Como prometido, durante o Desafio Literário de Abril, li e comentei as cinco principais obras de Mia Couto, escritor moçambicano agraciado com o Prêmio Camões de 2013, principal honraria da Língua Portuguesa. Os livros contemplados nesse estudo foram: "O Fio das Missangas" (Companhia das Letras), "Terra Sonâmbula" (Companhia das Letras), "E Se Obama Fosse Africano?" (Companhia das Letras), "O Gato e o Escuro" (Companhia das Letrinhas) e "Raiz de Orvalho e Outros Poemas" (Caminho). Por isso, me sinto agora em condições para analisar a contribuição artística deste grande autor com mais propriedade, concluindo, portanto, a apresentação de seu perfil literário aqui no Blog Bonas Histórias.
Mia nasceu em Beira, segunda maior cidade de Moçambique, em 1955, e atualmente mora em Maputo, a capital do seu país. Depois de iniciar o curso de Medicina, Couto se formou em Biologia, área de atuação na qual se dedica até hoje. Ele se apresenta como biólogo, jornalista e escritor. No livro de crônicas "E Se Obama Fosse Africano?", ele comenta a relação entre as letras e o estudo da fauna e da flora: "Pois venho falar ao mesmo tempo como escritor e biólogo (...). Hoje não sei como poderia ser escritor caso não fosse biólogo. E vice-versa. Nenhuma das atividades me basta. O que me alimenta é o diálogo, a intersecção entre os dois saberes". Assim, enquanto viaja pelo seu país e pelo continente africano estudando a natureza, o escritor-biólogo aproveita para conhecer a cultura e as pessoas do seu povo, depois retratados com brilhantismo em suas obras.
Couto adquiriu o pseudônimo Mia (o verdadeiro nome dele é Antônio Emílio Leite Couto) pela sua paixão por gatos. Na infância, aproveitando-se que seu irmão não conseguia falar seu nome, o autor adotou o apelido extraído do som típico destes felinos.
Mia Couto escreveu mais de trinta livros em vários gêneros literários. Sua primeira publicação aconteceu quando ele tinha apenas catorze anos. Foi um conjunto de poemas que saíram no jornal "Notícias de Beira", da sua cidade natal. O primeiro livro editado foi "Raiz de Orvalho", de poesias, publicado em 1983. O grande sucesso, porém, foi creditado a um romance, "Terra Sonâmbula", de 1992. Considerado um dos dez melhores livros africanos do século XX pelo júri da Feira do Livro de Zimbabwe, a obra catapultou a carreira de Couto internacionalmente. Além do Prêmio Camões de 2013, Mia recebeu também o Prêmio Vergílio Ferreira pelo conjunto da obra, em 1999, e o União Latina de Literaturas Românticas, em 2007.
Quando analisamos as obras deste moçambicano, a primeira característica a ser evidenciada é a pluralidade de gêneros. Ele trabalha com a poesia, com a prosa (tanto o romance quanto os contos), com a crônica e, ainda, se aventura pelo universo da literatura infantil. Para contemplar todas essas dimensões, foi preciso ler um pouco de cada gênero. Escolhi, assim, para análise "Raiz de Orvalho e Outros Poemas", livro de poesia, "O Fio das Missangas", que é de contos, "Terra Sonâmbula", um romance, "O Gato e o Escuro", uma obra infantil, e "E Se Obama Fosse Africano?", uma publicação de crônicas. Qual escritor da atualidade atua com tanta desenvoltura em todas essas áreas ao mesmo tempo, hein? Poucos. E Mia Couto faz tudo isso com grande excelência. Trata-se, sem dúvida nenhuma, de um escritor completo.
As obras de Mia Couto possuem uma beleza e uma singularidade incomparáveis. Sua linguagem é recheada de lirismo. A prosa se mistura o tempo inteiro com a poesia, com a rima e com a sonoridade musical. Veja alguns exemplos: "O gesto contido, o olhar regrado, o silêncio esmerado. Até o seu sentar-se era educado" (O Fio das Missangas); "Um velho e um miúdo vão seguindo pela estrada. Andam bambolentos como se caminhar fosse seu único serviço desde que nasceram. Vão para lá de nenhuma parte, dando o vindo por não ido, à espera do adiante. Fogem da guerra, dessa guerra que contaminara toda a sua terra" (Terra Sonâmbula); "A mãe gata sorriu bondades, ronronou ternuras, esfregou carinho no corpo do escuro" (O Gato e o Escuro); e "E, agora, pronto: ponho ponto. Nem me alongo para não esticar o engano" (O Fio das Missangas)..
O autor também usa muitas metáforas em sua prosa, geralmente fazendo comparações com a natureza física, com a condição do ser humano e com as particularidades da vida. Veja alguns casos: "Molhado, quase líquido, o dia brotava das fundas águas do Índico. Se ergueu com a soberania das coisas derradeiras. E a terra se via estar nua, lembrando distante seu parto de carne e lua" (Terra Sonâmbula); "A vida é um colar. Eu dou o fio, as mulheres dão as missangas. São sempre tantas, as missangas..." (O Fio das Missangas); "Dentro de cada um há o seu escuro. E nesse escuro só mora quem lá inventamos" (O Gato e o Escuro); e "Minha alma era um rio parado, nenhum vento me enluava a vela dos meus sonhos. Desde a morte de meu pai me derivo sozinho, órfão como uma onda, irmão das coisas sem nome" (Terra Sonâmbula).
As histórias de Mia Couto são repletas de fantasia e de acontecimentos mágicos, tão típicos da cultura africana. As citações sobre as magias, os fantasmas e as crendices populares permeiam grande parte de suas narrativas. Em "Terra Sonâmbula", por exemplo, o pai de Kindzu recebe previsões sobre o futuro através de sonhos e, depois de morto, aparece para o filho constantemente. Em determinada passagem do mesmo livro, explica-se o motivo das panelas começarem a rachar quando aquecidas no fogo: "Se as panelas começaram a rachar é porque alguém andou namorando esta noite. Quintino me explicou: num lugar novo, como aquele, ninguém pode fazer namoros, nos primeiros tempos. Para os que chegam, aquele campo era recente, cheio de interdições. Violar essa espera iria trazer grande desgraça. Agora os velhos do centro queriam saber quem foram os autores da desobediência".
A narração de Couto é marcada pela oralidade. Escreve-se como o povo moçambicano retratado fala. "É que estou grávida, maistravez" (O Fio das Missangas); "Esse monhé, cabrão, ainda lhe lixam antes de eu sacar vantagem do meu negócio..." (Terra Sonâmbula); e "Mulato cornudo, despacha-te!" (Terra Sonâmbula). Ler os diálogos e os pensamentos das personagens é, de certa maneira, viajar para a África. Assim, temos contato com muitas palavras tipicamente moçambicanas. Na passagem "No sossego, sou cego; na timaca não vejo" (Terra Sonâmbula), timaca é confusão, briga. Em "Veja essa corda, satanhoco. Veja!" (Terra Sonâmbula), satanhoco é uma espécie de impropério similar a sacana. E em "Matem-me esse muenhé, eram os gritos do mandador dos assaltantes" (Terra Sonâmbula), muenhé é a forma informal de expressar a palavra monhé, um depreciativo da palavra indiano.
Uma das características mais marcantes do autor moçambicano é a criação de muitos neologismos. Praticamente há pelo menos um por página. Dessa maneira, Couto é muito comparado a Guimarães Rosa, escritor brasileiro que ficou famoso por criar novas palavras. Veja esse trecho do livro "O Fio das Missangas": "A canoa se ondeava, adormentada em águas perdidas. Meu peito bumbumbava, acelerado”. Em uma única frase há três neologismos (ondeava, adormentada e bumbumbava). Incrível! Em "O Fio das Missangas" há vários outros como "zaranzeando", "pressentimental" e "talvezmente". Em "Terra Sonâmbula" há dezenas. Pontapina, choraminguante, cantarinhar, escãozelada, direitamento, Carolinda, exactamesmo e administraidor são alguns destes.
A literatura de Couto é do estilo militante. Ele aborda e denuncia vários temas sociais e políticos do seu continente e do seu país, debatendo cada assunto com grande rigor intelectual e com uma forma poética de apresentar seu ponto de vista. Ele usa muitos exemplos do cotidiano, apresenta histórias interessantes e constrói personagens curiosas. Ao invés de ir de um ponto a outro em linha reta, como seria de se imaginar, Mia prefere sempre utilizar curvas e desvios, enriquecendo suas denunciais. Assim, as narrativas se tornam saborosas e mais impactantes.
A guerra é um assunto recorrente em suas histórias (é o tema principal de "Terra Sonâmbula") e em sua poesia ("Raiz de Carvalho e Outros Poemas"). Vale lembrar que Moçambique ficou quase 27 anos em conflitos permanentes, primeiro com a Guerra de Independência, de 1965 a 1975, e depois com a Guerra Civil, de 1976 a 1992. As mortes, a destruição, a fome, a miséria e as atrocidades deixadas pelas brigas de poder marcaram não apenas a nação e seu povo como também deixou marcas na literatura nacional. Em vários dos poemas de "Raiz de Carvalho e Outros Poemas" é possível constatar a referência às perdas e às mortes provocadas pelas guerras: "Não saberei nunca/ dizer adeus/ Afinal/ só os mortos sabem morrer/ Resta ainda tudo/ só nós não podemos ser" (Poema da Despedida); e "Nada me alimenta/ porque sou feito de todas as coisas/ e adormeço onde tombam a luz e a poeira/ A vida (ensinaram-me assim)/ deve ser bebida/ quando os lábios estiverem já mortos/ Educadamente mortos" (Manhã).
Couto também aborda temas como a opressão contra a mulher pela sociedade machista e patriarcal moçambicana. "O Fio das Missangas" relata principalmente o abandono, a violência e o desprezo dos homens às suas esposas, filhas, irmãs, vizinhas e conhecidas. O preconceito racial contra os negros também é denunciado. "Eu tinha a raça errada" (O Fio das Missangas); "Ainda lhe veio à cabeça responder: preto não pensa, patrão" (O Fio das Missangas); e "Nós, sendo mulatos, tínhamos sorte em receber as simpatias do chefe" (O Fio das Missangas). O autor não esquece de escancarar o preconceito social contra os pobres. "Sonhe com cuidado, Mariazita. Não esqueça você é pobre. E um pobre não sonha tudo, nem sonha depressa" (O Fio das Missangas).
No livro de crônicas "E Se Obama Fosse Africano?", o autor consegue apresentar melhor seus pontos de vista sobre esses assuntos, avançando em suas críticas sociais. Ele comenta a atitude dos africanos de descrença em relação ao futuro e de vitimização em relação ao seu passado, debate a violência e a opressão contra as mulheres, as crianças, os idosos e algumas etnias na África, apresenta as formas de violência oculta na sociedade moçambicana, discute o mito de que os moçambicanos são um povo pacífico e analisa os pecados do esquecimento dos ensinamentos dos períodos de guerra.
Mesmo com uma temática envolta em guerras, fome, medo, violência, corrupção, maldades e privações, o que gera a decadência moral do seu país e da sua sociedade, as quebras dos laços familiares e a deterioração dos valores morais, as histórias de Couto conseguem trazer uma leveza e uma beleza ímpares. O texto não é pesado nem trágico. O autor com seu lirismo, sua sensibilidade e sua construção poética consegue deixar belo até o que poderia ser retratado como feio. Além disso, Mia Couto mostra a importância de sonhar e de ter esperanças que os dias melhores virão. Ele ilumina os amores entre homens e mulheres, as amizades genuínas e as lutas pela sobrevivência de maneira positiva e alegre. As metáforas utilizadas para explicar o cotidiano também ajudam a suavizar algumas passagens.
Como consequência, temos histórias essencialmente tristes amenizadas pela sensibilidade do autor e contadas com extrema delicadeza. Por exemplo, em "O Fio das Missangas", Couto compara as mulheres aos objetos descartáveis do dia a dia, como saias velhas e cestos de comida. A forma poética de Mia escrever transforma o tom sombrio das suas tramas em algo belo e, até mesmo, agradável.
Até na poesia temos um Mia Couto militante. Em "Raiz de Orvalho e Outros Poemas", principal livro de poesia do autor moçambicano, o tema principal dos poemas é a tradição e a memória cultural da África. Couto, assim, analisa aspectos da identidade do seu povo, o engajamento político e as transformações sociais sofridas após a descolonização e a independência de Moçambique. Quem espera ver poemas românticos e de amor, pode tirar o cavalinho da chuva. Em "Raiz de Orvalho e Outros Poemas", o escritor se apresenta como libelo do engajamento político, sendo o porta-voz de algumas causas. Mia Couto, nessa obra, alia a excelência estética com a preocupação ideológica.
A entrada no universo infantil foi uma consequência natural após o escritor passar a contar histórias para os seus filhos. "Nunca acreditei que, um dia eu escreveria uma história que iria constar de um livro infantil. Mas sucedeu assim. À força de contar histórias para meus filhos adormecerem, inventei uma convicção para mim mesmo e acredito que invento histórias para a Terra inteira adormeça e sonhe. O escritor traria, assim, o planeta ao colo", escreveu na introdução ao livro "O Gato e o Escuro".
Dessa forma, termino aqui a análise crítica de Mia Couto. Considero que valeu muito a pena ler seus livros e estudar suas obras neste Desafio Literário. Trata-se realmente de um escritor talentosíssimo, completo e de uma literatura bem peculiar. Quem gosta de boas histórias, de uma escrita poética e humana e admira a diferença cultural dos povos, irá, com certeza, adorar Mia Couto. Recomendo essa leitura!
Gostou da seleção de autores e de obras do Desafio Literário? Que tal o Blog Bonas Histórias? Seja o(a) primeiro(a) a deixar um comentário aqui. Para saber mais sobre as Análises Literárias do blog, clique em Desafio Literário. E não deixe de curtir a página do Bonas Histórias no Facebook.