É chegado o momento de falarmos de pagode. "De pagode!!! Você tem certeza, Ricardo?!", podem estranhar alguns. "Sim!", respondo com a tranquilidade de quem está convicto da decisão tomada. "Então, você está sem assunto nesta semana ou não tem nada melhor para tratar neste post, né?", outros podem me questionar. Ao invés de ficarem me julgando previamente, porque os inimigos dos pagodeiros não se dão a chance de ler algo a respeito deste gênero?! E o assunto é interessante: o álbum de maior sucesso da história do pagode, que completa, em 2017, 20 anos.
É muito complicado conversar de um tipo de música em que muita gente torce o nariz e não quer nem escutar. Ainda bem que nunca sofri de preconceito musical. Sempre tive a humildade suficiente para ouvir de tudo, para só depois avaliar se gostei ou não gostei daquilo. Às vezes, o trem pode não ser muito bom, é verdade, mas mesmo assim eu gosto de ouvir. Fazer o quê?! Não é isso o que acontece também com os alimentos? Gostamos geralmente das tranqueiras, comidas com muito açúcar, gordura ou fritura, renegando no dia a dia as opções mais saudáveis e de melhor qualidade. Por que com a música seríamos diferentes?
Até hoje, adoro ouvir rádio (algo cada vez mais fora de moda) e tenho o hábito de trafegar por emissoras desconhecidas da FM. Geralmente é aí onde descubro mais novidades e onde aprendo mais coisas sobre música contemporânea. Também pode ser muito divertido este tipo de incursão pelo submundo da música comercial brasileira.
"Mas o que você entende de pagode, Ricardo?! Pelo que tenho visto em seus posts musicais, você tem um gosto mais apurado!", alguém pode insistir na implicância. Olha aí o preconceito novamente. Classificar uma música como sendo boa ou ruim apenas pelo seu gênero é um dos graves erros que muitas pessoas cometem. Por que não pode existir pagode bom? Além disso, eu já fui, admito, um grande apreciado deste tipo de canção.
Sempre que falo de música e do preconceito que as pessoas têm de alguns gêneros, recordo uma situação que vivi há muitos anos. Estava conversando animadamente, em um barzinho descolado da Vila Madalena, com uma moça bonitinha que fazia o mesmo cursinho pré-vestibulando que eu. Estávamos em plena década de 1990, vale a pena salientar. Naquele clima de paqueração, ela me perguntou com muita curiosidade: "Que tipo de música você gosta?". Eu, na inocência dos meus 17 anos, respondi com sinceridade: "Pagode".
A moça fechou a cara na hora como se eu a tivesse agredido ou a ofendido. "Música é uma coisa muito séria para mim", ela desabafou se afastando com nojo de mim. Esta história parece uma ficção, mas é a mais pura verdade (perguntem a minha mãe: eu contei este episódio para ela na época). A garota nunca mais quis falar comigo só porque eu gostava de pagode... Tornei-me automaticamente um pária aos seus (belos) olhos. Meus dias no cursinho não foram nunca mais tão divertidos como eram antes.
Ou seja, este não é um tema tão novo para mim. Para quem não viveu os anos 1990, o pagode era, em uma comparação simplória, o que o sertanejo universitário é atualmente: o principal gênero musical do país. Enquanto arrebatava uma multidão de fãs, ao mesmo tempo, ele tinha um grande público que o odiava intensamente. Bastava ligar o rádio em uma estação popular para ouvir os grupos de pagode soltando a voz. Nos programas de televisão, os infinitos integrantes destes conjuntos se perfilavam no palco para se apresentarem.
Havia muita coisa ruim, é verdade. Porém, também havia coisa boa. O mesmo ocorre hoje em dia com qualquer gênero. Enquanto há vários cantores sertanejos péssimos, há as boas opções (Paula Fernandes, Victor & Leo e Fernando & Sorocaba são alguns exemplos do que há de melhor nesta seara). Para cada cantor e compositor bom de MPB, Bossa-Nova ou Jazz, há muitos ruins. Isto é algo natural.
O pagode faz parte de uma das vertentes do samba. Ele é mais rápido, harmônico e, na maioria das vezes, mais simples musicalmente. As letras são tradicionalmente do tipo romântica melosa e com rimas fáceis. Há também algumas letras de duplo-sentido que exploram o humor. Este gênero nasceu no final da década de 1970, no Rio de Janeiro, e se espalhou pelo país nos anos 1980. A década de 1990 representou o auge comercial do pagode, com dezenas de grupos se apresentando diariamente pelo Brasil.
Destes grupos, um dos mais exitosos e longevos foi o "Só Pra Contrariar". Formado em 1989 por jovens músicos que eram amigos em Uberlândia, Minas Gerais, o "Só Pra Contrariar" tinha a liderança do carismático vocalista Alexandre Pires, conhecido até hoje pelo grande público. O primeiro sucesso do conjunto ocorreu em 1993. Logo em seu disco de estreia, os mineiros chegaram ao topo da parada musical brasileira com "Que Se Chama Amor", uma música romântica, e "A Barata", canção bem-humorada de duplo sentido.
O auge do "Só Pra Contrariar" chegou quatro anos após seu primeiro LP. Em 1997, os pagodeiros liderados por Alexandre Pires lançaram um disco homônimo que bateria todos os recordes. Não foi a toa que este álbum entrou para a história da música brasileira. Ele se tornou o disco mais vendido de pagode de todos os tempos, com aproximadamente 3 milhões de unidades comercializadas. Para se ter ideia do que este número representou, trata-se do quarto disco mais vendido do Brasil (considerando todos os gêneros musicais). Ele só perde em vendagem para "Músicas para Louvar o Senhor" do Padre Marcelo Rossi, de 1998 (3,3 milhões), "Xou da Xuxa 3", da Xuxa, de 1988 (3,2 milhões), e "Leandro & Leonardo", da dupla sertaneja, de 1990 (3,1 milhões).
Ao ouvirmos novamente este álbum, percebemos os motivos para tanto sucesso. Há músicas que se tornaram clássicas do pagode. "Mineirinho", composição de Alexandre Pires e Lourenço, que ocupa a terceira faixa, é até hoje conhecida e possui seus méritos. Com leveza e bom humor, ela ressalta pontos da cultura e da tradição do povo mineiro. Temos ali a expressão "comer quieto", o "queijo de Minas", os "doces mineiros", o "uai" e as palavras no diminutivo, tão típicas no linguajar popular daquele estado. É uma bela canção. Ouça a música e veja a letra:
Mineirinho (Alexandre Pires e Lourenço - 1997):
Eu não tenho culpa de comer quietinho
No meu cantinho boto pra quebrar
Levo a minha vida bem do meu jeitinho
Sou de fazer não sou de falar
Quer saber o que tenho pra lhe dar
Vai fazer você delirar
Tem o sabor de queijo com docinho
Meu benzinho você vai gostar
É tao maneiro uai
É bom demais
Não tem como duvidar
O meu tempero uai
Mineiro faz
Quem prova se amarra
Ai! Ai!
Não tem como duvidar
Faz! Faz!
Quem prova se amarra
Faz!
Se "Mineirinho" ficou marcado pela música animada e pelo conteúdo inteligente e descontraído, o que falar de "Depois do Prazer"?! Esta canção provoca risos nos ouvintes pela letra abusada e um tanto corajosa. Após ouvir os primeiros versos, aposto que muita gente vai se lembrar desta composição de Chico Roque e Sérgio Caetano. Ela é tão brega e maliciosa que se tornou um clássico do pagode. Quem nunca quis falar para uma ex-namorada ou ex-namorado: "Tô fazendo amor com outra pessoa/ Mas meu coração, vai ser pra sempre teu/ O que o corpo faz, a alma perdoa/ Tanta solidão, quase me enlouqueceu"? Incrível a tranquilidade de se falar tão abertamente em uma traição ou nova relação que nada representou para o eu lírico da música. E o que falar, então, desta outra parte: "Posso até gostar de alguém/ Mas é você que eu amo"? Hilário!
Veja, a seguir, a letra completa de "Depois do Prazer" e ouça a interpretação melodramática de Alexandre Pires:
Depois do Prazer (Chico Roque e Sérgio Caetano):
Tô fazendo amor com outra pessoa
Mas meu coração, vai ser pra sempre teu
O que o corpo faz, a alma perdoa
Tanta solidão, quase me enlouqueceu
Vou falar que é amor, vou jurar que é paixão
E dizer o que eu sinto com todo carinho
Pensando em você
Vou fazer o que for e com toda emoção
A verdade é que eu minto que eu vivo sozinho
Não sei te esquecer
E depois acabou, ilusão que eu criei
Emoção foi embora e a gente só pede
Pro tempo correr
Já não sei quem amou que será que eu falei
Dá pra ver nessa hora que o amor só se mede
Depois do prazer
Fica dentro do meu peito
Sempre uma saudade
Só pensando no teu jeito
Eu amo de verdade
E quando o desejo vem
É teu nome que eu chamo
Posso até gostar de alguém
Mas é você que eu amo
O álbum de 1997 tem pouco mais de 1 hora de duração e 15 faixas. Além de "Mineirinho" e "Depois do Prazer", vale a pena ouvir "Tá por Fora", "Quando é Amor", "Tem Tudo a Ver", "Artilheiro do Amor" e "Cai na Real", respectivamente a segunda, quarta, oitava, nona e décima terceira músicas do LP.
Alexandre Pires saiu do "Só Pra Contrariar", em 2002, para seguir carreira solo. Em 2013, ele retornou para a gravação de um CD comemorativo aos 25 anos do grupo. Ao todo, o "Só Pra Contrariar" lançou 14 discos e vendeu aproximadamente 15 milhões de unidades.
Viu como falar e ouvir pagode não tira pedaço de ninguém? Deu até para relembrar canções antigas e se divertir com as letras ousadas de algumas músicas da década de 1990. Portanto, nunca mais fuja de alguém que diz ouvir pagode. Isso pode magoar muitos coraçõezinhos por aí...
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