sorte minha que tinha optado por ir de roupa social. Se estivesse de jeans surrado, camiseta largada e tênis batido, como estava habituado a andar por aí, na certa estaria me sentindo mais intimidado. Mesmo assim, antes de apertar a campainha, dei uma conferida em meu look. Aparentemente estava tudo em ordem, pelo menos em relação à vestimenta. Já quanto ao cabelo, não podia garantir... Com a ventania úmida que estava fazendo, na certa ele se encontrava bagunçado. Esse era um dos problemas de ter cabelos crespos e de usá-los compridos. Bem que a Rachel sempre me alertou que eu ficava melhor de cabelo curtinho. Nas mudanças, eu usava uma bandana para não assustar os clientes (motivo de chacota constante do Rui e do Peixoto). Mas a Dora gostava deles mais longos e era ela quem eu obedecia cegamente. Juro que senti falta da bandana, mesmo sabendo que ela não combinaria com meu traje atual.


Tentava domar minha cabeleira quando notei uma ligeira movimentação atrás de mim. Ao me virar, vi a aproximação de um casal bem afeiçoado de meia-idade. Faceiros, eles subiram as escadas conversando baixinho e se posicionaram perto de onde eu estava. Traziam nas mãos uma embalagem grande de presente e em seus rostos sorrisos branquíssimos. Ele usava terno e gravata e ela estava com um vestido longo. Não apenas os moradores do lugar se mostravam elegantes como também suas visitas deveriam ser. Não era tão difícil assim me acostumar com um ambiente requintado como aquele.


– Boa noite! – o casal possuía uma cortesia carismática. Enquanto sorriam para mim, chegaram ainda mais próximos à porta.


– Boa noite – devolvi a gentileza um pouco envergonhado por ter sido pego tentando domar a cabeleira revolta. Assim que interrompi a autoflagelação capilar, girei o corpo em 180 graus e apertei a campainha da casa com a confiança de quem estava pronto para todos os desafios. Um livro tinha que ser produzido e eu não sairia dali sem concretizar essa missão. Se depender de mim, eu vou até o fim!


Quase que instantaneamente ao estampido da campainha, um garoto de traços nipônicos de aproximadamente treze anos abriu a porta com um copo de refrigerante à tira colo. Pelo som que vinha do interior da residência, uma mistura de música instrumental (seria jazz ou blues?) com o tilintar de copos e pratos, uma reunião social estava acontecendo ali. Pude ver surpreso, ainda do lado de fora da porta, uma dezena de pessoas, quase todas entre quarenta e cinquenta anos, sentadas elegantemente nos sofás da sala. Havia até um garçom, ao melhor estilo pinguim de festa, a desfilar com uma bandeja. Como o pé direito da construção era alto e a sala era bastante espaçosa, a sensação era de um encontro intimista e extremamente sofisticado.


Contrastando com o ambiente formal, o menino que viera nos receber vestia camiseta regata e shorts curto. Será que as crianças de hoje não sentem frio?! Se ele não estivesse descalço nem tivesse vindo do interior da casa, poderia garantir que estava praticando alguma modalidade esportiva. Até suado ele estava. Na certa, o garoto devia ser o filho dos donos da casa e o atrapalhamos em suas brincadeiras. Ou ele estava passando naquele instante pela porta e, por força do hábito, decidiu abri-la.


O Paulo me falou alguma coisa sobre o Roberto ter dois filhos: um rapazinho menor de idade e uma moça recém-formada que trabalhava em uma multinacional. Entretanto, não prestei muita atenção nas particularidades da vida pessoal do consultor. Fiquei mais preocupado com a descrição de sua personalidade e de seu trabalho. Na reunião de terça-feira lá na editora, o Paulo elogiou o Roberto. Disse tratar-se de um profissional sério e bastante experiente. Sua consultoria era em Gestão da Qualidade, mas ele realizava Planejamentos Estratégicos para seus clientes. Seu método de trabalho era um tanto diferenciado, daí a proposta de produzir um livro com essas concepções. Pelo que entendi, ele utilizava um conceito chamado de Guerra e Paz. Confesso que fiquei curioso.


Quem não estava nada curioso era o nosso anfitrião mirim. Ele não parecia muito feliz por ser o porteiro informal do próprio lar. Vai ver não éramos os primeiros que ele precisava recepcionar naquele dia. Se isso fosse verdade, seu interesse e sua disposição pelos visitantes tinham terminado rapidamente. Assim que nos viu, tomou um gole rápido do refrigerante que empunhava, virou-se para dentro e gritou a plenos pulmões:


– A tia Débora e o tio Mário chegaram! Tem também um sujeito estranho com eles.


Confesso que olhei para os lados à procura de mais alguém em nosso grupo. Vai ver uma nova pessoa tinha chegado e eu não a tinha notado. Entretanto, não achei ninguém de diferente além do casal atrás de mim. Quem seria, então, o cara estranho que o menino mencionara com tanta ênfase?! Não quis nem pensar sobre isso, preferindo manter minha fisionomia de profissional sério e respeitado a caminho da primeira reunião de um projeto editorial importante.


– Oi, Robertinho – ouvi a visitante atrás de mim tentar algum contato verbal com o adolescente.


– E aí? – o rapaz falou em tom quase inaudível. Ele devia ser bastante tímido. E rápido também, porque mal respondeu à saudação, deu meia volta e saiu correndo pela sala. Ao fundo, pude vê-lo subindo apressado as escadas internas sem se preocupar com o copo de vidro que tinha em mãos e que chacoalhava perigosamente para todos os lados.


Com a porta de entrada escancarada, o casal de visitantes me ultrapassou e adentrou o recinto demonstrando grande familiaridade com o local. Acompanhei-os com certo embaraço. O tal Mário fechou a porta atrás da gente e a Débora colocou sua bolsa em um aparador lateral. O presente ela preferiu não largar.


Uma vez dentro da casa, reparei com mais atenção em seu ambiente interno. A elegância do lado de fora se mantinha intacta ali dentro. Com poucos móveis e objetos de decoração, a sala era o retrato mais bem-acabado de um estilo moderno, prático e fino. Eu já estava gostando do Roberto e de sua família antes mesmo de conhecê-los.


– Já estou indo! Só um momentinho e já falo com vocês – uma voz feminina surgiu de trás do bar – Enquanto isso fiquem à vontade, meus amores. A casa é de vocês.


– Não se preocupe conosco, Paty – Débora respondeu prontamente – Vamos cumprimentar o povo e pegar uma bebida com o Alcides.


Alcides? Devia ser o garçom, pensei abobado. Gente chique sabe até o nome do garçom da festa que acabou de chegar. Incrível! Preciso perguntar para a Raquel se isso é normal ou se é coisa de cidade do interior.


O casal que chegara comigo foi prontamente integrado ao pessoal que estava na sala. Pela maneira como foram recepcionados, Débora e Mário já eram velhos conhecidos dos demais visitantes. Por estar junto deles, fui recebido com o mesmo acolhimento alegre e respeitoso. Pelas perguntas que não demorei para receber, entendi que fora confundido com alguém que o casal recém-chegado trazia consigo ou com alguém que já fosse íntimo dos donos da casa.


– Você deve ser o filho do Mário e da Débora. Acertei?!


– Já sei. Você trabalha com eles na Tecmax, não é?


– Eu te conheço de algum lugar... Você não é aquele repórter com cara de maluco da TV Vanguarda? O do jornal da hora do almoço, sabe?


– Ei, você não me engana, não. Você deve ser o novo empresário do Robertinho que a Patrícia falou. Não escondo o jogo: você é empresário de futebol?!


Achei graça daquela confusão. Neguei prontamente todas as teorias conspiratórias. Expliquei que trabalhava para uma editora de São Paulo e que iríamos lançar em breve um livro de negócios do Roberto. Obviamente, não poderia dizer que estava ali para escrever a obra em questão. Uma das obrigações do ghost writer é manter-se em total anonimato. Ninguém poderia saber que o autor não iria escrever o texto de seu próprio livro. E quando digo ninguém, é ninguém mesmo – nem minha família e meus amigos nem a família e os amigos dele. O sigilo absoluto é um dos requisitos essenciais desta profissão. No meu caso, apenas sabiam o que eu fazia a Dora e o Paulo. Ninguém mais!


Acostumado com esse tipo de saia-justa, já tinha meu discurso pronto e na ponta da língua. Para despistar os mais curiosos, sempre me apresentava como editor da publicação que estava trabalhando ou como revisor do texto, dependendo do caso. Naquele dia preferi dizer que era o editor do novo livro do Roberto. Achei que caía melhor para um encontro tão pomposo.


Assim que descobriram que o dono da casa iria publicar uma obra, os visitantes só falaram nisso pelos quinze minutos seguintes. Todos exaltavam a competência e a inteligência do anfitrião, que até então não havia dado as caras na sala. Aí soube que aquele grupo era formado por amigos e clientes do Roberto. E que eles estavam ali para comemorar justamente o aniversário do (futuro) autor. Aniversário!? Por que o Paulo não me contou nada sobre isso? Fiquei constrangido de ir à casa de um aniversariante para tratar de trabalho.


Contudo, minha preocupação durou até descobrir que aquele encontro fora espontâneo. Todos os visitantes eram tão próximos do aniversariante que decidiram dar os parabéns pessoalmente sem que tivessem sido convidados para tal. A decisão de transformar a pequena reunião informal em uma festinha fora tomada de última hora pelos anfitriões. Por isso, a Patrícia, que deduzi ser a esposa do Roberto, corria pela casa em busca de bebidas e copos para serem oferecidos aos convidados-não-tão-convidados-assim. Já o Roberto estava na cozinha preparando algo para ser servido.


Só não entendi o que fazia um garçom de terno e gravata borboleta ali se o encontro tinha sido arranjado de supetão. Será que havia um disk garçom em São José? Ou será que aquele homem era um funcionário fixo da casa?! Até hoje não sei a resposta para esses questionamentos.


Por mais à vontade que tenha ficado num primeiro momento, me senti invadindo a privacidade do Roberto. Nem o conhecia e já ia à sua festa de aniversário. Também fiquei incomodado por estar de mochila, um objeto estranho em um cenário tão festivo. Notei que as pessoas invariavelmente olhavam para ela com um jeito interrogativo. Deviam pensar: “o que faz esse sujeito com uma mala tão grande no meio de um aniversário?”. Para minimizar o desconforto, tentava colocá-la no chão, entre meus pés, ou no colo, enquanto estava sentado no sofá. De qualquer jeito, ela se destacava mais do que eu desejava. Meu único consolo era saber que quando o Roberto chegasse, ele veria rapidamente que eu estava ali para trabalhar.


E os anfitriões não demoraram muito mais para se integrarem na sala. Eles trouxeram algumas bandejas com quitutes de ótima aparência e com cheiro capaz de atiçar nossa salivação. Prometi para mim mesmo que ficaria longe dos comes e bebes para mostrar certo ar de profissionalismo (estava ali para trabalhar e não para me divertir!), mas não consegui. Na primeira passada do Alcides com as novidades culinárias, fui pego pelo estômago. Ou estava com muita fome ou aquela era a brusqueta mais gostosa que já tinha comido. E o que falar dos canapés de cestinha mexicana, hein? Santo Deus!


Quando a Patrícia e o Roberto, enfim, puderam se sentar no sofá para conversar com os convidados, eles cumprimentaram aqueles que tinham chegado por último. Eu integrava, obviamente, esse grupo de visitantes. Foi aí que conheci pessoalmente meu cliente – acho que posso chamá-lo assim.


Roberto possuía traços japoneses em um corpo esguio. Devia ter por volta de cinquenta anos. Vestindo um elegante terno feito sob medida e uma gravata impecavelmente alinhada, sua imagem era de seriedade e formalismo (juro que fiquei imaginando-o na cozinha com essa roupa). Porém, notava-se instantaneamente que ele possuía grande calor humano. Pela maneira como saudava os amigos, era possível perceber o espírito jocoso e jovial que habitava o seu interior.


Nossos cumprimentos foram protocolares. Tentei me apresentar sinteticamente, mas minha voz foi abafada pelo barulho do recinto. A chegada do aniversariante e de sua esposa na sala, além das bandejas que o garçom servia, havia mexido com o ânimo dos presentes a ponto de elevar os decibéis do ambiente em alguns pontos. Por isso, não sei se ele conseguiu ouvir direito o que eu disse ou não entendeu nada das minhas palavras. Só sei que sua resposta foi um simples “muito prazer”, dito mais para dentro do que para fora. Como ele não fez qualquer menção à nossa reunião, preferi não o lembrar do nosso compromisso. Afinal, estávamos em um aniversário!


Sem dúvida nenhuma, o casal de anfitriões era muito simpático. Achei-os também educados, alegres e amistosos. Eles riam e brincavam com todos com muita descontração. A esposa era a mais falante da dupla. Sem qualquer traço oriental, Patrícia era bonita, aparentemente mais jovem que ele, e bastante eloquente. Sua desinibição apenas acentuava ainda mais a timidez do marido. Mesmo entre os conhecidos, Roberto mantinha-se quase sempre na posição de ouvinte. Porém, não demorou para notar seu ótimo estado de espírito. Nas poucas vezes em que falava, usava um tom de voz baixo, mas seu bom humor provocava tempestades de risadas pela sala. O cara era uma figura!


A alegria e a descontração da reunião duraram trinta minutos mais ou menos. O tom da conversa era de amenidades e brincadeiras de lado a lado. Enquanto boa parte dos visitantes insistia em chamar o aniversariante de velho e de lembrá-lo que seu time do coração não tinha conquistado o Campeonato Mundial, o anfitrião tentava defender-se como podia. Era nítido o caráter de galhofa do pseudo-entrevero.


O humor da sala só mudou quando alguém questionou o aniversariante sobre o livro que ele iria lançar. Roberto soltou um sorriso amarelo, cruzou os braços e preferiu não responder diretamente. As insistências de quase todos os visitantes o forçaram a negar qualquer intuito nesse sentido. No início, a negativa foi tímida e em tom de brincadeira. Depois, foi mais incisiva e soou quase como uma reclamação.


Na hora, me arrependi de ter citado o projeto editorial para os convidados. Será que havia um segredo ali que eu havia desrespeitado? O Paulo não tinha me falado nada. Pensando bem, o verdadeiro editor não me falara muitas coisas sobre o livro nem sobre o autor. Como não sabia de quase nada, fiz a minha parte: omiti minha participação na produção do texto. Se era para estender o sigilo à obra, eu deveria ter sido informado previamente.


O clima ruim só piorou quando os olhares da sala inteira se dirigiram a mim.


– Como não! – disse um dos visitantes apontando na minha direção – Ele disse que trabalha para uma editora de São Paulo e que veio aqui se reunir com você.


Só nesse instante, o anfitrião parou para me analisar com o cuidado necessário. Na certa, seus pensamentos tentavam atinar para o que estava acontecendo. “Vai ver o cara era super ocupado e não havia se lembrado da nossa reunião”, cogitei otimista. Isso já havia acontecido comigo algumas vezes. Se assim fosse, era natural seu espanto com a minha presença em sua casa. O problema é que o longo silêncio escancarava que sua memória estava demorando para trabalhar. “Eita sujeito mais esquecido!”.


– Você é mesmo da editora?


– Sim – respondi para o Roberto. Fiquei um pouco mais aliviado por, enfim, ele parecer se lembrar de algo


– O Paulo me enviou para conversarmos sobre o livro. Lembra?


– De qual editora você é?


– Da Pomelo – como ninguém mais falou nada, tentei descontrair um pouco – Leituras críticas, para leitores cítricos. Esse é o nosso lema! Se bem que preferia “para o alto e avante”.


A sala manteve-se em total mudez após minha última intervenção. Acho que não gostaram da piadinha. Achei estranha a reação geral pois piadas muito piores tinham sido proferidas há pouco e mesmo assim a receptividade do público tinha sido muito melhor. Até a música que estava sendo tocada foi inexplicavelmente interrompida. Todos os olhares continuavam caindo sobre mim. O clima agora era pesadíssimo. Se antes os presentes pareciam simpáticos e alegres, agora suas fisionomias eram de preocupação e, em alguns casos, de indignação.


– O senhor poderia me acompanhar, por gentileza?


Com uma educação ímpar e elevando a voz pela primeira vez, Roberto fez sinal para eu segui-lo. Levantei-me empolgado do sofá com a mochila em mãos. Enfim, iriamos para a nossa reunião. Tínhamos tantas coisas para tratar. Sinceramente, nem sabia por onde começar.


– Licença, pessoal – antes de acompanhar o autor, me despedi rapidamente das demais pessoas na sala. Vai ver que quando eu voltasse, alguém poderia ter ido embora, né? Quem disse que eu também não podia ser extremamente educado como esse pessoal chique?!


Ao invés de ir para o interior da residência, como imaginei que faria, Roberto se dirigiu até a porta principal da casa. Acompanhei seus passos de perto. Será que iriamos ao escritório dele, em outro bairro da cidade, para conversar com mais privacidade? Pode ser, pensei encafifado. No meio dessa algazarra, não iriamos nos concentrar.


Ele abriu a porta e, ainda no interior da residência, fez um gesto simpático para que eu avançasse para o lado de fora. Agradeci com a cabeça e dei cinco passos na frente dele. Já no lado externo, voltei o corpo para saber o que ele faria. Talvez precisasse pegar a chave do carro. Ou algum material de trabalho, talvez caderno ou notebook. E para minha surpresa, Roberto ficou me olhando estático e com o semblante fechado. Enquanto tentava entender o que estava acontecendo, vi uma porta ser fechada violentamente na minha cara.


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