Jorge Amado, o autor analisado neste mês no Desafio Literário do Blog Bonas Histórias, é um dos escritores mais conceituados do país, tanto nacional quanto internacionalmente. A sua literatura possui marcas próprias, caracterizando seu autor como um dos mais influentes propagadores da cultura brasileira no mundo. Da primeira obra publicada em 1931, "O País do Carnaval" (Companhia das Letras) à última, em 2008, "A Hora da Guerra" (Companhia das Letras), livro póstumo de crônicas, o portfólio do artista conta com quase 50 livros. Em sua fase mais prolífica, Amado praticamente escreveu um livro por ano. Além da grande quantidade de obras, a carreira deste escritor ficou marcada pela qualidade das suas publicações.
O baiano foi o responsável pela criação de alguns clássicos da literatura nacional. "Gabriela, Cravo e Canela" (Companhia das Letras), "Dona Flor e Seus Dois Maridos" (Companhia das Letras) e "Tieta do Agreste" (Companhia das Letras) permanecem até hoje no imaginário popular. "Capitães da Areia" (Companhia das Letras) é um manifesto em defesa dos menores abandonados e uma excelente crítica social. O mesmo se aplica a "Tenda dos Milagres" (Companhia das Letras), uma ode ao fim do preconceito racial e uma apologia à miscigenação. "A Morte e a Morte de Quincas Berro D'Água" (Companhia das Letras), por sua vez, é uma novela cômica e inovadora. Não se pode esquecer da força narrativa e da dramaticidade de "Teresa Batista Cansada de Guerra" (Companhia das Letras).
As forças destas histórias e de suas personagens permitiram que as obras de Amado ganhassem, ao longo do tempo, novos formatos, além das páginas impressas. Elas se transformaram em minisséries televisivas, em produções cinematográficas e em peças teatrais. Essas expansões das narrativas, principalmente nas décadas de 1970 e 1980, ajudaram a popularizar ainda mais seu autor e suas tramas.
Vale destacar que Jorge Amado é o segundo escritor brasileiro mais vendido no exterior em toda a história. Ele só foi superado recentemente por Paulo Coelho no topo desta lista. Contudo, ele permanece sendo considerado o autor brasileiro mais famoso de todos os tempos lá fora. Suas obras foram traduzidas para 80 países, em 49 idiomas, e ele recebeu uma infinidade de prêmios. O título mais importante veio em 1994, o Prêmio Camões, o principal da Língua Portuguesa. Em 2001, após sucessivas internações decorrentes de problemas de saúde, Amado morreu alguns dias antes de completar 89 anos.
A carreira de Jorge Amado pode ser classificada em duas fases distintas. Na primeira, de 1931 a 1954, o escritor optou por romances com temática mais social, criticando a exploração do povo ("Cacau" de 1933), denunciando a luta de classes ("Suor" de 1934), discutindo o preconceito racial ("Jubiabá" de 1935), apontando o abandono e a marginalização das crianças de rua ("Capitães de Areia" de 1937) e denunciando a luta contra a fome por parte dos sertanejos ("Seara Vermelha" de 1946). É verdade que depois deste período, o escritor também lançou algumas histórias com este apelo, como "Tereza Batista Cansada de Guerra" de 1972 (exploração sexual da mulher) e "Tenda dos Milagres" (preconceito racial e imposição cultural). Porém, o foco maior na denúncia social ficou mesmo nesta primeira parte da sua carreira.
Desta fase, podemos destacar "Capitães da Areia" e "Tenda dos Milagres". O primeiro foi o maior sucesso editorial do escritor (vendagem de 5 milhões de cópias em todo o mundo), tendo sido também o livro que mais trouxe problemas para seu autor. A obra foi considerada, na época do seu lançamento, um manifesto comunista, teve exemplares queimados em praça pública e foi proibida pelo governo. Por causa desta publicação, Jorge foi preso pela Ditadura Vargas pela primeira vez.
A história de "Capitães da Areia" é sobre os meninos pobres e abandonados que viviam nas ruas de Salvador. "Tenda dos Milagres", por sua vez, é sobre um mulato simples e pobre da capital baiana que escreveu livros enaltecendo o poder da miscigenação e a força de caráter dos negros. Ele tornou-se um intelectual respeitado internacionalmente depois da sua morte.
A partir do lançamento de "Gabriela, Cravo e Canela", em 1958, a literatura de Amado se transforma. Entramos, assim, na segunda fase da carreira do escritor. Ele abandona a crítica social (pelo menos ela deixa de figurar como o ponto principal das tramas, sendo colocada em um segundo plano) e passa a descrever as crônicas de costumes da época. Ele aborda mais intensamente os tipos populares, os coronéis, as mulheres sensuais, as damas conservadoras, os homens libertinos, os artistas, os empresários, os jovens, os idosos e as crianças das classes sociais mais desfavorecidas. O foco recai nas pessoas e nos tipos mais simples da Bahia, seu ponto de referência. Jorge Amado confronta os valores éticos e culturais do seu povo, narrando seus hábitos, seus costumes, sua cultura e seus ideais. São exemplos desta nova etapa, além de "Gabriela, Cravo e Canela", "Dona Flor e Seus Dois Maridos" e "Tieta do Agreste". Podemos colocar também "A Morte e a Morte de Quincas Berro D'Água" nesta categoria.
É essa segunda fase do artista a que mais se popularizou na mente do público leitor. "Gabriela, Cravo e Canela" é o meu livro favorito de Jorge Amado e acredito que seja também a história predileta de muita gente. Talvez "Dona Flor e Seus Dois Maridos" consiga rivalizar, em popularidade e em preferência, com a trama de Gabriela. O mais interessante desse primeiro livro da nova fase é que ele consegue abordar ao mesmo tempo acontecimentos gerais da cidade de Ilhéus (onde a história se passa) e da política local (confronto entre o Coronel Ramiro Bastos e Mundinho Falcão) e o impacto desses fatos na vida das pessoas comuns (principalmente de Nacib e da sua cozinheira sertaneja).
"Dona Flor e Seus Dois Maridos", apesar de possuir muitas características parecidas com a obra anterior, foca mais na vida da professora de culinária Florípedes e no dilema moral de possuir dois esposos (um vivo e outro finado, mas ainda presente). "A Morte e a Morte de Quincas Berro D'Água" é uma novela divertidíssima na qual se narra as "duas mortes" de um ex-funcionário público que abandonou a vida regrada para viver da malandragem e da vadiagem pelas ruas da capital da Bahia. A grande sacada desta história está na inovação no formato, dando voz e "vida" para alguém falecido.
A primeira grande característica que podemos ressaltar de Jorge Amado é sua alta dose de sinestesia. Ao ler suas páginas, praticamente temos todos os nossos sentidos aguçados. O olfato é estimulado ora pelo cheiro expelido pelas cidades (Ilhéus, por exemplo, tem o perfume do cacau, fruto plantado em grande escala na região) e ora pelos corpos das mulheres (o perfume natural das mulatas é um importante afrodisíaco para os homens). O paladar é estimulado pela culinária. As personagens principais de "Dona Flor e Seus Dois Maridos" e "Gabriela, Cravo e Canela" são exímias cozinheiras. Em todos os livros, os pratos típicos e a culinária baiana são retratados com destaque.
A visão, outro sentido muito explorado na narrativa, está intimamente ligada à sexualidade das mulheres (principalmente das mulatas) e à pluralidade cultural dos locais retratados (a Tenda dos Milagres, por exemplo, é descrita como um cenário idílico da cultura popular baiana; com os relatos de Salvador, é possível visualizar as ruas da capital baiana, com suas comidas, suas práticas religiosas, os hábitos dos seus habitantes e as intrigas sociais estabelecidas).
O tato, por sua vez, aparece mais evidentemente nas relações carnais dos personagens (Vadinho e Gabriela são extremamente táteis). E este aspecto não é exclusivo dos amantes (Nacib & Gabriela e Vadinho & Flor), mas também dos amigos (os meninos de "Capitães da Areia" estão sempre se tocando). E, por fim, a audição é aflorada no linguajar do povo e pelas músicas populares, que são retratadas em quase todos os livros.
A segunda característica importante do escritor baiano é a alta dose de sensualidade e sexualidade de seus personagens. Cada livro possui pelo menos um personagem com alta dosagem de erotismo (Gabriela, Vadinho, Archanjo, Gato e Quincas Berro D'Água). A castidade e o puritanismo da menina Dora, em "Capitães da Areia", é uma exceção. A sensualidade e a sexualidade são indiferentes à idade, à classe social e ao gênero. Esses personagens de Jorge Amado vão para cama com muitos parceiros por vontade própria e geralmente sem pudor ou ressentimento. Não há medo, preocupações ou receio religioso. O sexo é descrito como algo que confere liberdade aos seus praticantes, sendo natural dos corpos humanos. Os personagens não têm ciúmes dos parceiros (Vadinho chega a chamar o outro marido de Flor de sócio) e são muito bem resolvidos sexualmente. A maldade, assim, está nos olhos da sociedade puritana, nas regras “absurdas” da crença monogâmica e nos julgamentos presunçosos das pessoas conservadoras, e não nos atos em si desses personagens.
A questão social, que tem maior peso nas obras da fase inicial de Jorge Amado, não some totalmente nos livros da segunda fase. Ela apenas se situa em um segundo plano. O debate entre o progresso e o atraso, a disputa política entre os poderosos, as críticas dos costumes da sociedade, o preconceito religioso, a distinção entre pobres e ricos, as questões raciais e a polêmica sobre qual é a melhor forma de sistema econômico (socialismo ou capitalismo) estão presentes o tempo inteiro nas histórias. Ler Jorge Amado, de certa forma, é vislumbrar um aspecto político (ele sempre foi comunista) e interagir com uma ideologia sobre a cultura e a sociedade brasileira (ele sempre foi um entusiasta dos pobres, dos oprimidos e da cultura popular).
Outro elemento marcante de Jorge Amado está em retratar os tipos populares. O baiano adorava colocar como personagens centrais das suas tramas os tipos mais simples da sociedade: o vagabundo, o retirante, o menino de rua, o malandro, o capoeirista, o praticante de Candomblé, a prostituta, a cozinheira, etc. Todos esses personagens foram descritos com o respeito e a profundidade narrativa que eles merecem.
Outra questão relevante na obra de Amado é a religiosidade de origem africana. Na maioria dos seus livros, são citadas e narradas as práticas do Candomblé. Mesmo sendo católico, o escritor nutria uma admiração e um grande respeito pelas crenças trazidas pelos africanos e exercidas pelos baianos de origem mais humilde. O Candomblé é descrito em detalhes, com citações minuciosas dos deuses e de suas práticas, além da perseguição religiosa aos praticantes desta religião e o preconceito de parte da sociedade para com esta fé. Com Amado, mergulhamos na cultura e na fé dos negros da Bahia.
Os demais elementos da cultura popular baiana de origem africana surgem nos relatos da vida do povo simples, das festas populares, das comidas, da música e do folclore local. Jorge Amado é um grande apreciador e conhecedor da cultura popular do seu estado, não se cansando de relatar nas páginas dos seus livros os hábitos da sua gente.
Assim, é com admiração que encerro a leitura das obras de Jorge Amado deste Desafio Literário. Este gênio da nossa literatura deixou alguns clássicos para nosso povo que são motivos de orgulho para a nossa gente até hoje. Sua literatura é ao mesmo tempo popular e cativante, com histórias envolventes e polêmicas. Conhecer mais sobre os livros e a carreira de Amado é, de certa forma, mergulhar na cultura popular da Bahia e conhecer um pouquinho mais do nosso povo e da nossa gente.
No mês que vem, o Blog Bonas Histórias traz a análise de mais um escritor renomado. O autor que terá sua literatura estudada em julho será John Green, o best-seller norte-americano da atualidade. Não perca os próximos capítulo do Desafio Literário.
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