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Bonas Histórias

O Bonas Histórias é o blog de literatura, cultura, arte e entretenimento criado por Ricardo Bonacorci em 2014. Com um conteúdo multicultural (literatura, cinema, música, dança, teatro, exposição, pintura e gastronomia), o Blog Bonas Histórias analisa as boas histórias contadas no Brasil e no mundo.

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Ricardo Bonacorci

Nascido na cidade de São Paulo, Ricardo Bonacorci tem 42 anos, mora em Buenos Aires e trabalha como publicitário, produtor de conteúdo, crítico literário e cultural, editor, escritor e pesquisador acadêmico. Ricardo é especialista em Administração de Empresas, pós-graduado em Gestão da Inovação, bacharel em Comunicação Social, licenciando em Letras-Português e pós-graduando em Formação de Escritores.  

  • Foto do escritorRicardo Bonacorci

Análise Literária: Julio Cortázar

A partir do estudo dos principais livros e da biografia de Cortázar, apresentamos a análise do estilo narrativo e as trajetórias pessoal e profissional do autor argentino.

Análise Literária de Julio Cortázar

Hoje, o Desafio Literário apresenta o estudo sobre a literatura de Julio Cortázar, um dos principais escritores argentinos da história e figura central da prosa ficcional no século XX. Considerado um dos maiores contistas de todos os tempos, Cortázar se destacou por subverter a lógica das estruturas narrativas e por criar obras que trafegam pelo Realismo Fantástico, pelo Surrealismo, pela crítica político-social e pelo Existencialismo. Sua produção é tão reacionária que acaba, muitas vezes, assustando e confundindo o público médio. Não à toa, o escritor é mais admirado por intelectuais, filósofos, literatos e críticos literários do que pelos leitores comuns. Confesso que os livros do argentino exigiram doses generosas de disposição, atenção e esforço da minha parte, o que tornou essa experiência literária extremamente complexa, diferente e, por que não, prazerosa. Afinal, boa parte dos recursos narrativos usados pelo autor não são encontrados facilmente na literatura comercial contemporânea.


Para construir essa análise literária, objetivo central do Bonas Histórias nesse bimestre, comentamos individualmente, ao longo das últimas oito semanas, oito das principais publicações de Julio Cortázar. Os títulos escolhidos para o Desafio Literário de Cortázar foram: “Os Reis” (Civilização Brasileira), prosa poética em formato de peça teatral lançada em 1949; “Bestiário” (Civilização Brasileira), coletânea de contos de 1951; “Final do Jogo” (Civilização Brasileira), coleção de narrativas curtas de 1956; “Os Prêmios” (Civilização Brasileira), romance de 1960; “Histórias de Cronópios e de Famas” (Best Seller), coletânea de microcontos de 1962; “O Jogo da Amarelinha” (Companhia das Letras), romance de 1963; “Todos os Fogos o Fogo” (Best Seller), coleção de contos de 1966; e “62 Modelo para Armar” (Civilização Brasileira), romance de 1968. Repare que tivemos a preocupação de selecionar exemplares dos principais gêneros textuais desenvolvidos pelo autor. Os posts com as análises desses livros estão disponíveis no blog para consulta de todos.


Para adquirir mais subsídios sobre as trajetórias pessoal e profissional de Julio Cortázar, recorremos também a “Cortázar – Notas para uma Biografia” (Editora DSOP), um dos livros biográficos mais completos e profundos sobre o escritor. Desenvolvida por Mario Goloboff e lançada em agosto de 2014, essa obra é fundamental para entendermos os pormenores da vida e da carreira do autor argentino. A partir da leitura dessa coletânea de títulos (oito produções autorais de Cortázar e uma biografia sua), acreditamos que estamos prontos para discutir os detalhes de seu estilo e das características literárias de seu trabalho ficcional.

Livros de Julio Cortázar

Quem não conhece o Desafio Literário, informo que essa é a coluna do Bonas Histórias dedicada à análise da literatura dos principais escritores nacionais e internacionais de ontem e de hoje. Desde 2015, selecionamos anualmente alguns escritores para serem estudados em profundidade aqui no blog. Nessa temporada, a sétima do Desafio, comentamos (em abril e maio) a ficção de Orhan Pamuk, turco vencedor do Prêmio Nobel de 2006, e (em julho e agosto) os romances de Elena Ferrante, italiana que é best-seller internacional. O Desafio Literário de Julio Cortázar é, portanto, o terceiro e último desse ano. No ano passado, à título de exemplificação, analisamos a literatura de personalidades como Jack Kerouac (Estados Unidos), Rubem Fonseca (Brasil), Isabel Allende (Chile) e José Eduardo Agualusa (Angola).


Então, chega de papo furado e vamos logo aos trabalhos que nos prontificamos a fazer nesse bimestre (outubro e novembro de 2021)!


Julio Florencio Cortázar (esse é seu nome completo) nasceu em 26 de agosto de 1914, dois meses depois da eclosão da Primeira Guerra Mundial. Ele é o primogênito de Julio José Cortázar, diplomata argentino de descendência basca, e María Herminia Descotte de Cortázar, argentina cuja família tinha origem alemã e francesa. Por ter o mesmo nome do progenitor, o menino, desde que nasceu, sempre foi chamado pelos familiares e pelos amigos próximos de Florencio (afinal, Julio era o seu pai!). Por falar em Julio e María Herminia, o casal, que morava em Buenos Aires na época do namoro e noivado, viajou para a Europa assim que se casou. María Herminia acompanhou o marido, que como diplomata precisava viver prioritariamente no exterior.


Por causa desse constante deslocamento familiar, o futuro escritor nasceu em Bruxelas, na Bélgica, onde seu pai trabalhava em meados de 1914. Como é corriqueiro nesse caso, Julio Florencio (que chamaremos por ora apenas de Florencio) foi registrado como argentino (a embaixada é território do país que representa e não da nação em que está situada). Vale a pena lembrar que a mesma situação ocorreu com Isabel Allende, escritora nascida em Lima, no Peru, na embaixada do Chile (sua nacionalidade é, portanto, chilena e não peruana). Assim como Florencio, o pai de Isabel era também diplomata.


Um ano depois do nascimento do primeiro filho, María Herminia deu à luz, em Zurique, na Suíça, uma menina. A irmãzinha de Florencio ganhou o nome de Ofelia. Os Cortázar viveram em várias cidades europeias entre 1914 e 1918, equilibrando-se entre as obrigações profissionais de Julio e os perigos oriundos da guerra. O lugar que passaram mais tempo, nesse período, foi em Barcelona, na Espanha. A família só conseguiu retornar para a Argentina após o término do conflito armado que devastou o Velho Continente. Ou seja, Florencio só conheceu seu país aos 4 anos de idade. Curiosamente, o menino só falava francês quando aportou em Buenos Aires (essa era a língua que os Cortázar usavam habitualmente em casa) e precisou aprender o espanhol na América do Sul.

Julio Cortázar, escritor argentino

Dois anos depois do retorno à Argentina, a Sra. Cortázar e os filhos vivenciaram um drama familiar. Sem qualquer explicação, Julio abandonou a esposa e os filhos (provavelmente arranjou uma nova mulher) e nunca mais retornou ao lar original. Assim, Florencio, então com 6 anos, Ofelia, 5 anos, e María Herminia foram morar com a avó materna dos meninos e com uma prima da mãe. A nova residência da família ficava em uma casa muito espaçosa em Banfield, no subúrbio da Grande Buenos Aires. Essa nova dinâmica familiar perdurou por quase duas décadas. Dessa maneira, Florencio foi criado em um lar essencialmente feminino. Nunca mais ele viu ou falou com Julio, que sumiu das vidas dos filhos e da ex-esposa para sempre.


A infância de Florencio em Banfield foi marcada pela literatura. O menino tímido e introspectivo recorria à biblioteca particular da mãe como diversão, passatempo e formação. Ele preferia a leitura à socialização com os vizinhos e com os colegas de escola (que praticavam bullying com o estudante sério de sotaque afrancesado). Por essas e outras, Florencio passava o dia (e as noites) lendo compulsivamente. A única que recebia maior atenção do garoto era a irmã mais nova, com quem ele brincava às vezes. Como a biblioteca de María Herminia não fora montada para uma criança, Florencio leu, desde pequeno, obras clássicas (a maioria em francês) e livros comerciais destinados ao público adulto.


Além do abandono paterno e do mergulho desde muito cedo na literatura, a meninice de Julio Florencio (acho que podemos chamá-lo dessa maneira a partir de agora) foi marcada por outros dois acontecimentos. O primeiro foi a doença de Ofelia. A irmãzinha tinha frequentemente crises de epilepsia, o que aterrorizava a mãe, a avô e a tia dos meninos. O clima na casa era de constante tensão. Todos precisavam ficar atentos para a iminente crise de Ofelia. Cercado de excessivos cuidados médicos, apesar de não ter qualquer problema de saúde mais sério, o futuro escritor se tornou um hipocondríaco inveterado, hábito que levou até o final da vida.


Sem um homem em casa, as mulheres da família de Julio Florencio se aproximaram naturalmente da família de Pereyra Brizuela, um capitão reformado do Exército que morava na vizinhança. Esse é o outro episódio importante que me referi no parágrafo anterior. Como a casa dos Brizuela era constituída quase que exclusivamente por homens, os clãs gostavam de se encontrar e confraternizar. Julio Florencio foi muito influenciado por Pereyra Brizuela, que incentivava as qualidades intelectuais e os hábitos de leitura do menino. Depois de devorar a biblioteca da mãe, o garoto recorreu aos livros que o amigo mais velho tinha em casa, com títulos mais filosóficos e variados. A proximidade com os Brizuela foi ao mesmo tempo intensa e longeva. Dessa relação, surgiram três matrimônios: Ofelia se casou com um dos filhos mais novos de Pereyra Brizuela, a tia de Julio Florencio se tornou esposa de outro filho do velho militar e, por fim, María Herminia se uniu com o filho mais velho do Sr. Brizuela.

Julio Cortázar, autor argentino

Em um ambiente extremamente erudito e poliglota, Julio Florencio aprendeu o inglês, aprimorou o alemão, que era praticado em casa principalmente pela avó, e continuou desenvolvendo o francês, praticamente sua língua natal. Aluno aplicado (do tipo melhor aluno do colégio), o jovem Cortázar se apaixonou pela poesia ainda na adolescência. Foi nessa época em que ele começou a escrever, principalmente versos e textos em que brincava com as palavras e as estruturas frasais. Por muito tempo, acredite, a poesia o encantou mais do que a prosa ficcional.


Após concluir os estudos escolares em Banfield, em 1932, Julio Cortázar (acho que já podemos chamá-lo pelo nome que ficaria mundialmente conhecido alguns anos mais tarde) ingressou no curso de professor do ensino médio e se formou em 1935. Com o diploma em mãos, Cortázar foi contratado pelo governo argentino para lecionar nas escolas de ensino fundamental. Por isso, ele foi viver no interior do país. Seus primeiros empregos foram como professor em escolas em Bolívar e em Chivilcoy. Lá, ele deu aulas de várias disciplinas (História, Geografia, Instrução Cívica etc.) menos de Literatura. Sim, o governo federal da Argentina contratou Julio Cortázar como professor e ele não deu nenhuma aula de literatura!!!


Nesse período, Julio Cortázar adquiriu novos hábitos. Ele se aproximou da música (principalmente do Jazz) e se apaixonou pelo boxe (único esporte que acompanhava com afinco e certa assiduidade). Também passou a ler e a estudar Mitologia Grega, um assunto que vinha chamando sua atenção desde a adolescência (Pereyra Brizuela tinha em sua biblioteca vários títulos com essa temática). No mais, Julio continuou lendo vorazmente todo tipo de livro que caía em suas mãos (a literatura sempre foi seu maior interesse, tanto a poesia quanto a prosa) e pesquisando sobre filosofia (Existencialismo e a Metafísica eram seus temas favoritos nessa área). Ou seja, sua erudição só aumentava.


Em 1938, Julio Cortázar estreou na literatura com a publicação de “Presencia” (sem edição em português), uma coletânea de sonetos. Sim, o primeiro livro de um dos principais contistas da história era uma obra poética – sua grande paixão naquele momento. Ele lançou esse título com o pseudônimo de Julio Denis. “Presencia” teve baixíssima tiragem (apenas 250 exemplares) e foi bancado integralmente pelo autor – processo editorial que chamamos atualmente de autopublicação. A receptividade desse título foi extremamente tímida, se restringindo ao círculo íntimo do autor (amigos e familiares).

Julio Cortázar, contista, romancista e ensaísta argentino

Em 1943, Julio Cortázar deixa Bolívar e Chivilcoy (e a escola fundamental) e se muda para Mendoza (ingressando no ensino superior). Ele foi trabalhar na Universidade de Cuyo como professor de literatura francesa e inglesa. Em Mendoza, Cortázar se torna um professor querido e muito respeitado pelos estudantes. É ali também que ele começa a ter uma participação política mais ativa. Antiperonista convicto, Julio se opõe à ascensão de Juan Domingo Perón e seus partidários, que em nome de uma maior representatividade popular começam a perseguir os ideais burgueses (entre eles a dinâmica artístico-cultural até então em voga). Muito próximo das artes, o professor universitário nascido em Bruxelas não conseguia conceber a perseguição, a censura e o ataque dos peronistas à arte e à cultura nacional desenvolvidas até ali.


Em 1946, com a eleição de Perón, Julio Cortázar deixa a universidade em Mendoza por não concordar com as novas diretrizes ideológicas do governo recém-empossado e regressa à Buenos Aires. Nesse ano mesmo, ele arranja emprego na Câmara do Livro como gerente, trabalho que exerceria até 1949. O expediente na Câmara do Livro era de meio período (quatro horas apenas), o que permitia a Julio escrever diariamente. Nesse período, ele produziu críticas de livros e ensaios literários (enfocando essencialmente os poetas europeus), além de iniciar o desenvolvimento de contos próprios. Seus textos eram publicados nas principais revistas e jornais literários do país, como Realidad, Sur e Verhum. No finalzinho dos anos 1940, Cortázar se transformou em um escritor famoso entre os intelectuais de Buenos Aires. Vale a pena dizer que os textos do escritor na imprensa literária portenha remontam ao início daquela década.


O primeiro ensaio de Julio Cortázar a ser publicado foi uma análise dos poemas de Arthur Rimbaud, francês que viveu na segunda metade do século XIX. O artigo saiu na revista Huella, em 1941. Em 1942, Julio lançou seu primeiro conto. “Llama el Teléfono, Delia” (sem edição em português), uma narrativa com pegada fortemente experimental, foi veiculado no Diario El Despertar. Contudo, essa narrativa parece não ter agradado ao seu autor. Anos depois, Cortázar desprezou completamente esse texto, não aceitando inseri-lo em sua coletânea de narrativas curtas (afirmou tratar-se de um mero exercício de Escrita Criativa). Por isso, muita gente diz que o primeiro conto do escritor argentino é “Bruja”, publicado em 1944 no Correio Literario (esse sim recebeu a devida aceitação por parte do autor, que jamais negou seu valor).


Entre 1945 e 1946, foram veiculados os contos “Estación de La Mano” na revista Egloga e “A Casa Tomada” na revista Los Anales de Buenos Aires (publicação dirigida por ninguém menos do que Jorge Luis Borges). O ensaio “La Urna Griega en la Poesia de John Keats” (sem edição em português) também é dessa época e saiu na Revista de Estudios Clásicos. De todos esses textos de Cortázar, aquele que teve maior repercussão foi o espetacular “A Casa Tomada”. A narrativa curta dos dois irmãos solitários que tem a residência misteriosamente invadida gerou grande comoção entre os leitores das revistas de literatura. Sua trama foi muito citada e comentada por seu possível teor político (algo que Julio Cortázar sempre despistou). O próprio Borges nunca escondeu sua admiração por esse conto e sempre o elogiou como um exemplo concreto do talento de Cortázar.

Julio Cortázar e Aurora Bernárdez

Em 1946, Julio Cortázar quase publicou um novo livro (seria seu segundo). A obra se chamava “La Otra Orilla” (não foi publicada em nosso idioma até hoje) e representaria a estreia de Cortázar nas coletâneas de narrativas curtas. Ele produziu as histórias desse título entre 1937 e 1945. A publicação de “La Otra Orilla” ficou a cargo de uma pequena editora de Buenos Aires. Entretanto, poucos dias antes do material ser enviado para a gráfica, os editores mudaram de ideia e cancelaram o lançamento. “La Otra Orilla” ficaria por quase cinco décadas na gaveta da casa da família Cortázar, sendo publicado apenas em 1994, dez anos depois do falecimento do autor.


Apesar da inegável frustração pela não materialização de “La Otra Orilla” em livro, o final da década de 1940 e o início dos anos 1950 constituíram um período marcante para Julio Cortázar tanto em âmbito pessoal quanto profissional. Em 1948, ele começou a colaborar com a Revista Sur. O autor produziu críticas e ensaios literários para a famosa publicação criada pela escritora Victoria Ocampo. Cortázar permaneceu como colaborador fixo da revista, referência por muito tempo na literatura moderna da Argentina, até 1953.


Ainda em 1948, Julio conheceu Aurora Bernárdez, que mais tarde viria a ser sua primeira esposa. Formada em Filosofia e Letras na Universidade de Buenos Aires e extremamente intelectualizada, a moça chamou a atenção do rapagão alto e um tanto desengonçado que voltara a viver na Capital Federal. Eles demoraram para engatar o namoro sério. Entretanto, depois que começaram, não se largaram mais. Os amigos próximos e os familiares de Cortázar brincam que Aurora era a alma gêmea do escritor. Aficionada por literatura desde a infância, ela devorava bibliotecas inteiras, discutindo com qualquer intelectual da época questões como prosa ficcional, poesia, filosofia, cultura, artes e política. Julio Cortázar não poderia ter tido uma namorada (e depois esposa) mais compatível com sua personalidade erudita do que Aurora Bernárdez.


Nesse mesmo ano, Cortázar, depois de muito estudar, foi aprovado na titulação de tradutor público. Assim, poderia trabalhar oficialmente realizando traduções, ofício que desempenharia por muitos e muitos anos dali em diante. Curiosamente, Aurora Bernárdez também atuou como tradutora (além de escritora) por toda a vida. O casal se manteria graças a esses trabalhos nas duas décadas seguintes. Eles eram contratados por empresas no exterior e por editoras argentinas, mas isso é história para daqui alguns parágrafos.

Livro Os Reis de Julio Cortázar

Em 1949, Cortázar, então com 35 anos, publicou “Os Reis” (Civilização Brasileira), seu segundo livro e primeiro título assinado com o nome próprio. Saía de cena Julio Denis e entrava para o cenário literário argentino Julio Cortázar. Pode parecer lógico, aos olhos dos leitores atuais, essa escolha do autor, mas ela não foi nada tranquila. Estampar Julio Cortázar na capa de uma obra remetia para o escritor e para seus parentes próximos as lembranças do pai, aquele sujeito homônimo que abandonara a família três décadas atrás. Lembremos que Julio Cortázar (estou falando do filho, tá?) sempre fora chamado de Florencio em casa (e continuou sendo depois de adulto – por que haveriam de mudar, né?). Por tudo isso, ao assumir seu nome original para o público, Julio Cortázar (o escritor!) colocava para sempre uma pedra em cima da relação tumultuada com o pai.


É preciso dizer que a única vez que o Sr. Cortázar (vamos chamá-lo daqui para frente dessa maneira para não haver confusão) escreveu para o filho foi justamente no período de lançamento de “Os Reis”. Ele não gostou de ver o rebento usando seu nome na capa de uma publicação (aparentemente esqueceu-se que o rapaz era seu homônimo ou quase homônimo – Julio Florencio Cortázar versus Julio José Cortázar). O que Julio Cortázar fez? Ele simplesmente ignorou a correspondência paterna e seguiu usando seu nome sem qualquer problema. Talvez se tivesse alguma dúvida se deveria se apresentar ou não dessa maneira, a partir dali teve certeza de que tomara a decisão certa.


“Os Reis” integrou a coleção de livros “Gulab y Aldabahor”, publicada pela revista portenha Nueve Artes. Fundada em 1948 pelo escritor Daniel Devoto, pelo pintor Emilio Pettoruti e pelo músico Juan Carlos Paz, o periódico apresentava ao público as novidades da cultura vanguardista da Argentina e da América Latina. A coleção “Gulab y Aldabahor” foi a maneira encontrada pelos proprietários da revista Nueve Artes para divulgá-la (algo que o jornal Folha de São Paulo faz até hoje no Brasil com suas coleções próprias de livros).


Assim como aconteceu com “Presencia”, “Os Reis” teve tiragem baixa (apenas 600 exemplares) e passou despercebido pela crítica e pelo público. Esse título é visto atualmente mais com estranhamento do que com admiração pelos fãs de Cortázar. Outra vez, não conseguimos enxergar as características tipicamente cortazianas nessa obra. “Os Reis” é uma prosa poética que emula uma peça teatral. A narrativa apresenta uma versão alternativa para o desfecho do Mito do Minotauro. Em outras palavras, esse livro tem um texto muito erudito, tanto pela linguagem utilizada quanto pela temática (o que torna sua leitura complicada), e carece de originalidade (alguns autores argentinos já tinham explorado essa passagem mitológica antes de Cortázar, entre eles Jorge Luis Borges).


Dividido em cinco atos e contendo apenas 80 páginas (trata-se de um livro bem curtinho), “Os Reis” se passa fundamentalmente na Ilha de Creta. O rei Minos trancafiou um de seus filhos bastardos, o Minotauro (criatura metade homem metade touro), em um labirinto. Assim, os habitantes da ilha não correm o risco de serem devorados pelo bichano. Contudo, para alimentar o Minotauro, Minos precisa periodicamente atirar no labirinto sete rapazes e sete moças. As vítimas são selecionadas entre os cidadãos de Atenas. Inconformado com essa situação, Teseu, príncipe ateniense, resolve acabar com a vida do Minotauro de uma vez por todas. Para realizar tal proeza, ele se candidata para entrar no labirinto. Ao invés de ser devorado pelo monstro, o herói de Atenas quer assassinar o carrasco de seus compatriotas.


Antes de começar sua aventura, Teseu conversa com Ariadne, a jovem e bela filha do Rei Minos. Ela é também irmã do Minotauro. Segundo a mitologia grega, Ariadne se apaixona por Teseu e tem uma ideia engenhosa capaz de ajudar o amado na perigosa expedição pelos labirintos da ilha. Porém, de acordo com a nova versão de Julio Cortázar para essa história clássica, as intenções e os amores da princesa de Creta são outros.


“Os Reis” demorou 65 anos para ser encenado nos palcos. Apenas em 2014, o francês Phillipe Fénelon transformou o drama mitológico de Cortázar em uma ópera. A versão cênico-musical de “Os Reis” se chamou “Les Rois” (justo, muito justo, justíssimo, como diria o outro) e foi exibida no Opéra National de Bordeaux.


Apesar de muito diferente das demais obras de Julio Cortázar, “Os Reis” tem alguns elementos narrativos que integraram mais à frente o estilo do autor argentino. Podemos citar o entrelaçamento de temas (espécie de novelo narrativo), o acentuado lirismo (prosa poética), a forte carga simbólica da trama e o teor existencialista da história. Por outro lado, esse título pode ser considerado o mais comportado de Julio Cortázar em relação à estrutura formal (ao lado de “Presencia”) e com o conteúdo mais erudito, mais elitista e mais rebuscado (ao ponto de sua leitura ser um porre!).


Em suma, podemos classificar as duas primeiras publicações do autor (“Presencia” e “Os Reis”) como sendo exemplares da fase quadradona da literatura de Cortázar. Em outras palavras, até esse momento não havia surgido o escritor revolucionário e inclinado a derrubar as paredes da narrativa ficcional. Julio Cortázar se limitava, pelo menos em seus dois livros de estreia, a repetir a lógica e a estrutura literária que os colegas estavam produzindo. Paradoxalmente, ele canalizava as invencionices e as propostas mais ousadas para os contos publicados nas revistas literárias.

Livro Bestiário de Julio Cortázar

Em 1951, Cortázar lança “Bestiário” (Civilização Brasileira), sua primeira coletânea de narrativas curtas. Aqui sim surge o escritor ousado, original e imprevisível que chacoalharia a literatura argentina e a ficção latino-americana. Em uma referência minha à famosa música de Caetano Veloso, é como se Cortázar, então com 37 anos, contribuísse para deixar “alguma coisa (está) fora da ordem/fora da nova ordem mundial/alguma coisa está fora da ordem/fora da nova ordem mundial”.


“Bestiário” foi a primeira publicação comercial de Julio Cortázar. Esse livro saiu pela Editorial Sudamericana, uma das mais tradicionais editoras de Buenos Aires. Sua tiragem foi, obviamente, maior do que os livros anteriores do escritor. É legal destacar que a Sudamericana foi a principal casa editorial de Cortázar na Argentina dali para frente. Julio trabalhou por muitos anos como tradutor e até o final da vida como autor ficcional nessa empresa. A relação profissional foi tão boa que Julio Cortázar e Francisco “Paco” Porrúa, diretor literário da Editorial Sudamericana e considerado o responsável por revelar o talento artístico de Cortázar para o mundo, se tornaram muito próximos. Paco se transformou, inclusive, no primeiro leitor das obras do amigo, contribuindo com comentários, dicas e sugestões de melhorias. Ele acabou sendo também um bom e leal confidente do escritor, que revelava seus problemas pessoais e suas inquietações literárias.


A relação com a Sudamericana e com Francisco “Paco” Porrúa foi tão frutífera que Julio Cortázar só lançou livros em outras editoras argentinas quando os editores da Sudamericana não gostaram do texto apresentado e se recusaram a publicá-lo. Isso aconteceu, por exemplo, com “Histórias de Cronópios e de Famas” (até hoje dou razão aos profissionais da companhia – eu também teria vetado esse projeto editorial!) e com “O Exame” (romance escrito em meados da década de 1950 e que foi preterido a “Os Prêmios” – a Sudamericana aceitou lançar apenas um romance dos dois entregues pelo autor).


“Bestiário” teve relativo êxito na Argentina no período de seu lançamento. É verdade que essa coletânea de contos não se tornou um sucesso retumbante de público (Julio Cortázar demoraria ainda uma década e meia para virar um escritor best-seller e nacionalmente conhecido), mas não foi ignorada pela crítica literária de Buenos Aires (como tinham sido “Presencia” e “Os Reis”). As resenhas sobre a obra foram muito positivas, destacando a originalidade e a força das narrativas curtas do jovem autor. Os elogios do livro aumentaram a fama de Cortázar entre os intelectuais e os fãs da literatura contemporânea. De certa maneira, “Bestiário” foi lido e exaltado pelos leitores habituais que o autor já possuía nas revistas literárias.


Os oito contos de “Bestiário” são: “Casa Tomada” (aquela trama que fora publicada nos Los Anales de Buenos Aires em 1946), “Carta a Uma Senhorita em Paris”, “Distante” (também chamado de “Longínqua” em algumas traduções para o português), “Ônibus”, “Cefaleia”, “Circe”, “As Portas do Céu” e “Bestiário” (narrativa que emprestou seu nome ao título da coletânea). O livro tem 144 páginas e possui uma leitura muito mais prazerosa e fluída do que as obras anteriores do autor.


Alguns motivos fazem de “Bestiário” uma publicação tão importante para a carreira de Julio Cortázar. Esse título, para começo de conversa, representou a estreia do argentino nas coletâneas de narrativas curtas, gênero que ele se tornaria genial. É mais ou menos como se Pelé houvesse jogado apenas como zagueiro e um dia o colocassem como meio-campista ofensivo e atacante. Aí toda a magia realmente acontece! Por mais que Cortázar já publicasse seus contos nas revistas portenhas há quase uma década, o lançamento de um livro é algo diferente pois aumenta potencialmente o público leitor e perpetua o trabalho do autor (isso é, se ele tiver qualidade).


Outro aspecto interessante é que “Bestiário” marcou o ingresso de Julio Cortázar no Realismo Mágico. Essa é a primeira obra desse gênero do autor, que repetiria a dose nas obras seguintes (“Final do Jogo” e “As Armas Secretas”). Até hoje, Cortázar é lembrado, pela maioria do público, como um escritor fantástico. É parcialmente correto pensar dessa forma já que a literatura do argentino não ficou limitada a essa corrente artística. Quando “Bestiário” chegou às livrarias, o Realismo Fantástico já vigorava na América Latina – o termo foi cunhado, em 1949, pelo escritor cubano Alejo Carpentier para designar o tipo de produção ficcional que estava sendo praticada no continente. Contudo, o auge desse tipo de literatura só viria mais tarde, nos anos 1960 e 1970 – período chamado de Boom Latino-americano.


“Bestiário” também traz alguns dos contos mais famosos de Cortázar até hoje. Destaque para os cultuados “Casa Tomada”, “Carta a Uma Senhorita em Paris”, “Circe”, “Cefaleia” e “Bestiário”, verdadeiras obras-primas da narrativa curta, da ficção em língua espanhola e do Realismo Fantástico. Repare que estamos falando de cinco histórias marcantes de oito que o livro possui. É muita coisa! Isso quer dizer, então, que as demais tramas dessa obra são fracas? Não! Por incrível que pareça, uma das características principais de “Bestiário” é reunir ótimas histórias do começo ao fim – não há conto de baixo nível nesse título. A questão é que “Distante/Longínqua” “Ônibus” e “As Portas do Céu” acabaram, por um motivo ou outro, não se tornando tão conhecidos pelos leitores atuais, mas são narrativas de ótima qualidade (gosto muito de “Ônibus”, um thriller aterrorizante construído a partir de uma viagem aparentemente normal no transporte público).


Por fim, mas não menos importante, “Bestiário” representou a afirmação estilística e narrativa de Julio Cortázar. De uma maneira mais técnica, podemos dizer que essa obra serviu para o escritor descobrir sua voz e sua linha editorial. O próprio Cortázar reconheceu esse aspecto em entrevistas concedidas à imprensa e nas correspondências trocadas com os amigos. Para ele, esse livro é seu primeiro grande trabalho literário, um título digno de orgulho e de satisfação. Em “Bestiário”, o autor argentino achou algumas temáticas bem pessoais para explorar e um jeito de escrever que iria acompanhá-lo até o fim da vida. Surgia, assim, as bases do trabalho de um dos maiores contistas da história e uma das grandes figuras do Realismo Fantástico Latino-americano.


Poucos meses depois do lançamento de “Bestiário”, Julio Cortázar deixou Buenos Aires e se mudou para Paris. A troca de cidade teve como justificativa a bolsa de estudo de um ano concedida pelo governo francês ao escritor. Quando chegou na Europa, em novembro de 1951, Julio não pensava que iria morar lá para sempre. Até por isso, Aurora Bernárdez, namorada/noiva do autor, não se juntou imediatamente a ele. Porém, com o passar dos meses, com o fim da bolsa de estudo e com a chegada de Aurora à França, o casal optou por não regressar à Argentina. A situação política no país sul-americano, mergulhado em uma ditadura militar cada vez mais violenta, repressora e de filosofia retrógrada, foi decisiva para Julio e Aurora fixarem residência definitivamente em Paris. Os brasileiros que assistem desde 2018 à deterioração econômica, política, ambiental e moral de seu país (o que acarretou, infelizmente, em uma multidão de compatriotas que emigraram para a América do Norte e para a Europa nos últimos três anos) vão entender claramente a decisão de sete décadas atrás do escritor argentino.


Em Paris, Julio Cortázar e Aurora Bernárdez arranjaram rapidamente empregos e se integraram à cultura europeia. Conforme já faziam em Buenos Aires, eles colocaram em suas rotinas a visita frequente a exposições, cinemas, concertos, teatros e cafés. Ou seja, se tornaram figuras recorrentes na boemia e nas artes locais. O que ajudou ainda mais nessa adaptação do casal foi sua incorporação a um animado grupo de intelectuais da capital francesa. Quem leu “O Jogo da Amarelinha” e/ou “62 Modelo para Armar” entenderá o que as novas amizades representaram para os emigrantes argentinos (sim, esses romances de Cortázar tiveram aspectos autobiográficos!). Quando as saudades da terra natal batiam, Julio e Aurora viajavam para o lado de cá do Atlântico para rever amigos e parentes. A cada dois anos basicamente, eles voltavam para Buenos Aires, onde permaneciam de férias por algumas semanas.


O casamento de Julio Cortázar e Aurora Bernárdez ocorreu em agosto de 1953. Enquanto ele trabalhou na área administrativa de uma distribuidora de livros parisiense, como tradutor para editoras latino-americanas e como revisor, tradutor e intérprete na Unesco, ela dedicou-se às traduções para o espanhol de escritores franceses e italianos. Os primeiros anos na Europa não foram financeiramente fáceis para o casal. Eles não tinham uma vida abastada, o que exigia muita parcimônia e juízo. Porém, isso nunca foi desculpa para não mergulharem nos encantos artístico-culturais do Velho Continente. Assim, os argentinos não podiam se dar ao luxo de recusar trabalho. Por isso mesmo, viveram um ano na Itália, onde Cortázar realizou traduções de importantes autores europeus. O principal trabalho nessa linha foi a tradução das obras completas de Edgar Allan Poe para o espanhol. O serviço foi solicitado por uma universidade porto-riquenha e foi finalizado em 1956.

Livro Final do Jogo de Julio Cortázar

Ainda em 1956, Julio Cortázar publicou “Final do Jogo” (Civilização Brasileira), seu quarto livro e sua segunda coletânea de contos. Curiosamente, essa obra foi lançada primeiramente no México, pela Editorial El Presentes, e apenas oito anos depois na Argentina, pela Editorial Sudamericana. Na versão mexicana, o título tinha nove contos. Já na versão argentina, foram incorporadas outras nove histórias. Assim, na edição que temos hoje em dia, “Final do Jogo” possui 18 tramas.


Para quem possa ter estranhado Cortázar ter publicado um livro na América do Norte e não na América do Sul, a explicação para esse fato é um tanto simples. O escritor argentino estava trabalhando naquela época para editoras e universidades da América Central e do México, mesmo residindo na Europa (e há quem diga que o Anywhere Office é um conceito recente, Santo Deus!). Essa proximidade com os literatos e com os editores daquela região do planeta viabilizaram o lançamento do novo livro de Julio pela editora da Cidade do México.


Além disso, não podemos excluir a possibilidade dos militares argentinos, que viviam um período tumultuado após a retirada à força de Juan Domingo Perón da Casa Rosada em 1955, terem censurado a publicação de autores malquistos pelo regime. E, como podemos lembrar, Cortázar integrava esse time de figuras não alinhadas à ditadura militar desde a época em que trabalhou na Universidade de Cuyo, em Mendoza, na metade dos anos 1940. Todavia, essa última parte da explicação do lançamento de “Final do Jogo” em terras mexicanas não passa de mera hipótese da minha parte (como diria minha falecida avozinha, onde tem fumaça, geralmente tem fogo...).


Os contos de “Final do Jogo” foram produzidos entre 1945 (período em que Julio Cortázar morava na Argentina) e 1962 (fase em que o autor já vivia na França). Por isso, as tramas dessa obra foram ambientadas tanto na América do Sul quanto na Europa. As 18 narrativas do livro estão distribuídas em 224 páginas e são divididas em três partes. Na primeira seção, temos: “Continuidade dos Parques”, “Ninguém Tem Culpa”, “O Rio”, “Os Venenos”, “A Porta Incomunicável” e “As Mênades”. Na segunda, as histórias são: “O Ídolo das Cíclades”, “Uma Flor Amarela”, “Sobremesa”, “A Banda”, “Os Amigos”, “O Móvel” e “Torito”. E na parte final, as tramas apresentadas são: “Relato com um Fundo de Água”, “Depois do Almoço”, “Axolotes”, “A Noite de Barriga Para Cima” e “Final do Jogo” (conto que empresta seu nome ao título da coletânea).


“Final do Jogo” é outra das obras marcantes de Julio Cortázar, exaltada até hoje pelo público e pela crítica. Dos seus contos, gostei muito de “Continuidade dos Parques”, “Ninguém Tem Culpa”, “Os Venenos”, “Sobremesa”, “Depois do Almoço”, “Final do Jogo” e “Axolotes”. Do ponto de vista formal, nota-se que esse livro tem narrativas mais complexas, mais bem elaboradas e mais enigmáticas do que “Bestiário”, o que exige maiores níveis de concentração e de esforço por parte dos leitores. Por outro lado, esse título não tem histórias tão memoráveis quanto a coletânea anterior. É difícil até apontar quais de seus contos estão entre as obras-primas de Cortázar. Talvez as histórias mais celebradas atualmente dessa coleção sejam “Continuidade dos Parques”, “A Noite de Barriga Para Cima”, “Axolotes” e “Final do Jogo”. A força narrativa de “Final do Jogo” reside justamente na sua coletividade e não na individualidade de suas histórias.


São vários os motivos que fazem de “Final do Jogo” um livro tão importante para Julio Cortázar. Para começo de conversa, essa foi a primeira publicação do autor após a mudança para a Europa. Essa obra foi também a primeira do argentino a ser lançada no exterior (fora da Argentina). Além disso, essa coletânea prossegue com o Realismo Fantástico, gênero literário que Cortázar havia embarcado na década anterior e que iria explorar ao longo dos anos 1950.


Outro fator que precisamos destacar em “Final do Jogo” é que Julio Cortázar potencializou os recursos estilísticos e as propostas narrativas introduzidas em “Bestiário”. Um bom exemplo disso é a brincadeira de dividir as histórias do livro em níveis de dificuldade (algo que muitos leitores chegaram/chegam a acreditar). Temos também, em “Final do Jogo”, tramas que mesclam bom humor, forte simbolismo e elementos surrealistas, características essas tipicamente cortazianas e que seriam cada vez mais exploradas dali em diante.


A grande novidade dessa coletânea de contos está na inserção de narrativas românticas, algo que não havia aparecido até esse momento na prosa de Julio Cortázar. Não por acaso, as histórias que mais gostei em “Final do Jogo” foram justamente as mais sentimentais (além de ótimas, elas me surpreenderam – não imaginava encontrar esse tipo de texto no portfólio de Julio Cortázar). Porém, esse livro não é feito apenas de dramas amorosos. “Final do Jogo” possui narrativas com temáticas e estilos/gêneros literários bem variados. Por exemplo, temos aqui tramas que misturam realidade e ficção, histórias que embaralham a noção de vida normal com elementos oníricos, enredos tragicômicos ancorados em cenas banais do cotidiano, narrativas sobrenaturais/surreais e contos com pegada policial e de suspense, além, como já falei, de dramas amorosos.


Em 1959, Julio Cortázar lança “As Armas Secretas” (Best Seller), sua terceira coletânea de contos. Com 160 páginas, esse livro traz cinco narrativas curtas: “Cartas de Mamãe”, “Os Bons Serviços”, “As Babas do Diabo”, “O Perseguidor” e “As Armas Secretas”. No caso de “O Perseguidor”, a história mais importante dessa obra, é possível classificá-lo como uma novela (afinal tem quase 60 páginas). A maioria das tramas de “As Armas Secretas” possui enredos fantásticos. Por isso mesmo, dá para enxergar essa coleção como sendo uma publicação do gênero Realismo Fantástico – continuação natural do que fora praticado em “Bestiário” e “Final do Jogo”.


Entretanto, sob um olhar mais crítico, esse título marcou o encerramento da literatura fantástica de Cortázar. A partir desse momento, o autor argentino acrescentou doses mais elevadas de outros elementos ficcionais em seus novos livros. Dessa maneira, ficou complicado, dali em diante, chamarmos sua produção ficcional de mágica. Até havia elementos fantásticos em seus textos, mas eles não eram mais predominantes como em “Bestiário”, “Final do Jogo” e “As Armas Secretas” (trio de coletâneas que constitui a fase de Realismo Fantástico do autor).


É interessante notar que a produção literária de Julio Cortázar continuou evoluindo consideravelmente. “As Armas Secretas” é uma publicação melhor do que “Final do Jogo”, que havia suplantado “Bestiário”. Para completar, o novo título ainda trouxe algumas novidades de ordem estilística (que já vamos explicar a seguir). Não por acaso, esse livro foi muito elogiado na Argentina e aumentou a fama de seu autor junto ao público de intelectuais de Buenos Aires. Até hoje, “As Armas Secretas” tem alguns dos contos mais famosos de Cortázar. Podemos citar como exemplares de textos memoráveis dessa coletânea “As Babas do Diabo” (mais tarde adaptado para o cinema por Michelangelo Antonini), “Cartas de Mamãe”, “As Armas Secretas” (conto que transmitiu seu título ao nome da coleção) e “Perseguidor”.


“Perseguidor” é considerado por muita gente (e até pelo próprio escritor argentino) como o melhor texto literário de Julio Cortázar até ali. Foi essa narrativa justamente a responsável por decretar o fim da fase fantástica do autor. Com inclinação evidentemente existencialista (extraída das angústias e reflexões mais íntimas de Julio) e com forte componente de crítica político-social (agora sim intencional e não produto da interpretação do leitor, como no conto “Casa Tomada”), o enredo de “Perseguidor” apresenta o drama de um homem amargurado, melancólico e que não se encaixa nas convenções sociais em voga. Não por acaso, essa é a linha narrativa que Cortázar iria seguir na década seguinte, tanto em seus romances quanto em suas coletâneas de contos.

Livro Os Prêmios de Julio Cortázar

Por falar nisso, “Os Prêmios” (Civilização Brasileira) é o primeiro romance de Cortázar. Essa obra foi publicada em 1960, na Argentina, pela Editorial Sudamericana. Nesse livro, assistimos a uma intrigante sátira que usa o contexto político-social argentino do final dos anos 1950 (que pode muito bem ser exportada para a realidade brasileira dos dias atuais). Esse período foi marcado pela queda do Peronismo (de viés nitidamente esquerdista) e pelo triunfo de Arturo Frondizi (de propostas claramente direitistas). Além do texto engajado (obviamente, trata-se de uma narrativa alegórica), Julio Cortázar acrescentou doses generosas de Surrealismo, de reflexões existencialistas, de thriller policial e de dramas pessoais. Por isso, enxergo esse título mais como um exemplar da literatura filosófica ou da literatura surrealista do que como um integrante da literatura fantástica. Até há elementos mágicos no romance, mas eles estão em menor quantidade e em menor intensidade do que os componentes existencialistas e surrealistas).


O resultado de “Os Prêmios” é muito positivo. A partir de um enredo simples (grupo de vencedores da loteria ganha como premiação a participação em um cruzeiro transatlântico, mas a viagem se mostra tragicômica – eles sofrem a bordo da privação das liberdades individuais, são alvos da disseminação de notícias falsas, são vítimas da insensibilidade dos poderosos e assistem à eclosão de uma revolta contra a tripulação) e com uma estrutura narrativa de características tradicionais (não há as maluquices que Cortázar iria praticar dali para frente), esse livro permite uma leitura prazerosa e polissêmica, apesar do ritmo um tanto lento. Não à toa, esse é o meu romance favorito de Cortázar (prefiro muuuito mais “Os Prêmios” a “O Jogo da Amarelinha” e “62 Modelo para Armar”).


Como todo bom texto com engajamento político, “Os Prêmios” dividiu as opiniões da crítica literária portenha. Há quem tenha adorado o romance e há quem o tenha detestado. Curiosamente, Julio Cortázar afirmou, mais tarde, que sua intenção era produzir um livro com pegada surrealista e existencialista e não uma obra com viés político-ideológico (crítica à atuação dos militares e à instalação da ditadura na Argentina). Será mesmo?! Duvido. Vivendo há quase uma década no exterior, o autor conseguia enxergar com mais nitidez os problemas de seu país e, evidentemente, não concordava com a postura equivocada de muitos dos seus compatriotas (que apoiavam o regime de governo autoritário, repressor e excludente). Além disso, ele estava cada vez mais engajado com as questões político-ideológicas do seu tempo – leia, Guerra Fria. Um bom exemplo foi sua admiração incontida pela Revolução Cubana por muitos e muitos anos.


Essa aproximação com o regime castrista e com os intelectuais cubanos transformou Julio Cortázar, anos mais tarde, em um dos principais propagandistas na Europa e na Argentina da Revolução Socialista em Cuba. De certa maneira, esse foi o encontro do escritor com os valores esquerdistas já que quinze anos antes ele havia se oposto ferrenhamente ao peronismo. Com uma maior preocupação social e uma forte inclinação ideológica, Julio Cortázar visitou duas vezes Havana, em 1961 e 1963, e, em 1970, declarou apoio ao governo de Salvador Allende no Chile.


Com esse histórico de Cortázar, é possível “Os Prêmios” não ter sido escrito com propostas tão políticas? Se considerarmos que o romance foi produzido no final dos anos 1950, período em que as inclinações ideológicas do autor não tinham sido afloradas, é muito provável que Julio Cortázar tenha falado a verdade quando disse que não era sua intenção produzir um livro a partir da perspectiva política. Por outro lado, talvez ele tivesse com esse tema em seu subconsciente e o expôs sem perceber (comentário meu que é um prato cheio para as discussões dos psicólogos, né?). Prova disso é que mais tarde ele iria mergulhar de cabeça no panorama social e nas intrigas geopolíticas da América Latina.


De qualquer maneira, o que interessa é o valor literário dessa obra. E “Os Prêmios”, como já disse, é excelente. Sua história começou a ser escrita em uma viagem marítima de Julio Cortázar pela América do Sul (lembremos que ele viajava de férias para cá a cada dois anos). Entre o finalzinho de 1958 e o início de 1959, o escritor e sua mulher regressaram à Buenos Aires para rever os amigos e os familiares. Aí aproveitaram para realizar um cruzeiro pelo litoral argentino, uruguaio e brasileiro. Enquanto os demais passageiros aproveitavam as atrações em alto-mar, Cortázar se trancou na cabine e produziu os primeiros capítulos de “Os Prêmios”. Só depois de retornar para Paris, ele finalizou a história.


Com 432 páginas, “Os Prêmios” possui cinco partes (“Prólogo”, “Primeiro Dia”, “Segundo Dia”, “Terceiro Dia” e “Epílogo”) e tem 54 capítulos. O enredo desse título inicia-se no London, um café-bar de Buenos Aires. Os vencedores da loteria e seus respectivos acompanhantes se reúnem no estabelecimento pois dali serão levados para a embarcação. Como prêmio da Loteria Turística, eles ganharam uma viagem de navio com tudo pago. Porém, ninguém sabe exatamente para onde o cruzeiro seguirá nem os detalhes da viagem. A única coisa que sabem é que a jornada marítima irá durar entre três e quatro meses, fato que deixa todos empolgados.


A partir do café, o grupo é levado por uma escolta policial até o Malcolm, o navio contratado para operar o cruzeiro e que está atracado no porto. Os sortudos sobem a bordo e a viagem começa. Uma vez iniciado o cruzeiro, os passageiros notam uma série de acontecimentos bizarros. O capitão da embarcação não se apresenta ao grupo. Não é servida nenhuma refeição na primeira noite. Os turistas não podem circular livremente pelo Malcolm (a popa do navio é território exclusivo da tripulação). Os poucos funcionários à disposição não falam espanhol. E, o que aumenta ainda mais a preocupação de todos, os detalhes da viagem e do itinerário não são revelados.


Por causa das incontáveis esquisitices ocorridas no Malcolm, o grupo de passageiros se divide. Há quem queira confrontar o capitão da embarcação e os tripulantes, exigindo respostas objetivas e melhores condições de estadia. E há quem queira simplesmente aproveitar a viagem e as atrações disponíveis, esquecendo-se dos inconvenientes e da postura pouco usual dos funcionários do navio. A partir daí, a viagem se transformará em uma trama surrealista. Além das intrigas entre os dois grupos de premiados da loteria (que podemos chamar de progressistas e de conservadores) e do choque entre passageiros e tripulação (que podemos chamar de oprimidos e de opressores), o romance apresentará os conflitos pessoais dos passageiros: amores, traições, inveja, desavenças familiares, descobertas sexuais etc.


Como alegoria política, “Os Prêmios” é um livro impecável. A única parte que não gostei foi dos capítulos em letras (a obra é dividida em capítulos numéricos, com a trama tradicional, e os capítulos em letras, com as reflexões filosóficas de uma das personagens). Nessa parte, temos um texto hermético, de linguagem erudita e com muitos devaneios oníricos e filosóficos. Simplesmente não entendi muita coisa dessa seção (para ser franco, não entendi absolutamente nada!). Seria esse fragmento o pontapé inicial das experimentações narrativas que Julio Cortázar faria dali para frente?! Acho que sim.


Antes de falarmos dessa fase mais experimental da literatura cortaziana, é legal pontuar uma questão relevante da vida pessoal do autor que, queiramos ou não, acabou refletindo em sua produção ficcional. Os anos 1960 foram marcados por uma maior fartura financeira na casa de Julio e Aurora. Os tempos de orçamento doméstico apertado e de dificuldades para pagar as contas ficaram definitivamente para trás. Trabalhando na Unesco e com serviços de tradução rentáveis (realizados para importantes editoras latino-americanas), Cortázar começou a ganhar satisfatoriamente bem. O salário de Aurora Bernárdez também cresceu. Assim, o casal comprou, no início dos anos 1960, um apartamento velho e grande em um bairro tranquilo e de classe média em Paris.


Após uma profunda reforma, a residência se tornou confortável. Com mais espaço em casa, Julio construiu um escritório para si no apartamento e ali pôde se dedicar com mais afinco à sua produção literária. Se você ainda não dá o devido valor para um espaço particular a quem pratica o ofício da escrita criativa, sugiro ler “Um Teto Todo Seu” (Tordesilhas), o brilhante ensaio de Virginia Woolf de 1928. Nessa obra, a romancista inglesa expõe por A mais B a importância de um cantinho próprio para os escritores (além da importância de certa estabilidade financeira, algo que Cortázar também adquiriu nesse período).


Acredito que o escritório próprio (e a vida sem tantas limitações financeiras) tenha influenciado consideravelmente o trabalho ficcional de Cortázar. Não por acaso, nos anos seguintes, ele lançou livros quase que anualmente. Trata-se de um ritmo muito mais intenso do que o praticado nos anos anteriores. Está duvidando de mim? Então veja os seguintes dados: nos anos 1930, o autor argentino publicou um livro; nos anos 1940, teve uma obra lançada; e nos anos 1950, foram três publicações. Aí, nos anos 1960 (com o escritório privado em casa e alguma reserva monetária), Julio Cortázar teve sete títulos publicados. Essa quantidade supera o acumulado nas três décadas anteriores.


Até aqui podemos dizer que o trabalho ficcional de Julio Cortázar se manteve mais ou menos comportado. Seu romance de estreia (“Os Prêmios”) e suas três coletâneas de contos fantásticos (“Bestiário”, “Final do Jogo” e “As Armas Secretas”) apresentaram narrativas interessantes e originais, mas não romperam com a lógica das estruturas convencionais da literatura. A proposta mais ousada e disruptiva de Cortázar só surgiria a partir de agora.

Livro Histórias de Cronópios e de Famas de Julio Cortázar

Publicado em 1962, “Histórias de Cronópios e de Famas” (Best Seller) é a obra que inaugura essa nova fase do escritor. Ele é também o livro mais amalucado (e, portanto, polêmico) de Julio Cortázar. Esse título abre o período de maior radicalismo narrativo do argentino, que perduraria até o final daquela década. Com 144 páginas e 67 microcontos divididos em quatro partes (“Manual de Instruções”, “Estranhas Ocupações”, “Matéria Plástica” e “Histórias de Cronópios e de Famas”), “Histórias de Cronópios e de Famas” potencializou o humor nonsense do autor e criou um universo ficcional particular com seres próprios (os cronópios, os famas e os esperanças), obviamente alegorias de tipos sociais. Além disso, é inegável a ousadia de Cortázar em explorar as micronarrativas, um gênero textual até então pouco difundido na literatura comercial, e atrelá-las às reflexões filosóficas (do tipo existencialista) e às críticas político-sociais (agora sim intencionais!).


Qual foi o resultado objetivo de tanta inovação, hein?! Os críticos literários da Argentina caíram matando na obra. Eles foram categóricos e impiedosos em apontar “Histórias de Cronópios e de Famas” como um exemplar de péssima qualidade literária, algo incompatível com o potencial artístico de seu autor, que tantos admiradores havia deixado em Buenos Aires. Não é errado dizer que Julio Cortázar foi avacalhado pela crítica literária em seu país na época do lançamento desse livro. Somente mais tarde, após a publicação de “O Jogo da Amarelinha”, obra-prima da literatura latino-americana, e com a consolidação da carreira de Cortázar tanto nacional quanto internacionalmente, “Histórias de Cronópios e de Famas” começou a receber os primeiros elogios. No começo, as críticas positivas foram mais tímidas, mas hoje em dia há quem veja (acredite se quiser!!!) grandes qualidades ficcionais nesse livro (ai, ai, ai).


Produzido em Roma e em Paris entre 1952 e 1959, “Histórias de Cronópios e de Famas” foi lançado, na Argentina, pela Editorial Minotauro, na época uma pequena editora especializada em obras fantásticas e de ficção científica. Isso ocorreu porque a Editorial Suldamericana, editora principal de Julio Cortázar, não quis publicar esse livro. Não é preciso ser muito entendido em literatura para perceber que a Sudamericana agiu corretamente. Se fosse você ou tivesse sido eu os autores dos textos de “Histórias de Cronópios e de Famas”, na certa teríamos sido taxados de escritores péssimos, amadores e/ou zombeteiros. Se apresentássemos essa mesma coletânea em qualquer oficina literária no Brasil, na Argentina, nos Estados Unidos, na Europa ou em Marte, nossos colegas nos execrariam pelo restante de nossas vidas. Porém, como foi Julio Cortázar quem escreveu essas histórias, atualmente há quem veja esse livro como brilhante. Vai entender a mente humana, né?


Para mim, essa publicação não passou de uma grande brincadeira de Cortázar. Se você ler “Histórias de Cronópios e de Famas” com olhos mais brincalhões e irônicos, conseguirá achar muita graça em suas páginas (e verá algum valor na obra como um todo). Se você o ler com uma visão mais séria e sisuda, na certa atirará o livro pela janela antes de chegar à metade de seu conteúdo (e não conseguirá ver qualquer valor literário nas tramas). Por isso, não concordo com os lados extremos das avaliações de “Histórias de Cronópios e de Famas”. Não estamos diante de uma coletânea de contos péssima (por mais que pareça em um primeiro olhar), mas também não estamos diante de uma obra-prima da literatura argentina e mundial (por mais que os apaixonados pela ficção de Cortázar insistam em enxergar o livro dessa maneira).


Uma análise concreta e imparcial dirá que “Histórias de Cronópios e de Famas” é um título com muitos altos e baixos. Há microcontos interessantes, com algum valor literário, mas há também microcontos péssimos, sem qualquer relevância ficcional. É complicado, por exemplo, aceitar alguns textos da primeira parte, “Manual de Instruções”. Nesses capítulos/narrativas, acompanhamos as descrições pormenorizadas de hábitos banais que as pessoas fazem instintivamente no dia a dia. Mesmo assim, Cortázar explica detalhadamente como devemos subir as escadas, como devemos fazer para chorar, como cantar de forma correta, como fazemos para sentir medo... A ideia pode até ter sido interessante, mas sua execução não foi. Também achei muita viagem o texto da maioria das narrativas da quarta seção, “Histórias de Cronópios e de Famas” (que tem o mesmo nome da coletânea). Novamente, a ideia por trás das alegorias sociais foi ótima. O problema, outra vez, foi a execução. Não consegui sacar a maioria das ironias e críticas do autor.


Por outro lado, há algumas histórias excelentes na segunda e na terceira partes, respectivamente “Estranhas Ocupações” e “Matéria Plástica”. Paradoxalmente, essas seções são as mais tradicionais do livro e, por isso, são as menos comentadas atualmente. Meus microcontos favoritos de “Histórias de Cronópios e de Famas” são: “Tia em Dificuldades”, “Possibilidades da Abstração”, “História Verídica”, “Tema Para Uma Tapeçaria”, “Camelo Declarado Indesejável” e “Fábula Sem Moral”.

Livro O Jogo da Amarelinha de Julio Cortázar

Sem se incomodar com as fortes críticas negativas recebidas com “Histórias de Cronópios e de Famas”, Julio Cortázar publicou no ano seguinte, em 1963, “O Jogo da Amarelinha” (Companhia das Letras), seu segundo romance (e sua oitava obra autoral). Se você pensa que o escritor argentino diminuiu suas invencionices narrativas só porque elas não foram compreendidas pelo público, saiba que você está redondamente enganado(a). “O Jogo da Amarelinha” foi concebido para implodir boa parte das estruturas convencionais do romance e para subverter a lógica da linguagem literária. Ou seja, estamos falando de um livro ainda mais revolucionário do que o anterior. O próprio Cortázar reconheceu essa intenção. Em sua correspondência, ele afirmou, enquanto produzia a obra, que sua nova narrativa seria uma fábula metafórica que deveria ser vista como uma mandala labiríntica em busca da essência humana. Eita papo-cabeça esse, meu Deus!!! Se você não entendeu nada até aqui, leia ao livro – você entenderá menos ainda (brincadeirinha!).


Se pensarmos bem, “O Jogo da Amarelinha” tinha tudo para ser outra publicação execrada de Julio Cortázar. Em minha visão, a maioria do público e da crítica literária certamente teceria críticas negativas sobre esse livro, um exemplar típico da literatura não comercial. Com uma estrutura caótica, com um ritmo narrativo lento, com uma trama sem um conflito aparente, com discursos extremamente filosóficos e uma linguagem por vezes hermética, esse título é um desafio até para os leitores mais experientes. Confesso que sofri muito durante essa leitura. Contudo, para minha surpresa (e geral da nação), “O Jogo da Amarelinha” se transformou em um sucesso imediato de público e de crítica. Acredite se quiser: ele se tornou um best-seller na Argentina tão logo chegou às livrarias.


Nesse momento, o status de Cortázar como escritor mudou completamente. Se até aqui ele era conhecido apenas pelos intelectuais portenhos e pelos fãs das revistas literárias de Buenos Aires, depois da publicação de “O Jogo da Amarelinha” Julio virou um nome conhecidíssimo do grande público leitor da Argentina. Além disso, se antes o autor era visto como um artista polêmico, às vezes indecifrável, adepto das tramas fantásticas e profundamente experimental, agora ele se transformava em um autor maduro e com uma rica caixa de ferramentas literárias. Surgia, dessa maneira, a imagem de grande e talentoso escritor que perdura até os dias atuais.


É preciso dizer que “O Jogo da Amarelinha” é uma obra-prima da cultura argentina, da ficção latino-americana e da literatura mundial. Para a crítica literária, esse livro figura ao lado de “Cem Anos de Solidão” (Record), o romance cultuado de Gabriel García Márquez, “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (Martin Claret), o título máximo de Machado de Assis, e “Ficções”, a celebrada coletânea de contos de Jorge Luis Borges, como exemplares máximos dos cânones literários do continente.


O sucesso do livro na Argentina rapidamente se propagou para o mundo. Em poucos meses, “O Jogo da Amarelinha” foi lançado com êxito na Espanha e em outros países de língua espanhola (leia-se na América Latina). Em poucos anos, o romance ganhou versões em outros idiomas: francês, inglês, italiano, alemão, japonês etc. À medida que foi sendo publicada no exterior, também com repercussões comerciais e de crítica bastante positivas, a obra popularizou o nome de Cortázar como um dos escritores mais inovadores, cultos e talentosos do Realismo Fantástico, da Argentina e da América do Sul.


O sucesso de “O Jogo da Amarelinha” fez movimentar a procura pelo portfólio literário de Cortázar. Se até aqui, ele havia vendido pouquíssimos livros em seu país natal e só fora comercializado para valer no México, agora seus títulos antigos se tornavam muito procurados na Argentina e traduzidos para os quatro cantos do planeta. Os olhos do público e da crítica também sofreram uma bela mutação. O que eram vistos como excentricidade e maluquices narrativas de Julio Cortázar passaram a ser enxergados como particularidades autorais, textos instigantes e linha editorial inovadora. Nada como um dia depois do outro, né?


Com 592 páginas, o enredo de “O Jogo da Amarelinha” é dividido em três partes: “Do Lado de Lá” (36 capítulos), “Do Lado de Cá” (20 capítulos) e “De Outros Lados” (99 capítulos). Em “Do Lado de Lá”, acompanhamos a rotina de Horacio Oliveira, o protagonista (uma espécie de anti-herói moderno), em Paris. Intelectual argentino que se mudara há anos para a França, Oliveira vive com Lucía (chamada de Maga), sua namorada uruguaia, em um pequeno apartamento parisiense. A moça tem um filho ainda bebê, Carlos Francisco (chamado de Rocamadour), para desespero de Oliveira que não suporta os choros da criança (ele não é o pai de Rocamadour!).


Com a relação já desgastada com Maga, Horacio Oliveira tem uma amante, Pola. A relação extraconjugal é de conhecimento de todos, até de Maga, que parece não se importar muito com as puladas de cerca do namorado. A preocupação imediata da moça é cuidar do filho e evitar as investidas afetivo-sexuais de Ossip Gregorovius, um dos melhores amigos de Oliveira. Para Gregorovius, se o namorado de Maga tem uma amante, ela também pode ter um affair.


Sem emprego, com uma relação conjugal em franca deterioração e sem um lar estruturado, Horacio Oliveira passa os dias fumando, bebendo, caminhando pela cidade, divagando sobre questões existencialistas com os amigos, flertando com algumas mulheres que o atraem e observando o comportamento cada vez mais suspeito de Gregorovius e Maga. A impressão é que ele procura algo que nem mesmo ele sabe explicar o que é.


Em “Do Lado de Cá”, a trama do livro se passa em Buenos Aires. Oliveira retornou para seu país e vive agora na casa ao lado de Manuel Traveler, um antigo amigo de juventude. Enquanto Traveler é casado com Atalía Donosi de Traveler (Talita é seu apelido), Horacio Oliveira vive com a noiva Gekrepten. O protagonista terminou o relacionamento com Maga quando deixou a Europa e logo engatou o noivado com a antiga namorada que ele tivera antes da mudança para a França. Porém, Horacio se sente cada vez mais atraído por Talita, que o faz lembrar muito da antiga namorada uruguaia. As intenções afetivas do amigo logo chamam a atenção de Traveler. Ao invés de dar um basta nas intenções de Oliveira com sua mulher, Manuel Traveler apenas observa os desdobramentos.


Por fim, “De Outros Lados”, a terceira e última seção do livro, acompanhamos uma coleção de textos aparentemente avulsos. Aqui a narrativa de Cortázar volta tanto para a primeira parte quanto apresenta o desfecho da segunda parte. Além disso, “De Outros Lados” dá voz a Morelli, uma personagem até então coadjuvante em “Do Lado de Lá”. O escritor fictício que apareceu pontualmente nos capítulos iniciais do romance fala sobre suas obras e tece avaliações literárias e filosóficas. Não por acaso, esse é o trecho mais difícil da obra de Cortázar. É preciso identificar em qual parte da narrativa o texto se refere e quem está relatando/opinando.


“O Jogo da Amarelinha” é um drama existencialista com pegada surrealista. Notam-se o forte simbolismo das cenas e das atitudes das personagens (muita coisa é dita indiretamente, bem sutilmente) e o caráter metalinguístico da narrativa (a proposta é questionar formal e conceitualmente as bases estruturantes dos romances e da literatura como um todo). Além disso, o livro traz a mistura intensa de vozes (inclusive mudança de tipo de narrador – primeira pessoa e terceira pessoa) e de realidades (mergulho no universo onírico, no mundo imaginativo, nos pensamentos, nos sentimentos e nas lembranças das personagens). O leitor precisa promover uma leitura atenta e intensa para compreender quem está falando e o quê e quando está sendo dito.


A sensação que tive é que a leitura de “O Jogo da Amarelinha” se parece com a montagem de um quebra-cabeça. No início, você fica perdido e até desesperado por não conseguir enxergar o todo. Porém, à medida em que você vai chegando ao final do romance, você consegue vislumbrar a complexidade da narrativa e notar a beleza do enredo (apesar de sua estrutura caótica). Essa brincadeira lúdica é potencializada pela proposta que Julio Cortázar faz logo na introdução do livro. O leitor tem dois caminhos narrativos a seguir: ler a obra conforme a ordem de capítulos apresentada inicialmente ou ler a ordem alternativa rascunhada pelo autor. Incrível!


Podemos gostar ou não de “O Jogo da Amarelinha” (esse é o típico livro que ou você ama ou você odeia – não há meio do caminho), mas não podemos renegar sua qualidade e sua importância literária. Curiosamente, um dos maiores contistas do século XX (isso é, se ele não estiver entre os principais da história) teve como obra máxima um romance. Se pensarmos bem, essa é mais uma lógica que Julio Cortázar ajudou a quebrar com seu trabalho disruptivo.


Enquanto vivia as alegrias pelo sucesso profissional de “O Jogo da Amarelinha”, Cortázar se separou de Aurora Bernárdez. A relação matrimonial já vinha se desgastando desde o início dos anos 1960 e se encerrou definitivamente por volta de 1967. O autor, todavia, não ficou muito tempo sozinho. Na iminência do término do casamento, ele começou a flertar com Ugné Karveis, embaixadora lituana da Unesco que trabalhava no mercado editorial. Ugné era 22 anos mais jovem do que o argentino e antes de iniciar o namoro com Julio o conhecia apenas do ambiente de trabalho (lembremos que o escritor continuava atuando como funcionário da Unesco). Ugné Karveis e Julio Cortázar moraram juntos no apartamento dele em Paris. Apesar de nunca ter se casado oficialmente, o novo casal viveu como marido e mulher por onze anos.


A segunda metade da década de 1960 foi muito produtiva para Cortázar. Além do novo relacionamento amoroso, ele lançou um livro por ano entre 1966 e 1969. Nesse período, foram publicados um romance, uma coletânea de contos e duas coleções textuais que mesclam microcontos, crônicas, poemas, ensaios e fragmentos retirados de vários lugares, além da inserção de fotografias, desenhos e gravuras. Como já deve ter transparecido na frase anterior, o escritor continuou promovendo inovações literárias em seus novos títulos.

Livro Todos os Fogos o Fogo de Julio Cortázar

Em 1966, ainda na esteira da repercussão bombástica de “O Jogo da Amarelinha”, Julio Cortázar publicou “Todos os Fogos o Fogo” (Best Seller), sua quinta coleção de narrativas curtas (e seu nono livro no geral). Nota-se a maturidade artística do autor pela qualidade dessa obra, que para mim é seu melhor trabalho na ficção (meu livro favorito do argentino é “Os Prêmios”, mas reconheço que “Todos os Fogos o Fogo” é um título superior, muito superior). Essa publicação possui oito histórias. Algumas das tramas de “Todos os Fogos o Fogo” estão entre os clássicos da literatura em língua espanhola. “A Autoestrada do Sul” e “A Saúde dos Doentes” são simplesmente imperdíveis (estão na lista dos melhores contos que já li). “Instruções a John Howell”, “Todos os Fogos o Fogo” e “O Outro Céu” são também excelentes narrativas.


Interessante notar que, nessa obra, Julio Cortázar volta a explorar mais fortemente o universo do Realismo Fantástico, algo que ele fizera na década de 1950 e que havia interrompido (um pouco) nos anos 1960 (quando caminhou com mais intensidade pelos enredos existencialistas). Além disso, o escritor argentino não exagerou tanto nas invencionices narrativas como tinha feito nas últimas duas publicações. Aqui o que vale é a qualidade da contação das histórias em si e não tanto as revoluções estéticas propostas (que muitas vezes causam mais confusão do que admiração). Assim, “Todos os Fogos o Fogo” dialoga mais com “Bestiário”, “Final do Jogo” e “As Armas Secretas” do que com “Os Prêmios”, “O Jogo da Amarelinha” e “Histórias de Cronópios e de Famas”.


O que mais gostei em “Todos os Fogos o Fogo” foi a capacidade absurda que Cortázar tinha para tornar passagens banais do dia a dia em cenas fantásticas, surreais e/ou tragicômicas. Em outras palavras, ele tinha a habilidade para transformar um episódio aparentemente pequeno em algo grandioso, um flash narrativo fútil em uma coisa importante e um recorte singelo da realidade em um artigo nobre. Isso se dá porque, em um determinado ponto da narrativa, o cotidiano tranquilo e normal sai do controle e descamba para dramas estrambólicos e com finais quase sempre surpreendentes. Essas são marcas da ficção de Julio Cortázar e que nesse livro ficam mais evidentes.


Outra característica forte do autor que notamos nessa coletânea de contos é o embaralhamento das diferentes noções de realidade. “Todos os Fogos o Fogo” mistura o real com a ficção, o sonho com a vida concreta, a verdade com a mentira, o universo imaginativo com o mundo efetivo e as lembranças com os acontecimentos factuais do presente. Grande parte da graça das tramas desse título está na brincadeira metafísica proposta por Cortázar, que vem aliada com muito bom humor e passagens de intensa violência.


Os melhores exemplos da união dos diferentes planos da realidade estão em “Senhorita Cora” e “Todos os Fogos o Fogo” (estou agora falando apenas do conto e não do livro homônimo como um todo). Nesses dois textos, acompanhamos a mudança do narrador no meio das frases (o que provoca uma polifonia de vozes) e a exposição simultânea de fatos que ocorreram em espaços e épocas diferentes (cabendo sempre ao leitor a delimitação das diferentes partes do enredo).


Em 1967, Julio Cortázar publicou no México, pela então recém-lançada Editora Siglo XXI, “A Volta ao Dia em Oitenta Mundos” (Civilização Brasileira). Esse foi o décimo trabalho ficcional do escritor argentino a ganhar as livrarias. “A Volta ao Dia em Oitenta Mundos” se tornou um grande sucesso de vendas. Essa obra só perdeu em número de exemplares comercializados para o best-seller “O Jogo da Amarelinha”.


Afinal, o que esse livro tinha de tão interessante para despertar o desejo do público leitor, hein? Para começo de conversa, seu nome é simplesmente espetacular. Ele faz, obviamente, referência a “A Volta ao Mundo em Oitenta Dias” (Principis), clássico de Júlio Verne. Adorei essa brincadeira intertextual – eu compraria essa obra do argentino só por isso. Além disso, “A Volta ao Dia em Oitenta Mundos” é uma publicação diferentona. Esse título não pode ser classificado como uma coletânea de contos convencional. Seus textos são fragmentados, caóticos e vem misturados com imagens, recortes e poemas.


O sucesso comercial de “A Volta ao Dia em Oitenta Mundos” levou Cortázar a replicar a fórmula dessa obra em “Último Round” (Civilização Brasileira), título lançado em 1969. Novamente temos aqui textos em prosa (crônicas e contos), poesia e ensaios (inclusive alguns dos mais famosos ensaios de Cortázar estão nesse livro – como aquele em que ele discorre sobre a prática da produção das narrativas curtas) mesclados com elementos não verbais (fotografias e desenhos). Também temos em “Último Round” um teor mais erótico (uma novidade na literatura de Julio Cortázar) e inserções de fragmentos anônimos (textos retirados do mundo e da imprensa).

Livro 62 Modelo para Armar de Julio Cortázar

Entre “A Volta ao Dia em Oitenta Mundos” e “Último Round”, Julio Cortázar publicou seu terceiro romance, “62 Modelo para Armar” (Civilização Brasileira). Esse livro interrompeu a boa fase comercial do autor – temos aqui o fim da lua de mel com os leitores e com a crítica literária que fora iniciada com “O Jogo da Amarelinha”. Com uma trama hermética, uma narrativa que flertava com o místico e um enredo caótico, “62 Modelo para Armar” é considerado até hoje o título mais experimental de Cortázar (o que não é pouca coisa!!!). Essa obra chegou às livrarias em 1968 e foi encarada com muito ceticismo pelo público. Há quem ache essa a leitura mais difícil e tediosa do argentino. Eu discordo. Para mim, “O Jogo da Amarelinha” é uma narrativa mais complicada e muito, muito mais chata!!!


A história de “62 Modelo para Armar” foi extraída de dois capítulos de “O Jogo da Amarelinha” – mais precisamente o capítulo 4, na qual se introduz o conceito filosófico do Modelo para Armar, e o capítulo 62, em que tal princípio é detalhado um pouco mais. O título da nova publicação é a junção dessas duas partes: conceito existencialista e o número da seção selecionada.


Para ser mais exato em meu relato, esse romance é uma brincadeira intertextual/metalinguística com o best-seller cortazariano. Afinal, “62 Modelo para Armar” é o livro que Morelli, personagem de “O Jogo da Amarelinha” e um escritor admirado pelo protagonista e pelo seu grupo de amigos naquela obra, disse que iria escrever. Se em um romance de Cortázar Morelli faz reflexões existencialistas e apresenta a ideia conceitual de uma narrativa que desejava escrever, no romance seguinte assistimos ao texto prático que fora prometido pela personagem. Não é preciso ter lido “O Jogo da Amarelinha” para acompanhar “62 Modelo para Armar”. Porém, quem já tiver lido a obra anterior de Julio Cortázar irá se lembrar dessas referências.


O enredo de “62 Modelo para Armar” pode ser dividido em três partes. Curiosamente, elas são apresentadas simultaneamente para os leitores. No primeiro fragmento narrativo, acompanhamos os dramas de Juan, um tradutor e intérprete argentino que vive na França há algum tempo. O rapaz é apaixonado por Hélène, uma jovem francesa que trabalha como anestesista em Paris e que não dá muita bola para ele. Para não ficar de mãos abanando, Juan tem uma amante dinamarquesa, Tell. A moça o acompanha na maioria das viagens internacionais e não demonstra ser apaixonada por ele. O casal está em viagem por Bruxelas. Paralelamente, Hélène, que continua trabalhando no hospital parisiense, hospeda Célia, uma estudante menor de idade, em sua casa. Essa proximidade das duas jovens irá trazer problemas para ambas.


Quem é apaixonada para valer por Juan é Nicole. Aqui começa justamente a segunda parte da trama. Nicole é ilustradora e namora Marrast, um conceituado escultor francês. O casal passa uma temporada em Londres. Enquanto Marrast está obcecado por um quadro que viu no Courtauld Institute, Nicole cogita largar tudo e se declarar para o tradutor argentino. Esse conflito de interesses coloca a relação de Marrast e Nicole em xeque.


A terceira parte do enredo de “62 Modelo para Armar” gira em torno de Calac e Polanca, uma dupla inseparável de amigos argentinos que vive na Europa. Eles acompanham Marrast e Nicole por Londres e passam os dias brigando um com o outro. Entre passeios furtivos pela capital inglesa e a formação de novas amizades, como a de Austin, um alaudista inglês que já integrou o grupo dos Neuróticos Anônimos, Calac e Polanca discutem os problemas sociais e políticos da Argentina e debatem questões existencialistas.


O maior problema de “62 Modelo para Armar” é que Morelli, que não aparece efetivamente nas páginas do romance, mas que é seu autor intelectual (segundo a concepção ficcional de Julio Cortázar), é um artista excêntrico e um sujeito chegadinho à divagação filosófica. Ou seja, o texto desse livro acaba refletindo essas características, o que pode desesperar alguns leitores. O que torna essa leitura mais complicada é a falta de separação do seu conteúdo em partes ou em capítulos. Temos aqui um texto corrido que embaralha os diferentes enfoques do enredo (três tramas são apresentadas simultaneamente). Além disso, as várias linhas narrativas (foco narrativo, tempo narrativo e espaço narrativo, por exemplo) também vem misturadas. Oh vida, oh dia, oh azar!


Muitas vezes, as mudanças de narrador (são vários e envolvem desde os protagonistas até personagens secundárias), de trama (os enredos distintos se integram de alguma forma), de locais (são basicamente três espaços geográficos – Paris, Bruxelas e Londres) e de tempo (não há determinação de quando as cenas efetivamente acontecem) se dão de uma frase à outra e no meio dos parágrafos. Quem leu os contos “Senhorita Cora” e “Todos os Fogos o Fogo”, ambos do livro “Todos os Fogos o Fogo”, irá se lembrar desse recurso. Julio Cortázar já havia explorado com sucesso essa estética caótica em suas narrativas curtas. Usá-la em um romance me pareceu um tanto excessivo (e extremamente ousado). Se eu gostei do resultado em “Todos os Fogos o Fogo”, em “62 Modelo para Armar” admito que não apreciei nem um pouco. Eita livro chato do cão, meu Deus!


Para complicar ainda mais, “62 Modelo para Armar” não possui um conflito aparente. O que suas personagens querem nessa trama afinal de contas?! Sinceramente, não sei. A frustração sentimental parece ser o único aspecto integrador das diferentes histórias e das várias figuras retratadas. Além disso, esse romance tem narrativa lenta (os leitores mais ansiosos vão sofrer muito), mistura de diferentes planos da realidade (cabendo a quem lê a obra a distinção do que é real, fictício, onírico, imaginativo...), expõe longas partes reflexivas (capaz de tirar do sério até mesmo as almas mais calmas), intercala textos em vários idiomas (inglês e francês por exemplo) e apresenta diferentes registros do discurso (cada página tem um registro distinto dos diálogos). Como disse, não temos aqui uma experiência literária das mais tranquilas e das mais agradáveis.


“62 Modelo para Armar” pode ser caracterizado como uma publicação surrealista e existencialista. Pela perspectiva do Realismo Fantástico, esse livro quase não tem componentes mágicos, principalmente se for comparado a “Bestiário”, “Final do Jogo”, “As Armas Secretas” e “Todos os Fogos o Fogo”, esses sim títulos genuinamente fantásticos.


Concluída a análise da ficção de Julio Cortázar, encerramos hoje a sétima temporada do Desafio Literário. Se você curte pra valer o melhor da literatura nacional e internacional, não fique chateado(a). No ano que vem, mais precisamente em abril, o Bonas Histórias retornará com o estudo dos principais escritores de ontem e de hoje. Até lá, o blog se dedicará apenas as análises de obras individuais – devidamente registradas nos posts da coluna Livros – Crítica Literária. Um ótimo final de ano, um excelente início de 2022 e incríveis leituras para todos!


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