Um romance difícil e profundo que exige, acima de tudo, maturidade por parte do leitor. Estes foram os primeiros comentários que passaram pela minha mente ao ler a última página de "A Paixão Segundo G.H." (Rocco), de Clarice Lispector. Ao lado de "A Hora da Estrela" (Rocco) e "Laços de Família" (Rocco), "A Paixão Segundo G.H." foi a principal obra da escritora nascida na Ucrânia e naturalizada brasileira. Publicado inicialmente em 1964, este livro compõe a fase madura de Lispector, sendo considerado por muitos críticos literários como um dos principais romances da segunda metade do século XX do nosso país.
O enredo deste livro é aparentemente simples. Uma mulher rica, proprietária de um apartamento em uma cobertura, decide entrar no quarto da empregada recém-demitida para limpar o ambiente antes da contratação de uma nova profissional. Contudo, uma força misteriosa prende a mulher naquele quartinho. Ela não consegue mais sair dali. As coisas só pioram quando uma barata aparece. Com medo e nojo do inseto, a proprietária decide matar a barata. Estes acontecimentos banais desencadeiam uma sucessão de reflexões na protagonista, fazendo-a repensar sua vida a partir de cada detalhe daquele quartinho escondido da sua casa.
A narrativa é feita em primeira pessoa pela dona do apartamento. O nome da mulher não aparece em nenhum momento durante a trama. Ficamos sabendo apenas as suas iniciais: G.H. Ela conta o episódio no quarto da empregada ao mesmo tempo em que faz divagações sobre seus medos, suas frustrações, seus sonhos, seus desejos, seus relacionamentos e sua rotina. Tudo é motivo para uma boa dose de reflexão. O que liga os capítulos do livro é a frase inicial e final de cada um deles. Ou seja, a última frase de um capítulo é a mesma frase de abertura da nova seção. O tom do romance é de um monólogo existencialista que não respeita o tempo cronológico. As impressões e os pensamentos da protagonista aparecem à medida que surgem na mente dela. Esta é a principal característica literária de Clarice Lispector. O intenso e constante fluxo de consciência da narradora leva o leitor para dentro da alma da personagem, sendo possível compreender seus sentimentos, suas preocupações e suas aspirações.
Outro aspecto interessante de "A Paixão Segundo G.H." é a constante referência à linguagem, feita pela protagonista-narradora, como forma de buscar a essência do seu ser e dos demais seres humanos. Neste ponto, as palavras e a comunicação interpessoal, segundo o livro, são as responsáveis por afastar as pessoas de suas essências e do caminho que deveriam seguir. Trata-se de um debate filosófico que permeia toda a obra e que vai, pouco a pouco, se aprofundando em um drama psicológico denso e passional.
Admito que sofri um pouco (ou seria muito?) para concluir este romance. Esta leitura não é nada fácil. É preciso certa coragem e disposição para embarcar no debate existencialista proposto por Lispector. O ideal é que esta narrativa seja lida lentamente e com atenção redobrada por parte do leitor para que ele não se perca no emaranhado de reflexões de G.H. A ausência de um enredo mais elaborado (tudo acontece, basicamente, dentro do quartinho de empregada), o limitado número de personagens (acredite, só há a protagonista e a barata) e a falta de ação (a história é pautada por reflexões e não por episódios concretos) podem assustar. Por isso, é interessante ler e reler esta obra várias vezes.
A impressão que tive ao ler "A Paixão Segundo G.H." é de estar interagindo com um livro que mistura Franz Kafka (impossível não se recordar de "A Metamorfose"), Italo Calvino (e suas obras metalinguísticas e filosóficas como "Palomar"), Luis Buñuel (e seu filme surrealista "O Anjo Exterminador") e Jean-Paul Sartre (e sua teoria Existencialista). Clarice Lispector é tudo isso e mais um pouco. Ela ainda acrescenta um perspicaz conhecimento da alma feminina à trama e entrelaça prosa e poesia ao seu texto.
Você pode gostar ou não gostar de "A Paixão Segundo G.H.", mas é impossível não reconhecer que se trata de uma obra profunda e com vasto conteúdo para debates e reflexões. A própria autora aponta este livro como sendo mais indicado para pessoas que atingiram um alto grau de maturidade (o que, infelizmente, ainda não é o meu caso). Afinal, é preciso lastro e bagagem de vida para entender a filosofia de G.H. contida nas 180 páginas do romance.
Gostou deste post e do conteúdo do Blog Bonas Histórias? Se você é fã de literatura, deixe seu comentário aqui. Para acessar as demais críticas, clique em Livros. E aproveite para curtir a página do Bonas Histórias no Facebook.