Os anos de 1980 foram considerados por historiadores e economistas como a "Década Perdida". Neste período, o Brasil, ao invés de andar para frente, caminhava para trás. A economia não crescia, a população empobrecia, a dívida aumentava e a democracia ainda engatinhava depois de anos de ditadura militar. Diante deste cenário de pessimismo e total apatia, Ignácio de Loyola Brandão lançou "Não Verás País Nenhum" (Global) em 1981.
Este livro pode ser descrito como sendo uma ficção científica do terceiro mundo. Afinal, "Fahrenehit 451" (Biblioteca Azul) de Ray Bradbury, "Revolução dos Bichos" (Companhia das Letras) e "1984" (Companhia das Letras) de George Orwell e "Admirável Mundo Novo" (Globo) de Aldous Huxley são ficções científicas desenvolvidas por autores acostumados a viver em países do primeiro mundo. O que eles teriam escrito se tivessem nascidos no Brasil? Parte desta resposta passa pela leitura da obra de Loyola Brandão.
"Não Verás País Nenhum" é uma ficção científica do tipo distopia. A distopia é a descrição de uma localidade fora da história e da geografia convencional, em que as tensões sociais e de classes são evitadas por meio da violência governamental ou pelo controle social. De certa forma, a distopia é o contrário de uma utopia. Ao invés de descrever um futuro idílico, ela retrata um cenário sinistro para o amanhã.
No caso da obra de Loyola Brandão, o cenário futurista e trágico se passa em São Paulo no ano de 2003. A cidade brasileira é afetada por uma forte onde de calor, provocada pela destruição da floresta Amazônica (a floresta virou um grande deserto). Além das altas temperaturas e da ação mortífera do sol, há anos não cai uma só gota de água do céu. A chuva é algo que a população nem se lembra de ter visto pela última vez. Sem água, todos os animais morreram e não há só uma planta no país. A agricultura e a cobertura vegetal morreram completamente. Assim, todos os alimentos são industriais e artificiais.
Para conter a revolta da população, que a cada dia fica mais pobre e desesperada por alimento e água, os incompetentes e corruptos políticos (o país ainda é governado pelos militares) decidiram por vender algumas regiões do Brasil para grandes corporações estrangeiras. Assim, o Norte e o Nordeste deixaram de pertencer ao território da nação. A própria cidade de São Paulo foi dividida para não haver grandes conflitos sociais. Pobres e ricos foram segregados em bairros próprios e o ir e vir pela cidade ficou limitado à apresentação de passaportes (algo parecido com o que acontecia na África do Sul no período do Apartheid).
Neste Brasil pós-apocalipse, vive Souza. Homem pacato, ele mora com sua esposa Adelaide em um velho prédio no centro de São Paulo e trabalha conferindo as informações digitalizadas pelo computador (ou seja, um trabalho repetitivo, banal e desnecessário). Souza tem uma vida simples e pautada pela rotina. Acostumado ao dia a dia urbano (superpopulação da cidade, trabalho repetitivo e sem sentido, falta de água, comida industrializada, calor excessivo, violência policial, aumento da pobreza e grande tensão social), Souza é surpreendido quando aparece um buraco em sua mão. Um furo redondo surge na palma de uma de suas mãos, desencadeando várias transformações na vida dele. Para recolocar sua vida novamente nos eixos, Souza precisa compreender o que está acontecendo com o país e a cidade onde mora. Para isso, precisará se rebelar contra o sistema (chamado de "Esquema", um tipo de governo totalitário), tornando seu dia a dia muito perigoso.
"Não Verás País Nenhum" é um livro espetacular. Além de divertido, ele consegue ainda ser muito atual (mesmo tendo se passado mais de trinta anos do seu lançamento). Afinal, estamos falando da destruição da floresta Amazônica (a cada dia ela fica menor), os efeitos do clima em nossa vida (o superaquecimento planetário não para), a falta de chuva e de água (principalmente em São Paulo, que passa por uma crise hídrica sem precedentes), os conflitos sociais e regionais (as últimas eleições provaram o quanto ainda há embates políticos entre as diferentes regiões do país) e a violência policial em nossa sociedade (não mais aplicada pelos militares, mas pelas forças de segurança pública).
O livro de Loyola Brandão mistura certo ativismo ecológico com críticas político-sociais. A destruição do meio ambiente apenas agravou a condição de vida da população. Os grandes responsáveis pela degradação social, contudo, foram os políticos, responsáveis por depredar o patrimônio nacional em benefício próprio. A população brasileira também foi, de certa forma, culpada pelos acontecimentos, por ser passiva e leniente. O trágico retrato do futuro do Brasil é ao mesmo tempo angustiante e típico da visão tida no início da década de 1980. Naquela época, o país estava realmente caminhando para o desfiladeiro.
Com um humor leve, recheado de ironia e com uma atmosfera sufocante, a obra é pautada com várias discussões reflexivas. Ora são os diálogos travados pelos personagens que enriquecem o debate com temas polêmicos, ora são os pensamentos e as divagações do personagem principal (Souza), tentando entender o que está acontecendo a sua volta, que levanta questões relevantes para a discussão.
O curioso desta obra é que a medida que a história vai avançando, o estado mental de Souza vai se deteriorando. No final da trama, não sabemos se ele enlouqueceu ou se ele é a única pessoa realmente sã. Pensando bem, às vezes é complicado distinguir os loucos dos gênios e vice-versa.
"Não Verás País Nenhum" é uma das principais publicações de Ignácio de Loyola Brandão, tendo sido agraciada, em 1984, com o Prêmio IILA, do Instituto Ítalo-Latino-Americano, como o melhor romance latino-americano editado na Itália do ano anterior (o livro havia sido publicado naquele país em 1983).
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