Publicada em 1981, essa obra da Coleção Vaga-lume apresenta os dramas das crianças exiladas pela Ditadura Militar brasileira durante a década de 1970.
Nessa semana, (re)li “Meninos Sem Pátria” (Ática), o romance infantojuvenil mais famoso de Luiz Puntel. Achei o livro na estante da casa dos meus pais no começo do ano e o coloquei prontamente na minha lista de leitura de 2022. Essa obra estava na prateleira ao lado de vários títulos da Coleção Vaga-lume, a célebre coletânea da Editora Ática voltada aos leitores mirins (crianças e adolescentes) que fez (e ainda deve fazer!) enorme sucesso nas décadas de 1980 e 1990. Não é errado dizer que minha formação literária e meu desenvolvimento como leitor de ficção estão intimamente ligados às publicações da série Vaga-Lume. Por não me lembrar de absolutamente nada dessa história de Puntel (que eu deveria ter lido na época do colégio – do contrário não estaria na biblioteca particular da família), achei válido (re)ver “Meninos Sem Pátria” agora por uma perspectiva mais adulta, profissional e técnica. Afinal, quem manda ter um blog de literatura e ser viciado na análise das estruturas das narrativas ficcionais, né? Então, segue mais um post para a coluna Livros – Crítica Literária. Se eu não estiver enganado, esse é o quarto título infantojuvenil que detalhamos no Bonas Histórias só nesse ano.
Publicado em 1981, “Meninos Sem Pátria” apresenta um tema, por que não, delicadíssimo: a violência, a censura e a perseguição política perpetradas pela Ditadura Militar brasileira entre o final dos anos 1960 e o comecinho dos anos 1980. A proposta editorial de Luiz Puntel foi abordar esse terrível período da nossa história pelo ponto de vista das crianças e adolescentes, os filhos daqueles que precisaram fugir do país. Se tivessem ficado no Brasil quando o AI-5 foi decretado, na certa esses homens e mulheres (em sua maioria jornalistas, artistas, políticos da oposição, sindicalistas, religiosos, filantropos) teriam sido presos, torturados e/ou assassinados. Ou seja, assistimos em “Meninos Sem Pátria” aos acontecimentos históricos pelo olhar dos filhos dos exilados políticos, o lado mais fraco do lado mais fraco do embate ideológico que moldou boa parte da segunda metade do século XX.
Não à toa, os protagonistas do livro são membros de uma família que fugiu do Brasil e foi morar no Chile e, mais tarde, na França. O narrador do romance é um menino de dez anos (que no final da trama já é um rapaz de 19 anos). A pretensão dessa obra de Puntel é justamente mostrar a infância, a formação, o amadurecimento, o crescimento e a adolescência de uma geração de jovens brasileiros que foi obrigada a viver por vários anos fora do país. A partir de uma rotina longe da terra natal, qual a identidade cultural que eles adquiriram, hein?! E o que fazer quando a Lei da Anistia foi assinada, permitindo o retorno dos opositores do Regime Militar ao Brasil? Essa volta deveria ser comemorada ou lamentada?!
Nascido em Guaxupé, pequena cidade de Minas Gerais, em abril de 1949, Luiz Puntel cresceu no interior de São Paulo. A infância do escritor foi passada em São José do Rio Pardo e a adolescência em Ribeirão Preto. Depois de desistir do seminário, sua primeira opção de carreira, Luiz atuou como office boy, escriturário, auxiliar de assistente social e bancário. Após se formar em Letras, ele se tornou professor de Português e Redação e trabalhou em escolas, cursos preparatórios do vestibular, faculdades e universidades. Próximo de completar 73 anos e ainda muito ativo, Luiz Puntel tem atualmente uma empresa de cursos de Redação, Oratória, Língua Portuguesa e Produção Literária em Ribeirão Preto, cidade em que vive desde a primeira metade da década de 1960.
O contato extremamente próximo com os estudantes o ajudou no direcionamento de sua trajetória como autor ficcional. Puntel se especializou na literatura infantojuvenil e se transformou em um dos principais escritores brasileiros nesse gênero. Ele produziu vários romances (que podem ser chamados também de novelas sem que ninguém fique bravo com isso, tá?) voltados para crianças e adolescentes. Seus títulos mais marcantes são “Açúcar Amargo” (Ática) e “Meninos Sem Pátria”, best-sellers nacionais com dezenas e dezenas de edições. Não por acaso, “Açúcar Amargo” e “Meninos Sem Pátria” são legítimos clássicos da literatura brasileira. Outras obras relevantes do escritor mineiro são “Deus Me Livre!” (Ática), “O Grito do Hip-Hop” (Ática), “Tráfico de Anjos” (Ática), “Um Leão em Família” (Ática) e “Missão no Oriente” (Ática), todos lançados pela Série Vaga-lume. Por falar nisso, Luiz Puntel está entre os autores com mais obras publicadas pela famosa coleção infantojuvenil da Editora Ática, ao lado de Marcos Rey, Lúcia Machado de Almeida, Ofélia & Narbal Fontes, Maria José Dupré e Marçal Aquino.
A ideia de escrever uma obra que tratasse dos dramas das crianças exiladas surgiu no finalzinho da década de 1970, quando a Lei da Anistia foi promulgada pelo Governo Federal. Dessa forma, a partir de agosto de 1979, os brasileiros que haviam fugido do país com medo de serem presos ou mortos pelos milicos poderiam, enfim, retornar sem riscos de sofrer represarias. Pela televisão, Luiz Puntel assistiu à chegada de várias famílias nos aeroportos nacionais. A imprensa cobriu in loco as emocionantes cenas de reencontros e regressos de gente que estava vivendo há anos no exterior. Algumas semanas mais tarde, o escritor pôde conhecer pessoalmente alguns desses estudantes que voltavam ou pisavam no Brasil pela primeira vez. Como professor de uma escola em Ribeirão Preto, Puntel presenciou o processo de readaptação dos jovens alunos à nova realidade e soube das particularidades de várias famílias cruelmente perseguidas pela Ditadura Militar. Antevendo uma excelente matéria prima para um romance infantojuvenil, o escritor começou os trabalhos de confecção de seu livro mais polêmico.
“Meninos Sem Pátria” foi livremente inspirado no drama vivido por José Maria Rabelo, jornalista mineiro falecido no finalzinho do ano passado em Belo Horizonte aos 93 anos. Em 1952, Rabelo fundou o jornal O Binômio, que circulava na região metropolitana de BH e em Juiz de Fora. Com o Golpe Militar de 1964, o periódico que tinha uma atuação independente e crítica aos militares foi fechado. Contudo, o trabalho jornalístico de José Maria Rabelo de apontar os desmandos, as violências, os assassinatos e a corrupção do novo regime só estava começando. Não é preciso dizer que ele virou rapidamente alvo dos poderosos de Brasília. Para não ser preso ou morto, o jornalista teve que fugir do Brasil com a família (esposa e sete filhos). No exterior, José Maria Rebelo morou na Bolívia, no Chile e na França e trabalhou para alguns veículos internacionais de imprensa. Seu retorno ao país aconteceu no segundo semestre de 1979, justamente após a decretação da Lei da Anistia. Novamente em terras brasileiras, Rabelo dirigiu o semanário O Pasquim e a revista Cadernos do Terceiro Mundo.
Apesar de ter sido publicado originalmente em 1981, “Meninos Sem Pátria” só integrou a Série Vaga-lume em 1988. Foi a partir daí que o livro se tornou um best-seller e ganhou espaço nas estantes dos jovens estudantes brasileiros e nas bibliotecas da maioria das escolas nacionais. É legal dizer também que Luiz Puntel praticamente lançou um livro a cada dois anos pela tradicional coleção infantojuvenil entre 1984 e 1992. Afinal, “Deus Me Livre” é de 1984, “Açúcar Amargo” é de 1986, “Meninos Sem Pátria” é de 1988, “Um Leão em Família” é de 1990 e “Tráfico dos Anjos” é de 1992. Depois disso, o autor ainda publicou com a chancela da Vaga-lume “Missão no Oriente” em 1997 e “O Grito do Hip-Hop” em 2005.
Por mais paradoxal que possa parecer, há cerca de quatro anos “Meninos Sem Pátria” voltou a virar notícia na imprensa. A obra de Puntel foi, acredite se quiser, censurada em um colégio particular do Leblon, bairro elitista da zona Sul do Rio de Janeiro, em 2018. A acusação era que o livro infantojuvenil fizesse apologia ao comunismo. Segundo a instituição escolar, a pressão pela proibição do clássico de Luiz Puntel partiu de vários pais dos alunos. Aparentemente, eles estavam indignados com o conteúdo possivelmente subversivo de “Meninos Sem Pátria”. A polêmica foi estendida para as redes sociais, onde grupos de internautas favoráveis e contrários à medida da escola puderam opinar de um jeito bem estridente. Esse Fla-Flu literário-pedagógico (ou seria político-ideológico, hein?) só escancara o nível de polarização que nosso país atingiu de um tempo para cá. Do contrário, uma obra infantojuvenil não seria alvo da ojeriza do público mais reacionário, né?
Infelizmente, essa notícia indica também o quanto a ala mais conservadora (e retrógrada) da sociedade brasileira se assanhou nos últimos anos. Novamente no poder depois de quatro décadas e meia longe das cadeiras principais de Brasília, as viúvas da Ditadura Militar, um dos períodos mais trágicos do Brasil, querem esconder de qualquer maneira o passado pouco nobre do regime de exceção (violências, assassinatos, torturas, sequestros, corrupção etc.). E como o livro de Puntel mostra exatamente o quão nocivo foi aquele período, chamado de Anos de Chumbo, nada melhor do que proibir a publicação ou a leitura dele. A impressão que tenho é que nosso país ao invés de caminhar para frente só regride – ao ponto de a censura e a perseguição voltarem a fazer parte de nossa rotina.
O enredo de “Meninos Sem Pátria” se passa no intervalo de uma década. Para ser mais específico em meu relato, a história vai de 1969 a 1979. A trama começa em Canaviápolis, a pequena cidade (fictícia) do interior paulista que fica próxima a Ribeirão Preto, e enfoca o drama da família de José Maria e Terezinha. O romance é narrado por Marcão, o filho mais velho do casal. O menino de dez anos é chamado assim por todos pelo jeitão meio desengonçado de andar. No início do livro, Marcão tem uma infância aparentemente normal: adora fazer campeonatos de futebol de botão com o irmão mais novo Ricardo, joga peladas na rua com os vizinhos de prédio, tem bons amigos na escola Santos Dumont e é apaixonado por Ana Rosa, sua namoradinha. Para completar o cenário idílico, José Maria e Terezinha, que está grávida do terceiro filho, são pais amorosos, participativos e compreensivos. Assim, o que mais o garoto poderia querer na vida, hein?! Talvez seu grande sonho, nesse momento, seja assistir pela televisão aos craques da Seleção Brasileira levantando a Jules Rimet na Copa do Mundo no México.
Os problemas da família do protagonista começam quando José Maria, fundador e diretor do jornal independente O Binóculo, se torna alvo de ameaças e da perseguição explícita dos militares que tomaram o Governo Federal em 1964. Com a decretação do AI-5 em dezembro de 1968, o regime fardado ficou mais violento e a censura se transformou em norma no país inteiro. Por causa de artigos que denunciavam a tortura e o desaparecimento de religiosos e civis, José Maria rapidamente foi alçado à condição de subversivo. Para as autoridades da nação, o jornalista crítico e atuante precisava ser calado de qualquer maneira. Para tal, valia todo tipo de pressão psicológica possível: importunar a família com ligações telefônicas ofensivas, seguir os passos dos filhos pelas ruas de Canaviápolis, destruir a redação do jornal, intimidar a esposa grávida, apavorar as crianças na portaria do prédio e chantagear os patrocinadores de O Binóculo.
Percebendo que a coisa chegou a um ponto insustentável, o pai de Marcão foge justamente no momento que seu apartamento é invadido pela polícia comandada pela Ditadura Militar. Inicia-se, dessa maneira, a saga dos integrantes da família como exilados políticos. Sem ter informações sobre José Maria, Terezinha foge com Marcão e Ricardo para um convento em Canaviápolis. Com a ajuda da comunidade católica local, eles viajam clandestinamente para Campo Grande, Corumbá e, depois, para Puerto Suárez, na Bolívia. Após atravessar a fronteira do Brasil, o trio reencontra José Maria. Novamente juntos e felizes, os membros do clã seguem para Santiago do Chile, onde viverão por alguns anos.
A adaptação de Marcão e Ricardo ao novo país é rápida e tranquila. Apesar do frio excessivo da capital chilena, as crianças aprendem quase que instantaneamente o espanhol, fazem novas amizades na escola e ganham uma nova rotina. No Chile, Terezinha dá à luz a Pablo, o terceiro filho do casal. Agora a família é constituída por cinco pessoas. Com o aumento do número de filhos, José Maria precisa continuar trabalhando. Ele segue atuando como jornalista independente e crítico, só que agora para veículos de comunicação chilenos.
Os problemas políticos das personagens de “Meninos Sem Pátria” voltam no final de 1973. Quando Salvador Allende é destituído do poder pelas tropas de Augusto Pinochet, José Maria vê renascer as ameaças e os perigos aos brasileiros exilados. Com o governo chileno nas mãos dos militares de extrema-direita, a família do jornalista não é mais bem-quista por ali. Novamente, eles precisarão fugir. Agora o destino será a Europa. Conseguirão Marcão e seus parentes chegar à França, um país aberto aos refugiados políticos da América do Sul? Uma vez no Velho Continente, o narrador-protagonista conseguirá aprender o novo idioma, se socializar e adquirir uma nova e satisfatória vida? E atuando em uma nação democrática, José Maria conseguirá desempenhar o trabalho de jornalista sem grandes complicações?! Essas são as questões que embalam a vida dos brasileiros no outro lado do Oceano Atlântico.
Já adianto aos novos leitores desse romance de Luiz Puntel (sem risco de entregar o spoiler, tá?) que o dia a dia em Sceaux, cidade da região metropolitana de Paris, esconde alguns desafios delicados. A rotina de estudante exilado oculta alguns problemas para o agora adolescente brasileiro, que se vê cada vez mais como alguém sem uma pátria definida. No caso do pai de Marcão, os inimigos que vestem fardas continuam implacáveis com aqueles que revelam os bastidores sujos do poder de Brasília. Mesmo no exterior, o jornalista permanece sendo uma pedra no sapato dos governos brasileiros, o que trará consequências tanto para ele quanto para sua família. Ou seja, o clima de terror e suspense prossegue mesmo no exterior. Segure-se na cadeira, caro(a) leitor(a) do Bonas Histórias, porque as páginas do livro de Puntel reservam várias surpresas e incontáveis inquietações até o desfecho.
A primeira questão que chamou minha atenção em “Meninos Sem Pátria” foi a coragem de Luiz Puntel em abordar de maneira objetiva e direta os podres da Ditadura Militar brasileira em uma trama ficcional. Vale a pena dizer que o autor fez isso no comecinho dos anos 1980, quando os brucutus que se apossaram do poder em 1964 e que decretaram o AI-5 em 1968 não tinham saído definitivamente do Governo Federal. Para ser exato na contextualização histórica, eles estavam, nesse momento, se preparando para largar o osso. É verdade que a fase mais repressora e dura do regime já tinha ficado para trás (ao ponto de os exilados estarem voltando ao país), mas o perigo que houvesse algum tipo de retaliação não podia ser inteiramente desprezado. Prova disso é que o atentado no Riocentro realizado pelos militares aconteceu em abril de 1981, mais ou menos na época da publicação do romance infantojuvenil por Puntel. Em suma, a Ditadura se parecia com um tigre desdentado e manco na virada da década de 1970 para a de 1980, mesmo assim ainda era um tigre, né? Por esse prisma, precisamos elogiar a coragem do escritor em produzir uma obra com temática tão espinhosa. Se ainda hoje um título com tal conteúdo causa alguma controvérsia (vide escola do Leblon), imagine há quarenta anos.
O segundo aspecto a ser notado em “Meninos Sem Pátria” é a série de semelhanças entre o enredo do romance de Luiz Puntel e a biografia de José Maria Rebelo, o jornalista mineiro que foi usado como referência para essa trama ficcional (ou seria mais correto classificar a obra como semibiográfica, hein?). O pai de Marcão também se chamava José Maria, o que indicava que o autor não queria esconder os vínculos diretos com a realidade. Ao invés do jornal que ele fundara ser O Binômio (como de fato), o periódico no livro tinha o nome de O Binóculo. Impossível não ver as semelhanças gráficas e fonéticas, certo?! Além disso, a família numerosa (Rebelo teve sete filhos), a trajetória do clã no exterior (Bolívia, Chile e França) e a perseguição fora das fronteiras nacionais (às vezes nada sutil) dos protagonistas de “Meninos Sem Pátria” são compatíveis aos acontecimentos vivenciados pelas figuras reais. A partir dessas várias associações com a realidade, Puntel criou livremente sua história do ponto de vista do primogênito do jornalista perseguido (daí ser complicado dizer que o livro é biográfico).
Como é típico da literatura de Luiz Puntel, esse romance aborda um tema sensível e delicado (opressão, violência, censura, injustiça, perseguição, assassinatos e autoritarismo da Ditadura Militar), algo pouco comum em se tratando de literatura infantojuvenil. Essa característica narrativa é justamente a minha favorita desse autor. Invariavelmente, Puntel trata de assuntos seriíssimos com a criançada e com os adolescentes em suas obras. Portanto, ele não subestima a inteligência dos leitores mirins nem tenta mascarar a realidade. O que o escritor faz é adaptar os assuntos abordados para os olhares ainda em formação dos pequenos. É espetacular essa sua preocupação.
Se “Meninos Sem Pátria” trata da Ditadura Militar e dos traumas nos filhos dos exilados políticos, “Açúcar Amargo”, “Deus Me Livre!”, “Tráfico de Anjos” e “Missão no Oriente”, outros títulos infantojuvenis famosos do autor, trazem, respectivamente, questões como: a exploração da mão-de-obra dos boias-frias; a especulação imobiliária que afeta os moradores mais pobres; o roubo e o comércio de recém-nascidos; e os perrengues vividos pelos imigrantes brasileiros que tentam a sorte no Japão. Não é preciso dizer que Luiz Puntel é um escritor com um olhar extremamente engajado. Sua preocupação é mostrar para os leitores as injustiças brasileiras, a atroz realidade nacional e a visão dos integrantes das classes menos favorecidas.
Outro elemento narrativo que adorei em “Meninos Sem Pátria” foi a sua excelente contextualização histórica. E aqui não estou falando apenas do ambiente político e social da época retratada. O enredo do livro de Luiz Puntel permite que assistamos também ao dia a dia das crianças e adolescentes nos anos 1970. Assim, temos o jogo de futebol de botão (um dos passatempos mais legais que a molecadinha tinha), as narrações radiofônicas (o rádio era mais popular do que a televisão), a empolgação com a Copa do Mundo no México (quando o Brasil conquistou o tricampeonato), as brincadeiras da gurizada nas ruas (algo cada vez mais difícil de ser visto nas grandes cidades brasileiras, principalmente entre a classe média), os namoros adolescentes pelos telefones fixos (com a família inteira como plateia!!!), os festivais de músicas (e as canções de protesto) e a leitura de gibis e das histórias em quadrinhos (hábito extremamente comum naqueles anos entre a moçadinha).
O que intensifica ainda mais a ótima ambientação do romance é a utilização da linguagem típica da época. Puntel usa e abusa das gírias dos anos 1970, principalmente no discurso. É uma delícia acompanhar a narrativa e os diálogos com vários termos que caíram um pouco em desuso nos últimos anos. Dá para citar cacholeta (palmadas), rachas (partidas de futebol de rua), pisar no tomate (dar mancada), chato de galochas (não preciso explicar, né?), sebo nas canelas (fugir correndo), bater perna (caminhar), mina (menina), jururu (chateado) e batata (firmeza).
“Meninos Sem Pátria” possui dois conflitos de naturezas distintas. Em primeiro plano, obviamente, temos o drama político que afeta a família inteira de José Maria. O jornalista precisa fugir do Brasil com a esposa e os filhos, o que causa sérios transtornos para todos. Além disso, ninguém está imune aos riscos da violência praticada pela polícia e pelos militares brasileiros. No fim das contas, quando o assunto é ameaça, tortura, assassinato e maldade, os inimigos da democracia não perdoam bebês, crianças, adolescentes, mulheres, religiosos, idosos, ninguém!
O segundo conflito, que só surge na metade do livro, é a da falta de identidade cultural de meninos e meninas exilados. Por terem sido criados em outros países, usarem outras línguas no dia a dia, terem essencialmente amigos e colegas internacionais e não estarem por dentro do que acontece efetivamente no Brasil, os filhos dos brasileiros que vivem no exterior se tornam quase como pessoas sem uma pátria definida (daí o brilhante título da obra!). Quanto mais tempo eles passam fora e menos lembranças têm do país natal, mais forte é esse sentimento de desprendimento pátrio e de despertencimento geográfico. Prova concreta dessa realidade amarga é a reação distinta que Marcão e Pablo têm quando são informados da promulgação da Lei da Anistia e da iminente volta da família para o Brasil. Essa é uma das cenas mais fortes e emocionantes de “Meninos Sem Pátria”.
Por falar nisso, são várias as cenas marcantes desse título de Luiz Puntel. Além daquela descrita no final do parágrafo anterior, posso exemplificar outras: José Maria contando para a esposa Terezinha sobre a invasão e destruição da redação do jornal O Binóculo enquanto os filhos disputam a final do campeonato de futebol de botão no meio da sala; a fuga cinematográfica de José Maria do edifício onde morava em Canaviápolis, depois do alerta do porteiro; a tensa entrada de Marcão e Ricardo na embaixada francesa em Santiago; a escala no Rio de Janeiro do avião dos exilados brasileiros que saía do Chile e ia para a Europa; e as suspeitas de Marcão de estar sendo observado por um sujeito com um cachorro em Paris. A grande quantidade de passagens memoráveis desse livro mostra a qualidade excepcional de Puntel como escritor ficcional e a maturidade de seu texto literário.
Outro acerto incontestável de “Meninos Sem Pátria” foi a escolha de Marcão como narrador. Retratar o drama de José Maria e de seus familiares pelo ponto de vista de uma criança/adolescente é espetacular! Na certa, essa trama não seria tão emocionante e sensível se o narrador fosse um adulto. Pela perspectiva infantojuvenil, podemos acompanhar as saudades pelos parentes deixados no Brasil, a perda da primeira namoradinha, a fuga sem despedida dos coleguinhas da escola e dos amiguinhos da vizinhança, o esquecimento de aspectos da cultura brasileira, a xenofobia por estar em uma nação diferente, o desafio de fazer novas amizades sendo o diferentão no colégio gringo, os traumas provocados pela tensão de ser alvo de inimigos ocultos etc.
Por tudo isso que falei nesse post da coluna Livros – Crítica Literária, “Meninos Sem Pátria” é sem dúvida nenhuma um livrão, do tipo que nos toca de várias maneiras e que se mantém atemporal até hoje (não por acaso é um clássico literário). Mesmo assim, é preciso dizer que ele tem alguns escorregões narrativos. Para ser exato em minha avaliação, encontrei dois problemas mais sérios, um de Foco Narrativo e outro de falta de verossimilhança.
O primeiro tropeço de Luiz Puntel está no final da cena em que José Maria foge do prédio em que morava no interior de São Paulo. Como a narração é feita por Marcão, que não sabe do paradeiro do pai, não seria possível acompanharmos (como leitores) os passos do jornalista perseguido fora do ambiente residencial. Afinal, o narrador não podia ver o que se passava, por exemplo, na rua. Assim, quando vemos o que José Maria faz no caminhão de gás ou quando presenciamos a reação da polícia na delegacia (espaços em que o narrador não estava), estamos diante de um grave erro de Foco Narrativo.
O segundo aspecto é a falta de verossimilhança da família chamar uma criança de dez anos de Marcão. Juro que não conheço ninguém, ainda mais no Brasil, que chame o filho menor de idade pelo aumentativo. O mais comum é a utilização de diminutivos. Nesse caso, Marquinhos seria mais fidedigno na minha opinião.
Apesar de uma ou duas derrapadinhas (naturais e até aceitáveis, já que os acertos vêm em quantidade muito superior), “Meninos Sem Pátria” é uma obra monumental. Não é coincidência, portanto, que esse título cause ainda hoje algum desconforto nas almas mais reacionárias. Aos pais contemporâneos que não querem que os filhos conheçam os horrores da época da Ditadura Militar, sugiro que não tentem censurar o trabalho literário de Luiz Puntel. Mais eficaz seria pedir para as escolas particulares não ensinarem a criançada a ler e a escrever (algo que já vem sendo feito com muita competência por muitos colégios públicos). Uma vez iletrada e jogada à escuridão intelectual, a meninada do século XXI não correrá o risco de conhecer a realidade do Regime Militar nem o passado sanguinolento da Ditadura implantada no Golpe de 1964.
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