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Bonas Histórias

O Bonas Histórias é o blog de literatura, cultura, arte e entretenimento criado por Ricardo Bonacorci em 2014. Com um conteúdo multicultural (literatura, cinema, música, dança, teatro, exposição, pintura e gastronomia), o Blog Bonas Histórias analisa as boas histórias contadas no Brasil e no mundo.

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Ricardo Bonacorci

Nascido na cidade de São Paulo, Ricardo Bonacorci tem 42 anos, mora em Buenos Aires e trabalha como publicitário, produtor de conteúdo, crítico literário e cultural, editor, escritor e pesquisador acadêmico. Ricardo é especialista em Administração de Empresas, pós-graduado em Gestão da Inovação, bacharel em Comunicação Social, licenciando em Letras-Português e pós-graduando em Formação de Escritores.  

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Livros: O Mapeador de Ausências - O romance mais recente de Mia Couto

Publicada no Brasil em 2021, esta narrativa ficcional foi inspirada nas memórias familiares do escritor moçambicano e aborda dois momentos históricos de seu país, a Guerra de Independência nos anos 1970 e a devastação provocada pelo ciclone tropical Idai em 2019.

O livro O Mapeador de Ausências é a vigésima publicação e o mais recente romance de Mia Couto, um dos principais escritores de Moçambique e da literatura contemporânea na língua portuguesa

Não é segredo para ninguém (ou pelo menos não deveria ser) que Mia Couto é um dos meus escritores favoritos. O vencedor do Prêmio Camões de 2013 (efeméride que está completando uma década!) e o único integrante africano da Academia Brasileira de Letras não é apenas o principal representante da literatura moçambicana. Ele é também um dos maiores nomes da literatura contemporânea em língua portuguesa e da literatura africana de todos os tempos. Nada mal para alguém que se formou em Biologia e abandonou a faculdade de Medicina para trabalhar como jornalista na antiga Lourenço Marques (atualmente chamada de Maputo), a capital de Moçambique.


Prova maior da adoração que tenho pelo trabalho de Couto é que ele foi o primeiro autor analisado no Desafio Literário, lá no longínquo ano de 2015 (nos primórdios do Bonas Histórias, quando só havia mato nas páginas desse blog). Na época, li um exemplar de cada gênero literário explorado pelo versátil e talentoso artista das letras: poesia com “Raiz de Orvalho e Outros Poemas” (Caminho); coletânea de contos com “O Fio das Missangas” (Companhia das Letras); coletânea de crônicas com “E Se Obama Fosse Africano” (Companhia das Letras); romance com “Terra Sonâmbula” (Companhia das Letras); e literatura infantil com “O Gato e o Escuro” (Companhia das Letrinhas). Dessa maneira, me senti preparado para construir um panorama completo sobre a literatura de Mia Couto na coluna Desafio Literário, que estreava justamente para apresentar o estilo autoral das grandes figuras da literatura.


Depois disso, li outros títulos do escritor moçambicano, como a novela “A Varanda do Frangipani” (Companhia das Letras), que comentei na coluna Livros – Crítica Literária em 2017. Contudo, não sei o porquê, acabei lendo apenas obras antigas de Mia Couto. Talvez estivesse tentando entender como sua literatura foi construída. O fato, que só me atentei recentemente, foi que não tinha lido nada que Couto produziu nos últimos 20 anos. O que será que eu estaria perdendo? Se já tinha gostado de seus textos na fase inicial da carreira, o que não acharia após ele ter adquirido maturidade e expertise no ofício, hein?!


Confesso que esses pensamentos só brotaram quando desenvolvi a análise da literatura de José Eduardo Agualusa, escritor angolano que foi tema do Desafio Literário em 2020. Muito amigo de Couto, Agualusa costuma brincar que é muitas vezes confundido no Brasil com o colega, o que gera situações engraçadas e gafes descomunais. E assistindo a algumas entrevistas de Agualusa para tentar entender seu trabalho ficcional, o vi comentar que a literatura de Mia Couto sofreu uma enorme transformação nas últimas duas décadas.


Nas palavras do escritor de “O Vendedor de Passados” (Tusquets) e “A Sociedade dos Sonhadores Involuntários” (Tusquets), o autor moçambicano estava praticando ultimamente uma literatura totalmente distinta daquela que o consagrou em “Terra Sonâmbula”, “O Fio das Missangas” e “A Varanda do Frangipani”. Desde que ouvi tal comentário de Agualusa, juro que fiquei curioso para tentar descobrir o que mudou (e o que não mudou) no trabalho literário de Couto nos últimos anos. Por isso, aproveitei o final de semana sem trampo na EV Publicações (uma raridade no segundo semestre de 2023!) para conhecer “O Mapeador de Ausências” (Companhia das Letras), o romance mais recente de Mia Couto. É sobre essa obra que vamos discutir hoje no Bonas Histórias.

Com o lançamento do seu mais recente romance, O Mapeador de Ausências, Mia Couto mostra porque é um dos principais autores moçambicanos da história e um dos escritores africanos mais talentosos da atualidade

Essa trama se passa em Moçambique em dois momentos históricos distintos: no presente (março de 2019, pouco antes do ciclone tropical Idai, o mais poderoso dos últimos anos, devastar grande parte do país africano) e meio século atrás (1973, quando os moçambicanos lutavam para deixar de ser uma colônia portuguesa e se tornar uma nação independente).


Na parte contemporânea da narrativa, acompanhamos um prestigiado escritor que mora em Maputo em uma viagem à Beira, sua cidade natal. Entre eventos em sua homenagem, saraus literários, reencontro com conhecidos e a expectativa pela passagem de uma forte tempestade que deixa a população local muito preocupada, o narrador-protagonista revira o passado do seu pai, um jornalista e poeta português. Essa é justamente a parte histórica do livro. Por meio de documentos, relatos, cartas e diários antigos, o filho fica sabendo da ousadia paterna ao revelar as atrocidades cometidas pelo governo lusitano na então colônia africana durante a Guerra de Independência de Moçambique.


Publicado em Portugal e em Moçambique em novembro de 2020 e no Brasil em setembro de 2021 (conforme destacado no post com os principais títulos lançados em setembro e outubro de 2021 em nosso país), “O Mapeador de Ausências” é o 20º livro de Mia Couto. E é a sua última narrativa ficcional longa a ter ganhado as estantes das livrarias dos países lusófonos. Quem acompanha o conteúdo da coluna Mercado Editorial sabe que a Companhia das Letras trouxe em julho de 2023 outra obra do moçambicano: “As Pequenas Doenças da Eternidade”, coletânea com contos que foram publicados na revista portuguesa Visão (informação devidamente relatada no post com as principais publicações no Brasil em julho e agosto de 2023). Ou seja, “O Mapeador de Ausências” é o mais novo romance do autor, mas não é o seu título mais recente (posto ocupado agora por “As Pequenas Doenças da Eternidade”).


Os assinantes da TAG, vale a pena a menção, receberam em primeira mão “O Mapeador de Ausências” em julho de 2021, dois meses antes do lançamento comercial desse título nas livrarias do nosso país. Por isso, se você encontrar essa obra com capa e diagramação distintas à obra produzida pela Companhia das Letras em algum sebo por aí (algo que aconteceu comigo no ano passado) já sabe: ela é a versão da TAG. Por falar nisso, Mia Couto foi curador desse clube de assinatura em dezembro de 2020 e indicou a publicação de “Moisés Negro” (Malê), romance do congolês Alain Mabanckou que ganhou as lojas brasileiras em fevereiro de 2022.


O que chama a atenção logo de cara em “O Mapeador de Ausências” é o caráter memorial da narrativa. Mia Couto não esconde de ninguém que utilizou as lembranças da época de criança e os acontecimentos familiares entre o final dos anos 1960 e meados dos anos 1970 para construir essa história ficcional. Portanto, ele misturou a realidade de parentes próximos com a liberdade criativa que a ficção literária permite. Assim, pôde tecer as linhas dramáticas do novo romance.

Publicado em novembro de 2020 em Portugal e Moçambique e em setembro de 2021 no Brasil, O Mapeador de Ausências é o vigésimo livro de Mia Couto e o seu mais recente romance

Não é coincidência que o narrador-protagonista seja um escritor famoso nascido em Beira e que seu pai seja um português apaixonado pela poesia e que trabalhou como jornalista após imigrar para a África. Essas passagens são autobiográficas (no caso de Mia) e biográficas (no caso do seu pai, Fernando Couto). E qual o resultado prático dessa mescla entre passado real, memórias da infância e composição ficcional? Em Portugal, “O Mapeador de Ausências” conquistou o Prêmio Livro do Ano Bertrand em 2020, honraria conferida pelo tradicional selo da Editorial Caminho aos títulos que publica.


Nascido em Beira, cidade da região central de Moçambique, em 1955 com o nome de Antônio Emílio Leite Couto (Mia é seu apelido de infância, fruto de sua paixão pelos gatos), Mia Couto é filho de um casal de portugueses que imigrou para a África para trabalhar no então governo colonial. Depois de passar a infância e adolescência em Beira, ele se mudou com a família para a capital do país, então chamada de Lourenço Marques (hoje o nome é Maputo). Depois de viver alguns anos em Portugal e visitar frequentemente o Brasil (um périplo compartilhado por autores moçambicanos e angolanos de destaque como José Eduardo Agualusa e Ondjaki), o escritor vive atualmente (até onde eu saiba!) um pouco na encantadora Ilha de Moçambique e outro tanto em Lisboa. Ele mora com a esposa e os três filhos.


Formado em Biologia e tendo abandonado o curso de Medicina no meio, Mia Couto trabalhou por mais de dez anos como jornalista em seu país e é um autor de destaque internacional. Seus livros foram publicados em mais de 30 idiomas. Sua principal obra literária é o magistral “Terra Sonâmbula”, considerado por muita gente como um dos romances contemporâneos mais importantes da língua portuguesa e um dos melhores livros africanos do século XX (se você não leu esse título, leia!).


As marcas mais relevantes da literatura de Mia Couto são: a prosa poética (que segundo o próprio autor foi inspirada em Guimarães Rosa, inclusive com o uso de muitos neologismos); a valorização da cultura e da história moçambicanas; a produção de narrativas ancoradas no realismo fantástico, na fantasia e no sobrenatural; a denúncia ao racismo, ao machismo e à violência do período colonial; o retrato da brutalidade da Guerra de Independência e da Guerra Civil (que vitimizaram o país entre as décadas de 1960 e as décadas de 1990); e a pluralidade de gêneros literários (que vai da poesia e das coletâneas de contos e crônicas ao romance e à literatura infantojuvenil).


O enredo de “O Mapeador de Ausências” começa com a chegada de Diogo Santiago à Beira. É março de 2019 e o professor de literatura e poeta moçambicano que vive há anos em Maputo retorna para sua cidade natal depois de uma longa ausência. Ele sofre de depressão, o que acarreta, entre outros problemas, insônia, melancolia, perda de memória, algumas dificuldades psicomotoras e bloqueio criativo (o que lhe impede de ler e escrever). Quem o aconselhou a fazer aquela viagem foi seu médico. Segundo o diagnóstico do doutor, Diogo precisava reencontrar-se com seu passado e sua infância. Só assim, compreenderia o presente e aceitaria a realidade nua e crua. Por isso, na prescrição do médico havia alguns remédios e uma viagem.

Ambientado em dois momentos históricos distintos de Moçambique, a Guerra da Independência nos anos 1970 e o ciclone tropical Idai que devastou o país em 2019, O Mapeador de Ausências é o romance de Mia Couto, o mais premiado escritor moçambicano

O quadro clínico do protagonista do romance de Mia Couto é ignorado pelos conterrâneos. Para o povo da Beira, Diogo Santiago é o famoso escritor local que ganhou fama nacional e internacional. Todos estão ávidos para recepcioná-lo e homenageá-lo. No primeiro evento literário em que participa, o poeta conhece Liana Campos, a charmosa mestre-de-cerimônias. Apesar de namorar o chefe da polícia da cidade, a moça se sente atraída por Diogo. Os dois ficam grudados a partir de então e Liana passa a ciceronear por Beira com o ilustre visitante.


A busca de Diogo pelo seu passado ganha em dimensão dramática quando Liana Campos revela que está de posse de documentos relativos à família Santiago. Por um pedido especial do avô, a moça guardou o relatório da polícia sobre a prisão de Adriano Santiago, o pai de Diogo, nos anos 1970. Adriano era um poeta e jornalista que nascera em Portugal e imigrara para Moçambique. No novo país, dedicava-se à poesia, sua grande paixão, e ganhava a vida trabalhando como jornalista.


Mulherengo e desconectado da realidade, Adriano parecia um sujeito pacífico e inofensivo aos olhos das autoridades. Até ser responsável por denunciar a chacina protagonizada por seus conterrâneos à população negra da vila interiorana de Inhaminga em 1973, no início da Guerra de Independência de Moçambique. A atitude do poeta e jornalista lusitano não foi bem-vista pelo governo da então colônia portuguesa, que o investigou por envolvimento com os rebeldes comunistas e o prendeu. Junto ao material investigativo que o avô de Liana pediu que ela guardasse estavam relatórios dos policiais, livros de Adriano, o diário do jovem Diogo, cartas, fotos e depoimentos de testemunhas, espiões e envolvidos no caso.


Quase cinquenta anos mais tarde do fatídico evento que marcou a família Santiago, o filho de Adriano recebe esse material das mãos da nova amiga. Se estava em busca de respostas para seu passado, Diogo agora tem farta documentação para a sua pesquisa histórica. O acervo é tão rico que o escritor cogita utilizá-lo como matéria-prima de um novo livro. Além de entender o que se passou na sua infância e com seus parentes mais próximos, ele conhece detalhes da trajetória de funcionários da família, vizinhos, amigos e dos policiais que investigaram o pai, além do passado da própria Liana Campos, que de certa maneira está ligado à sua trajetória.


Assim, enquanto passeia por Beira ao lado de Liana Campos rememorando passagens marcantes, visitando locais emblemáticos, reencontrando pessoas da sua infância e conhecendo os diferentes pontos de vista dos antigos acontecimentos, Diogo Santiago mergulha na vida do pai, o homem que lhe ensinou amar a literatura e a poesia, e de várias pessoas que o rodeava. A dupla jornada pelo presente e pelo passado reserva surpresas emocionantes tanto para a personagem central do romance quanto para os leitores de Mia Couto.

Um dos bons lançamentos da literatura moçambicana e da literatura africana nos últimos anos, O Mapeador de Ausências é o livro de Mia Couto que aborda as memórias de sua família

“O Mapeador de Ausências” possui 288 páginas, que estão divididas em 24 capítulos (23 capítulos numerados e o epílogo). Por falar nas seções da obra, a história do presente (bloqueio criativo e depressão de Diogo em 2019) e a história do passado da família (prisão de Adriano em 1973) vêm intercaladas no romance: um capítulo fala de um tempo narrativo, o seguinte já fala de outro período. Assistimos a esse dueto temporal do início ao fim da narrativa. Como consequência, temos um bom dinamismo e muitas ações ocorrendo simultaneamente, além da interpolação das duas linhas narrativas.


Levei aproximadamente seis horas e meia para concluir essa leitura no último final de semana. Li o livro de Mia Couto em praticamente duas seções: três horas na sexta-feira à noite e outras três horas e meia no sábado à tarde. O domingo deixei, obviamente, para acompanhar as eleições na Argentina (e estocar água, comida e produtos de primeira necessidade à espera da explosão de preços que virá ao longo das próximas semanas, conforme sugestão preciosa da preciosa Paula!). Se você não é fã de longas seções de leitura, dá para ler tranquilamente “O Mapeador de Ausências” em quatro noites consecutivas ou mesmo ao longo de três dias. Com tanto feriado rolando no Brasil ultimamente, ninguém tem a desculpa de dizer que está sem tempo para ler, né?


Essa obra tem tantos elementos positivos para comentar que não sei nem por onde começar. Talvez seja melhor iniciar a análise propriamente dita de “O Mapeador de Ausências” por suas características estilísticas. Esse livro é classificado normalmente como um romance histórico. É assim pelo menos como eu o enxergo. Afinal, a trama ficcional mergulha no passado de Moçambique (tanto na história de 50 anos atrás do país africano quanto no passado mais recente, de apenas 5 anos).


Contudo, esse livro também pode ser visto por outras perspectivas. Ainda dentro do universo da ficção, não é nenhum absurdo chamá-lo de drama, drama psicológico, suspense/thriller, mistério, road story ou até mesmo romance policial (o protagonista faz algumas investigações para entender o passado, com direito a dúvidas em relação a inexplicáveis desaparecimentos e assassinatos).


O mais legal em “O Mapeador de Ausências” é que não temos uma narrativa longa tradicional. O leitor mais atento irá reparar que essa publicação possui elementos de outros gêneros literários, como o conto, a crônica e a poesia. Mia Couto faz isso de maneira sutil ao inserir no meio da trama principal pequenas histórias secundárias (contos), relatos da situação político-social de seu país (crônicas) e versos criados pelas suas personagens (poesia). A combinação é deliciosa.

Vigésimo livro e o mais recente romance de Mia Couto, O Mapeador de Ausências teve sua trama inspirada nas lembranças familiares do escritor moçambicano, em uma mistura de ficção e realidade

Dá até para, analisando a maneira como Mia Couto construiu esse livro e sendo bastante flexível e nem um pouco rigoroso com os conceitos literários, enxergá-lo fora do campo ficcional. Não por acaso, vi algumas pessoas na mídia chamando “O Mapeador de Ausências” de obra não ficcional. Aí a classificação escorrega para as categorias de memórias, autoficção, biografia e autobiografia. Exagero? Talvez. Errado? Não. Com pontos de vista distintos, é possível chegar a conclusões diferentes. Eu prefiro ver essa publicação como uma ficção e não como uma não ficção.


O romance é tão plural que alguns conceitos ficcionais se tornam de difícil definição. Por exemplo, quem é o protagonista da narrativa, hein? Em um primeiro momento, a resposta parece óbvia: Diogo Santiago. Contudo, não é errado ver Adriano Santiago como uma segunda personagem principal. Teríamos, então, uma dupla de protagonistas? Para a resposta não soar tão simples, ainda é possível enxergar Moçambique, o país como um todo, como a verdadeira figura a embalar a trama ficcional de “O Mapeador de Ausências”. Isso justifica a presença de tantas personagens, algumas com maior ou menor destaque dependendo do capítulo e outras com evidente representação alegórica: o padre, o soldado, o político, o português, o policial, o gay, o comunista, o jornalista, a vizinha enxerida etc.


A mesma complexidade é estendida para outros conceitos literários. Seria esse um texto em primeira pessoa? Mas com tantas vozes narrativas simultâneas, o livro não adquire quase que um tom de terceira pessoa, hein? E o enredo: deve ser descrito a partir de Diogo ou Adriano Santiago?! Ou seja, temos nesta obra o drama pessoal e profissional do famoso poeta do presente que investiga o passado paterno ou são os erros e segredos do poeta antigo que se refletem na agonia do filho nos tempos atuais? Adorei esse jogo literário, que flexibiliza e estende a corda até mesmo nos mais básicos conceitos da literatura ficcional.


Ler Mia Couto é mergulhar na cultura e na história de Moçambique. O conteúdo de “O Mapeador de Ausências” não foge à regra. Mais do que um simples contexto do enredo, a ambientação é aqui quase que uma personagem onipresente da trama, que molda as pessoas, as situações e os dramas. Nas páginas do livro, conseguimos assistir à força religiosa, à dança, à música, ao misticismo, aos hábitos, à estrutura social, aos valores, às roupas, à culinária, às manifestações artísticas, às tradições, ao passado e à realidade dos moçambicanos.


É verdade que quanto mais da história do país você souber, melhor será sua leitura. Como sou leitor assíduo de Mia Couto e de outros escritores de Moçambique – Paulina Chiziane, uma forte candidata a integrar o Desafio Literário, e Dany Wambire, de “A Mulher Sobressalente” (Malê) –, confesso que já estou familiarizado com termos como Guerra da Independência, Guerra Civil, PIDE (Polícia Internacional e Defesa do Estado) e FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique), por exemplo. Se você não for um grande conhecedor do passado colonial português na África, essa é uma ótima oportunidade para aprender.

Lançado no Brasil pela TAG em julho de 2021 e publicado pela Companhia das Letras em setembro de 2021, O Mapeador de Ausências é o último romance produzido por Mia Couto, escritor moçambicano vencedor do Prêmio Camões e membro da Academia Brasileira de Letras

Por falar em familiaridade, é bom destacar que “O Mapeador de Ausências” está no português africano (mesmo na edição brasileira da Companhia das Letras). Assim, podemos vivenciar as variantes linguísticas do nosso idioma e o colorido do vocabulário do outro lado do Oceano Atlântico. Essa é outra coisa que adoro nos livros de Couto e dos demais escritores africanos de nações lusófonas, como José Eduardo Agualusa, Ondjaki, Ana Paula Tavares e Kalaf Epalanga. Por isso, considero um acerto dos editores nacionais a manutenção e/ou a proximidade com a narrativa original do autor. Por outro lado, os leitores mais preguiçosos podem não curtir a necessidade de mergulhar em outro cardápio lexical e no esforço extra para compreender algumas frases.


Para ser sincero, se você for um(a) devorador(a) frequente dos textos originais de autores lusitanos (José Saramago, Manuel da Fonseca, Ana Teresa Pereira, António Lobo Antunes, José Vieira/Teresa Vieira e Gonçalo J. Nunes Dias, só para citar alguns que foram comentados no Bonas Histórias a partir de suas narrativas no português europeu), você conseguirá entender numa boa a linguagem de Mia Couto. Estão em “O Mapeador de Ausências” termos como chanata, paleio, secretária (no sentido de escrivaninha), pequeno almoço, comboio (trem), viatura (veículo), cancro, gaja, cubata, chávena, camarata e rapariga. Isso sem contar as palavras com grafias levemente diferentes da nossa (o que prova que o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa só é aplicado no Brasil): ingénuo, irónico, insónia, humidade e sujidade.


As principais novidades para os leitores brasileiros devem ser as palavras do português africano: mata-bicho (a minha favorita, principalmente quando transformada em “mata-bichar”), meneia as ancas, pangolim, ganzá, capulana e cachopas. A dica para quem for novato na literatura de língua portuguesa fora da América é usar o Kindle. Assim, à medida que você for percorrendo as páginas da obra, dá para saber instantaneamente o significado das palavras – um recurso interessantíssimo que os ebooks possuem e que muitos leitores desconhecem e/ou não se utilizam.


O que mais gosto na literatura de Mia Couto (e que encontro em todos os seus romances, novelas e coletâneas de contos e crônicas) é a sua prosa poética. Às vezes, não sei se ele é um poeta que produz ficção ou se é um autor ficcional com perfil de poeta. O fato é que seu texto é maravilhoso. Além de bonito, ele é sonoro (experimente ler o que você estiver lendo para entender os efeitos das palavras) e impactante (impossível não nos emocionarmos). E ele faz isso sem soar enfadonho, artificial ou hermético, como acontece em alguns casos quando a poesia invade a prosa de um jeito pouco natural. Com Couto não há esse problema. Suas narrativas não são forçadas nem piegas. Elas são impecáveis. “O Mapeador de Ausências” só segue essa tradição.


Curiosamente, a beleza textual contrasta o tempo inteiro com o ambiente hostil, violento e injusto. Trata-se de uma dicotomia que enche os olhos dos leitores mais sensíveis. Nesse romance, que adquire muitas vezes tons de trama de terror, acompanhamos: guerras, calor excessivo, racismo, xenofobia, caos climático, perseguições políticas, suicídios, traições conjugais, assassinatos, elevada desigualdade social, chacinas, homofobia (uma novidade temática na literatura de Mia Couto), machismo, loucura, depressão, mentiras, atentados terroristas, feminicídios etc. A diferença é que esse clima aterrorizante vem expresso por lindas palavras.

Mistura de biografia familiar e romance histórico, O Mapeador de Ausências é a mais recente narrativa ficcional longa de Mia Couto, escritor moçambicano de destaque internacional por sua literatura que valoriza a cultura africana

Por falar em poesia, note que os poetas dentro do livro do moçambicano, Adriano e Diogo Santiago, são a expressão máxima daquilo que Fernando Pessoa, autor de “Mensagem” (L&PM Pocket), traduziu em versos: “O poeta é um fingidor/ Finge tão completamente/ que chega a fingir que é dor/ a dor que deveras sente”. A dupla de protagonistas de Couto mente, finge ter doenças e potencializa as dores em nome da produção artística. Incrível essa intertextualidade literária de “O Mapeador de Ausências”.


Já que falamos um pouco mais dos protagonistas, deixe-me aprofundar nas características das personagens desse romance. Elas são quase sempre redondas (o que do ponto de vista literário é excelente!). A sensação que temos durante essa leitura é que não dá para confiarmos nas palavras e nas intenções de ninguém, nem mesmo dos protagonistas e daqueles que o cercam (como Liana Campos, por exemplo). Talvez a única figura plana seja o vilão (se assim podemos chamá-lo), o inspetor Óscar Campos. Por qualquer perspectiva que o analisemos (pelos olhos de Adriano Santiago, de Diogo Santiago ou de Liana Campos), o agente da PIDE não se sai nem um pouco bem, não sendo possível extrair qualidades positivas ou virtudes.


Outra questão marcante (que sempre surge nos livros de Mia Couto) é a presença de personagens femininas fortes e emblemáticas. Aqui temos pelo menos meia dúzia delas. Em muitos momentos de “O Mapeador de Ausências”, as mulheres roubam as cenas e se tornam as verdadeiras protagonistas da trama.


Mesmo com as incontáveis qualidades literárias que acabei de descrever neste post da coluna Livros – Crítica Literária, “O Mapeador de Ausências” não está imune aos problemas narrativos. Admito que achei duas questões delicadas: uma já antiga no portfólio de Mia Couto (discurso expresso em itálico) e outra nova (sensação de déjà vu do enredo).


Em relação a grafia dos diálogos em itálico, essa é uma marca das tramas ficcionais do autor moçambicano. Porém, não consigo me acostumar a essa mania de Couto. Sinceramente, a acho totalmente desnecessária (até porque vem com os demais elementos do discurso direto como o travessão e a indicação da personagem que está falando) e com prejuízo considerável à estética do texto.


É aquele velho lance: se um autor novato e desconhecido fizesse isso em suas narrativas ficcionais, a maioria dos críticos literários e do público cairia em cima chiando e condenando o recurso utilizado. Agora, como é Mia Couto, uma figura gigantesca da literatura em língua portuguesa e da literatura africana, a falha passa batida ou mesmo não é comentada. Como o meu compromisso é exclusivamente com os leitores do Bonas Histórias, sinto-me na obrigação de alertar: colocar os diálogos em itálico é um erro grave que prejudica a estética textual. Não façam isso, jovens escritores. Por favor!

Publicado em novembro de 2020 em Portugal e Moçambique e em setembro de 2021 no Brasil, O Mapeador de Ausências é o vigésimo livro de Mia Couto e o seu mais recente romance

Quando enfocamos o enredo de “O Mapeador de Ausências”, o problema é outro. Pela primeira vez, tive a sensação de déjà vu lendo Mia Couto (algo realmente inusitado, visto que se trata de um dos autores mais inventivos da atualidade). É inegável a qualidade da sua nova história e a beleza desta trama. Também não podemos contestar a perspicácia de unir aspectos biográficos da família do autor e elementos da história e da cultura moçambicana em uma narrativa ficcional. Até aí beleza. O que me incomodou foi a impressão que já tinha lido algo parecido.


“O Mapeador de Ausências” tem estrutura, linha narrativa, personagens e história muito parecidas aos elementos ficcionais de “Terra Sonâmbula”, publicação mais famosa de Mia Couto (livro dentro do livro, dois momentos narrativos distintos que se unem, ambiente de guerra e atmosfera com enorme violência e maldades), e de “Vendedor de Passados”, meu romance favorito de José Eduardo Agualusa (protagonista em busca de “suas memórias”, investigação ao passado da família e da própria trajetória e trama principal com várias subtramas periféricas).


Por falar na literatura do angolano, “O Mapeador de Ausências” tem alguns elementos de “A Conjura” (Gryphus Editora), primeira narrativa longa de Agualusa (opressão aos movimentos separatistas nas colônias portuguesas da África; denúncia ao racismo; e exposição de uma sociedade fragmentada entre passado tribal, presente com a Europa e futuro autônomo). Dá até mesmo para fazermos uma ponte com outros autores e obras do continente. A questão religiosa, os dramas familiares, os preconceitos entre negros e brancos e a dúvida entre apoiar a ação violenta dos dominadores foram explorados, por exemplo, em “Hibisco Roxo” (Companhia das Letras), da genial Chimamanda Ngozi Adichi, e em “À Espera dos Bárbaros” (Companhia das Letras), do incomparável J. M. Coetzee.


Se pegarmos o cinema como referência, a sensação de déjà vu é potencializada. Este romance de Couto lembra muito “Melancolia” (Melancholia: 2011), suspense dramático do polêmico e genial Lars von Trier (intrigas familiares afloradas na véspera de uma catástrofe ambiental/cósmica), e “O Cidadão Ilustre” (El Ciudadano Ilustre: 2016), comédia dramática dos ótimos argentinos Mariano Cohn e Gáston Duprat (retorno de um premiado escritor a sua terra natal, o que gera algumas confusões).


Se você não tiver essas referências literárias e cinematográficas certamente não se incomodará com o enredo de “O Mapeador de Ausências”. No meu caso, mais do que incômodo, o sentimento foi de surpresa. Juro que pensei: então Mia Couto é capaz de produzir um romance menos original e até previsível, hein? Na posição de fãnzaço do autor moçambicano, admito que ainda não tinha passado pela minha cabeça essa possibilidade.


Essas são as duas falhas principais da publicação. As outras que identifiquei são menores: excesso de coincidências (impressão de que as mesmas personagens se trombam o tempo inteiro, independentemente de os acontecimentos serem atuais ou de terem ocorrido cinquenta anos atrás); mania de todas as figuras ficcionais, até mesmo as que não são escritoras e poetas, registrarem seus pensamentos e biografia por escrito (em uma sociedade fundamentalmente oral como era a moçambicana nos anos de 1970); a menor dosagem de componentes fantásticos da trama (um dos aspectos mais charmosos da literatura de Mia Couto, que aqui ficou escanteado em poucas passagens secundárias); e a grafia do nome das famílias no plural (quando no Brasil e em Portugal o mais comum é vir no singular – os Santiago, por exemplo, e não os Santiagos).

Autor do romance O Mapeador de Ausências, Mia Couto é o escritor moçambicano premiado internacionalmente por sua prosa poética, pelas histórias de realismo fantástico e pela valorização da cultura do seu país

Colocado na balança os prós e os contras de “O Mapeador de Ausências”, volto às minhas dúvidas que originaram esta análise crítica. Afinal, conforme informado por José Eduardo Agualusa em algumas entrevistas, a literatura de Mia Couto teria mesmo sofrido uma enorme transmutação nos últimos 20 anos?! Em caso positivo, o que alterou e o que se manteve intacto no receituário ficcional do escritor da Beira que conquistou os leitores mundo à fora?


Admito que, perto dos conhecimentos técnicos de Agualusa, me encontro em posição desfavorável para discordar de suas palavras. Mesmo ciente dessa condição de inferioridade literária que me encontro, tomo a liberdade para dizer que não concordo com o veredito do escritor luso-angolano. Pelo menos a partir da leitura exclusivamente de “O Mapeador de Ausências”, achei o Mia Couto atual muito parecido ao bom e velho autor que conheci no Desafio Literário há oito anos e meio. E não falo isso por uma perspectiva negativa. Pelo contrário! Foi ótimo perceber que o estilo, a técnica, a prosa poética, o mergulho na história e na cultura moçambicana e a contação das histórias continuam intactos e de excelente nível.


A grande mudança (e isso deu para notar ainda na metade inicial de “O Mapeador de Ausências”) é que a narrativa de Mia Couto está mais madura. Não sei explicar exatamente o que significa essas minhas palavras. O fato é que notei que o novo romance possui muito mais camadas literárias do que as obras antigas do autor, aquelas do finalzinho dos anos 1980, da década de 1990 e do início do século XXI.


Se você está duvidando do meu comentário, note o quão parecidos são Diogo e Adriano Santiago. Em muitos momentos da leitura, acabamos confundindo as duas personagens (até porque as narrativas de ambos vêm embaralhadas). Acho que isso foi proposital, para mostrar o quanto pai e filho estão unidos nos mesmos dramas, características, paixões, afinidades e medos.


E esse aspecto não ocorre somente com os protagonistas. O passado e o presente de Moçambique estão próximos em diferentes tipos de tragédias: lá atrás social, racial e política, agora meteorológicas, econômicas e culturais. Se você procurar, encontrará uma série de figuras, fatos e situações ligadas umbilicalmente. Essa união é sutil e feita com extrema beleza poética por Mia Couto. Se isso não é um trabalho genial de alguém que domina o fazer literário como poucos, não sei mais o que podemos elogiar em matéria de narrativa ficcional.


Em suma, temos aqui uma leitura mais profunda e com enorme riqueza temática. Esse livro merece uma segunda ou até mesmo uma terceira leitura da nossa parte. Aposto que vamos descobrir muitas relações que passaram batidas e ter vários insights sobre a história nos novos mergulhos pelas páginas de “O Mapeador de Ausências”. Possuímos em mãos uma obra que quanto mais lermos, mais bela e poderosa ela ficará. Tenha certeza disso!


Por falar em novas leituras, talvez eu precise ler os demais livros (recentes) de Mia Couto para confrontar em melhor posição a opinião de José Eduardo Agualusa. Saibam que aos poucos farei isso. Como é bom termos grandes autores para conhecer, investigar e desfrutar, né? Então, vamos ler mais e melhor Mia Couto e os grandes nomes da nossa literatura. Como eu sempre digo aqui no Bonas Histórias: enquanto o mundo gira, a gente lê; fazer o quê?


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