Em 1937, Sílvio Caldas já era um cantor famoso no cenário nacional. Seu primeiro sucesso, o samba "Faceira", de Ari Barroso, havia sido gravado em 1931. Nos seis anos seguintes, vieram outras músicas ainda mais marcantes: "Lenço no Pescoço" (1933), "Segura Esta Mulher" (1933), "Mimi" (1933), "Boneca" (1934), "Inquietação" (1934), "Serenata" (1934), "O Telefone do Amor" (1934) e "Minha Palhoça" (1935). A inconfundível voz de Sílvio Caldas dava grande dramaticidade às letras de amores perdidos e idílicos, tornando-as inesquecíveis.
Por isso, o jornalista e poeta Orestes Barbosa ficou surpreso com um pedido inusitado feito pelo amigo cantor. Sílvio queria musicar uma criação poética feita por Orestes alguns anos antes. "Foste a Sonoridade que Acabou" era uma poesia em decassílabos que narrava a tristeza de um eu lírico masculino que havia perdido a mulher amada. Enquanto ela permaneceu ao seu lado, a vida pobre no Morro do Salgueiro tinha ganhado a dimensão de uma festa alegria e luxuosa. Veja um dos trechos mais famosos deste poema: "A porta do barraco era sem trinco/ Mas a lua, furando o nosso zinco/ Salpicava de estrelas nosso chão/ Tu pisavas nos astros, distraída/ Sem saber que a ventura desta vida/ É a cabrocha, o luar e o violão".
Sílvio Caldas ficou apaixonado por aquela letra ao mesmo tempo triste e com uma beleza poética profunda. Ele queria por que queria vê-la transformada em uma canção. Orestes, receoso do resultado, negou a princípio o pedido do amigo. Sílvio não desistiu da sua intenção. Apesar da negativa do autor, ele musicou o poema mesmo assim. Uma vez pronta a música, o cantor mostrou o trabalho para outro poeta, Guilherme de Almeida. Almeida, encantado com a canção, sugeriu que seu nome fosse "Chão de Estrelas" ao invés de "Foste a Sonoridade que Acabou". Ou seja, além de aprovar a nova música de Caldas, ele a rebatizava com um nome mais simples e comercial.
Manuel Bandeira foi outro poeta célebre na época que ficou maravilhado com a transformação do poema em uma seresta. Vendo todo mundo boquiaberto com sua letra, não coube outra coisa a Orestes Barbosa fazer do que autorizar a gravação daquela obra-prima.
Sílvio Caldas, então com 29 anos, gravou, em 1937, o que seria sua mais famosa canção. "Chão de Estrelas", contudo, não estourou rapidamente nas rádios do país. A música só se tornaria um grande sucesso em 1950. Foi nesse ano quando Sílvio, já um quarentão e considerado um dos melhores cantores do Brasil, regravou-a. A nova versão é idêntica à primeira.
Veja, a seguir, a letra dessa obra-prima da nossa música. Repare na estrutura fixa do poema (métricas e rimas). Logo depois, há um vídeo com uma interpretação de Sílvio Caldas. Nela, o cantor, já no final da carreira, explica rapidamente um pouco da origem da canção. Mesmo já idoso, a voz de Caldas se mantém sublime. Vale a pena conferir:
"Chão de Estrelas" (Sílvio Caldas e Orestes Barbosa - 1937):
Minha vida era um palco iluminado
Eu vivia vestido de dourado
Palhaço das perdidas ilusões
Cheio dos guizos falsos da alegria
Andei cantando a minha fantasia
Entre as palmas febris dos corações
Meu barracão no morro do Salgueiro
Tinha o cantar alegre de um viveiro
Foste a sonoridade que acabou
E hoje, quando do sol, a claridade
Forra o meu barracão, sinto saudade
Da mulher pomba-rola que voou
Nossas roupas comuns dependuradas
Na corda, qual bandeiras agitadas
Pareciam um estranho festival
Festa dos nossos trapos coloridos
A mostrar que nos morros mal vestidos
É sempre feriado nacional
A porta do barraco era sem trinco
Mas a lua, furando o nosso zinco
Salpicava de estrelas nosso chão
Tu pisavas nos astros, distraída
Sem saber que a ventura desta vida
É a cabrocha, o luar e o violão
Outro intérprete famoso desta canção foi Nelson Gonçalves. Veja a versão com o "Rei da Rádio":
A transformação do poema "Foste a Sonoridade que Acabou" na música "Chão de Estrelas" estreitou a amizade entre Sílvio Caldas e Orestes Barbosa. A dupla formou uma sólida e longa parceria musical, produzindo várias serestas, um estilo muito popular no Brasil na metade do século XX. "Quase que Eu Disse", "Suburbana", "Torturante Ironia" e "Arranha-céu" são exemplos do que houve de melhor nesta parceria. Apesar de Orestes Barbosa também dividir composições com nomes consagrados da música nacional como Noel Rosa, Cartola e Wilson Batista, Sílvio Caldas foi seu principal parceiro.
O que torna "Chão de Estrelas" tão especial, como não poderia ser diferente, é sua letra impecavelmente construída. Tudo começa com uma surpreendente descoberta. O eu lírico que descrevia sua vida como "um palco iluminado" e que dizia viver "vestido de dourado" era na verdade um pobre que morava em um barraco na favela. E a alegria de sua vida era fruto da paixão pela sua amada mulher. O amor fazia com que aquele simples pedaço de terra parecesse, todas as noites, uma animada festa. "Nossas roupas comuns dependuradas/ Na corda, qual bandeiras agitadas/ Pareciam um estranho festival/ Festa dos nossos trapos coloridos/ A mostrar que nos morros mal vestidos/ É sempre feriado nacional".
No final da canção, vem a parte mais bonita e lírica. A ausência de teto no barraco fazia com que as luzes das estrelas entrassem na humilde casa durante as noites, sendo refletidas no chão. Com isso, a mulher amada "pisavas nos astros, distraída/ Sem saber que a ventura desta vida/ É a cabrocha, o luar e o violão". Esta imagem do casal feliz, em uma casinha simples e sem teto, "pisando nas estrelas" é de uma força dramática sem precedentes. Esta é uma das cenas mais poéticas da música nacional.
Desde a primeira vez que ouvi esta canção, me tornei automaticamente fã incondicional de Sílvio Caldas e de Orestes Barbosa. Se esta não for a minha música favorita (acredito que seja), ela está entre as três mais belas que conheci em minha vida. Em minha opinião, ela é simplesmente perfeita. Não há o que pôr nem o que retirar nela. Ela é sublime!
Em 2017, "Chão de Estrelas" completa 80 anos de vida como música. Parabéns aos responsáveis pela criação desta obra-prima da nossa canção.
Que tal este post e o conteúdo do Blog Bonas Histórias? Seja o(a) primeiro(a) a deixar um comentário aqui. Para acessar os demais posts sobre o universo musical, clique em Músicas. E aproveite para curtir a página do Bonas Histórias no Facebook.