Li, nesta semana, o livro "A Mulher que Escreveu a Bíblia" (Planeta DeAgostini), do gaúcho Moacyr Scliar. Publicada em 1999, esta obra ganhou o prêmio Jabuti, no ano seguinte, na categoria melhor romance. Scliar era médico, carreira que seguiu durante toda a vida, e também atuou como romancista, contista, cronista e ensaísta. Lançou mais de setenta livros que lhe renderam vários prêmios (entre eles, quatro Jabuti) e uma cadeira na Academia Brasileira de Letras, em 2003. Moacyr Scliar faleceu em 2011, em Porto Alegre, sua cidade natal, aos setenta e três anos de idade.
"A Mulher que Escreveu a Bíblia" permite ao leitor conhecer o estilo peculiar deste prolífico autor brasileiro. Neste romance, Moacyr Scliar mistura passagens e personagens históricos, elementos da religião judaica, drama feminino e muita ação. A narrativa é saborosíssima, fruto de uma fértil imaginação e de uma habilidade acima da média para se contar uma boa história. Com um texto leve, irônico e bastante ágil, o autor consegue produzir uma trama ao mesmo tempo sedutora e maliciosa, que prende a atenção de quem a lê.
Consumi vorazmente as 216 páginas do livro em duas noites. Este é aquele tipo de leitura que uma vez iniciada, você não quer mais parar de ler. A história praticamente hipnotiza o leitor, fazendo com que ele não desgrude os olhos de suas páginas. Não duvido que muita gente leia este livro de uma única vez. Deve ter sido por isso que Scliar fez este romance sem a divisão tradicional de capítulos. O texto é apresentado praticamente em texto corrido, em uma batida só (salvo uma breve introdução, que adquire característica própria de um capítulo inicial ou de prefácio).
Esta obra inicia-se com o relato em primeira pessoa de um historiador especializado em fazer regressão. Ele se declara "terapeuta de vidas passadas". Conduzindo seus pacientes para outras vidas, o historiador-terapeuta alcançou a fama e o reconhecimento nacional, além de constituir uma boa fortuna com esta ocupação. Ele é figurinha constante dos programas de televisão e é a primeira escolha das pessoas mais ricas do Brasil quando o assunto é regressão.
Neste seu breve relato, de pouco mais de dez páginas, o narrador inicial da trama conta a história da sua paciente mais enigmática, uma moça muito feia que havia contratado seus serviços. Natural do interior, ela havia se mudado para a capital do estado devido às constantes brigas com a família e a uma desilusão amorosa. No meio do "tratamento", entretanto, a jovem abandonou às sessões de repente e partiu para outra cidade. Antes da mudança, ela teve a preocupação de deixar um calhamaço de folhas manuscritas explicando seus motivos para o historiador.
Neste material, ela narrava a trajetória que tivera em uma de suas vidas passadas, conhecida por ela durante as regressões realizadas no consultório do terapeuta. A moça havia mantido segredo em relação a esta história, mas agora resolvera contar tudo. Seu único pedido era que seu verdadeiro nome jamais fosse revelado.
O relato da paciente, também escrito em primeira pessoa e com tom de confidência, se passava no século X antes de Cristo. Aquela moça fora uma das setecentas esposas do Rei Salomão, um dos personagens do Velho Testamento e figura central do judaísmo. Apesar de ser a mulher mais feia que o rei tinha em seu harém, a jovem tinha uma habilidade que poucas pessoas do seu sexo tinham naquela época: sabia ler e escrever. Ser uma mulher alfabetizada, apesar de muito feia, conferiu a ela uma posição de destaque dentro do reino de Salomão.
É com este relato da antiga esposa do rei judeu que o livro efetivamente se inicia e se desenvolve até o final. A história contada pela mais feia entre as esposas do monarca (ou seja, ela se torna a segunda narradora do romance) percorre as demais 200 páginas da obra. A jovem de dezoito anos conta a sua trajetória desde a infância sofrida em um povoado do interior até o período vivido ao lado do marido no castelo real. Seu casamento foi fruto de uma conveniência política entre seu pai (um líder local) e o mandatário da nação.
Os pontos em comum das várias fases da vida da moça são: sempre há muita ação acontecendo paralelamente a sua rotina aparentemente monótona e sem graça; e os desejos lascivos da narradora são o tempo todo frustrados. Ela sonha com uma noite de sexo. Só uma! Por ser muito feia, a jovem se mantém virgem por muitos anos, enquanto os demais personagens se esbaldam na prática sexual. Pode-se dizer que o livro é, em suma, uma grande suruba. Neste cenário liberal, a personagem principal só tem um simples desejo, que ela confessa abertamente: "Só quero uma boa trepada". Algo aparentemente simples, mas que para ela ganha contornos de uma saga quase impossível de ser concluída.
"A Mulher que Escreveu a Bíblia" chama, primeiramente, a atenção do leitor por sua excelente fluência narrativa. Moacyr Scliar consegue contar esta história com uma naturalidade ímpar. Parece que os narradores (o "terapeuta" e a virgem dos tempos bíblicos) estão conversando com a gente. Os elementos narrativos que são inseridos constantemente no livro aumentam ainda mais a dramaticidade da trama. Com isso, os acontecimentos vão se sucedendo aceleradamente, com ótimos instantes de tensão e o surgimento de várias reviravoltas.
Outra questão que merece citação (e elogio) é o linguajar utilizado. Ele ora pende para o formal e ora cai no popular, valendo-se de gírias e de expressões cotidianas. Por exemplo, é comum as personagens do período bíblico se expressarem como as pessoas dos dias de hoje falam. Esta incongruência (proposital) confere certa comicidade à trama e às situações. O humor provocado por este contraste permeia a história do início ao fim.
A graça deste romance também é provocada pelas cenas absurdas (por exemplo, a tentativa de greve das setecentas esposas do rei por causa de ciúmes do marido) e pela característica psicológica da personagem principal. Apesar de ser uma mulher forte, instruída e decidida, ela se torna frágil e passional pela necessidade (não atendida) de sexo. Ela quer deixar de ser virgem a qualquer custo. Assim, a única coisa em que pensa e que influência seus atos é a vontade de ser levada para a cama. Este sonho, contudo, se transforma em pesadelo, porque sempre há algo para frustrá-la. A moça nunca consegue chegar à via de fato. Por isso, suas lembranças mais saudosas são do tempo em que ela fugia para uma caverna, ainda no povoado natal, para pegar uma pedra que tinha o formato fálico. Era com a pedra que a jovem conseguia aliviar sua libido.
Enquanto somos transportados para o passado bíblico, acabamos sendo apresentados a um estilo de vida curioso. O dia a dia na corte do monarca judeu não é como imaginamos. Os aspectos mais pitorescos e inusitados são relatados pela narradora com primor. Impossível não se divertir nem se emocionar com esta história muito bem construída e trabalhada pelo autor.
Moacyr Scliar consegue, em "A Mulher que Escreveu a Bíblia", demonstrar todo o seu talento literário. O romance é um primor de qualidade técnica e narrativa. Utilizando-se de uma trama simples (lembrei, em alguns momentos, de "Mil e Uma Noites"), um texto bem-humorado, boas doses de conhecimento histórico, muitas reviravoltas e várias pitadas mais picantes, o autor produz uma história memorável. É uma delícia ler este livro. A única frustração que ele nos provoca é quando chegamos à última página. Apesar de o desfecho ser bem interessante, a sensação é que não queríamos que a história terminasse. Eita livro bom este!
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