Adoniran Barbosa é um compositor conhecido pelas suas músicas alegres e bem-humoradas. Ao introduzir nas canções a oralidade do linguajar simples dos paulistanos da metade do século XX e ao retratar situações corriqueiras das camadas mais pobres da capital paulista, ele revolucionou o samba. "Tiro ao Álvaro", "As Mariposa" e "Um Samba no Bixiga" são exemplares desta capacidade de Adoniran em fazer algo divertido com histórias banais. Até mesmo quando ele fala de algo triste (como a derrubada da casa, em "Saudosa Maloca", um encontro malsucedido, em "Samba do Ernesto", ou a impossibilidade de passar a noite com a amada, em "Trem das Onze"), o tom é alegre e descontraído.
Isso não acontece em "Iracema". Esta talvez seja umas das músicas brasileiras mais trágicas da história. Seus versos finais são de uma triste profunda: "E hoje, ela vive lá no céu/ E ela vive bem juntinho de nosso Senhor/ De lembranças guardo somente suas meias e seus sapatos/ Iracema, eu perdi o seu retrato".
A canção, considerada até hoje um clássico nacional, completa 60 anos em 2016. A primeira gravação desta melodia ocorreu em 1956 e foi feita pelos Demônios da Garoa, principais intérpretes de Adoniran. O sucesso foi imediato. A canção trágica se tornou uma das principais do repertório do grupo. Em 1978, Clara Nunes regravou "Iracema" dando um tom mais passional. Outra vez o sucesso foi retumbante.
Adoniran Barbosa escreveu "Iracema" muito provavelmente tendo como inspiração uma notícia de jornal sobre o atropelamento de uma mulher na Rua da Consolação. Há outra versão em que o compositor teria feito a letra da música para um amor não correspondido. Com a canção, teria matado figurativamente aquela mulher da sua vida.
"Iracema" narra o lamento de um homem pela morte de sua amada. Faltando vinte dias para o casamento, a noiva atravessou a Rua São João sem olhar para os lados e foi atropelada, morrendo tragicamente. O enredo da história não é cantado e sim falado no meio da canção. Na versão de Clara Nunes, o próprio Adoniran explica para os ouvintes o episódio.
Se formos analisar bem, trata-se de uma canção teoricamente pouco comercial. Quem iria apreciar uma música com este enredo fúnebre?! A lógica diz que pouca gente. Uma das primeiras pessoas a ouvir a canção foi Nair Belo, amigo do compositor. Quando o amigo mostrou sua nova composição, a atriz sentenciou: "Adoniran, você está louco?! O que é isso, fazer um samba sobre mulher atropelada? Ninguém vai gostar disso, de uma coisa dessas, pode ter certeza". O tempo mostrou que Nair Belo estava errada. Veja a letra desta canção:
"Iracema" (1956) - Adoniran Barbosa
Iracema, eu nunca mais que te vi
Iracema meu grande amor foi embora
Chorei, eu chorei de dor porque
Iracema, meu grande amor foi você
Iracema, eu sempre dizia
Cuidado ao travessar essas ruas
Eu falava, mas você não me escutava não
Iracema você travessou contra mão
E hoje, ela vive lá no céu
E ela vive bem juntinho de nosso Senhor
De lembranças guardo somente suas meias e seus sapatos
Iracema, eu perdi o seu retrato.
Iracema, fartava vinte dias pra o nosso casamento
Que nóis ia se casar
Você atravessou a Rua São João
Veio um carro, te pega e te pincha no chão
Você foi para Assistência, Iracema
O chofer não teve curpa, Iracema
Paciência, Iracema, paciência
E hoje, ela vive lá no céu
E ela vive bem juntinho de nosso Senhor
De lembranças guardo somente suas meias e seus sapatos
Iracema, eu perdi o seu retrato
Veja a interpretação dos Demônios da Garoa:
E agora confira a versão de Clara Nunes, de 1978, com o acompanhamento do compositor:
É difícil apontar qual das duas versões é a melhor, não?
Depois de "Trem das Onze", "Iracema" é a principal música de Adoniran Barbosa. Ela está na lista das principais canções da música popular brasileira. Trata-se de um samba original e muito criativo, além de profundamente triste.
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