Li, em minha última viagem de Minas Gerais a São Paulo de 2017, o romance "A Distância Entre Nós" (Nova Fronteira), da escritora indiana Thrity Umrigar. Nascida em Mumbai, em 1961, Umrigar vive desde a década de 1980 nos Estados Unidos. Após trabalhar como jornalista em importantes periódicos norte-americanos, ela passou, nos últimos anos, a se dedicar ao magistério (é professora de Literatura), à crítica literária e, principalmente, à criação de suas próprias histórias. Entre suas obras mais relevantes estão "A Doçura do Mundo" (Globo), "A Hora da História" (Globo), "Um Lugar para Todos" (Nova Fronteira) e "O Tamanho do Céu" (Nova Fronteira). Seu grande sucesso é "A Distância Entre Nós". Foi esse livro que catapultou a carreira da indiana à lista dos autores mais vendidos. Graças a essa obra, ela é atualmente best-seller mundial.
Apesar de Thrity Umrigar morar nos Estados Unidos há muitos anos, seus romances se passam quase que exclusivamente na Índia contemporânea. Os enredos de suas obras giram em torno dos dramas das pessoas comuns. Neles, os indianos sofrem por viver em um país machista e patriarcal. O abismo social é gritante, há elevado índice de pobreza e as taxas de violência e de corrupção são absurdas. Isso tudo embalado por uma cultura conservadora, com rígidas tradições milenares, e por uma religião que perpetua a segregação e a imobilidade social (as castas são a base do hinduísmo, a principal religião do país).
O que temos, portanto, é o cenário propício para o desenvolvimento de grandes dramalhões. O sofrimento e a tragédia temperam a vida de quase todas as personagens de Umrigar. A autora confere uma especial atenção às mulheres. Geralmente, são elas as protagonistas das suas tramas, e por consequência, as maiores vítimas da crueldade e das injustiças da sociedade do país asiático.
"A Distância Entre Nós" é, talvez, o exemplar mais fidedigno das características literárias de Thrity Umrigar. Nesse livro, acompanhamos a vida de duas mulheres indianas: Bhima e Sera Dubash. Bhima é uma senhora idosa que mora em uma favela de Bombaim. Sendo pobre, analfabeta e de uma casta inferior, seu dia a dia é recheado de sacrifícios, limitações e trabalho pesado. Seu marido e seu filho a abandonaram. Com a morte da filha e do genro, ela cuida sozinha da neta adolescente, Maya, que está grávida. Maya era a única pessoa da família a cursar faculdade. Entretanto, a moça precisou abandonar o curso devido à gravidez precoce e indesejada. Na visão da avó, a neta jogou fora a única chance que tinha para "ser alguém na vida". Bhima trabalha, há muitos anos, como empregada doméstica na casa de Sera Dubash, uma viúva rica e de uma casta superior. Era a patroa da avó quem pagava a faculdade de Maya.
Apesar da riqueza material e da vida confortável, Sera possui motivos para sentir desgosto pelo seu destino. O casamento infeliz, a violência doméstica, a solidão após a viuvez, a péssima relação com a família do marido morto, o ódio pela sogra e o distanciamento da sua própria família fizeram da abastada senhora uma pessoa triste e melancólica. Sua única alegria é ver o feliz casamento de sua filha, Dinaz. Dinaz é casada com Viraf, um executivo bem-sucedido que possui um espírito alegre, bondoso e extrovertido. O casal mora na casa de Sera e aguarda a chegada do primeiro filho. Assim, depois de presenciar os sérios problemas matrimoniais que a filha e o genro passaram, Sera se realiza com a felicidade dos jovens que moram em sua casa. A breve chegada do netinho também é motivo para grande expectativa e de felicidade para a viúva.
Bhima e Sera são muito próximas uma da outra, chegando a se considerar amigas ou integrantes da mesma família. Elas passam o dia inteiro juntas na casa de Sera e compartilham suas agonias, preocupações e intimidades familiares. Essa relação próxima e amigável entre patroa e empregada é motivo para críticas por parte dos amigos, familiares e vizinhos da família Dubash. Na visão geral dos conhecidos, Sera confere liberdade de mais à doméstica. Todos aconselham a rica senhora a não ser tão benevolente com a empregada, porque logo mais ela irá se arrepender destes atos altruístas. Os integrantes das castas inferiores são, na visão cultural da elite social, indivíduos gananciosos, preguiçosos, pouco confiáveis e de má índole. Para eles trabalharem bem, é preciso ser exigente, impositivo e cruel, características essas que Sera não possui. Ela é passional, compreensível e muito amiga da sua doméstica.
Ao mesmo tempo em que adora Bhima, a viúva não consegue ver sua funcionária como um ser humano igual a ela ou mesmo como uma pessoa de verdade. Bhima não pode usar os talheres e os copos da residência, por exemplo. Também não pode se sentar no sofá ou nas cadeiras da casa. A cena em que a empregada, de cócoras no chão e usando uma velha caneca de alumínio, toma chá com a patroa, que, por sua vez, usa uma xícara de porcelana e está sentada à mesa na sala de estar, é emblemática. A dona da casa priva sua funcionária de certos hábitos por sentir nojo dela. Apesar de considerar Bhima uma pessoa limpa, Sera sabe que os indivíduos das castas inferiores vivem em favelas, locais onde a imundice e os péssimos hábitos de higiene prevalecem. Por isso, Bhima é proibida de muitas coisas no lar onde trabalha (sendo vista muitas vezes como um animal doméstico).
Embora exista uma amizade sincera, genuína e de longa data entre Bhima e Sera Dubash que as aproxima, é inegável a presença também de um muro invisível entre elas que separa suas vidas em mundos totalmente distintos. Assim, elas estão próximas fisicamente (passam a maior parte do dia no interior da mesma casa), mas suas almas estão segregadas por realidades opostas. Essa é a distância que o título do livro faz menção. O único ponto em comum entre as duas mulheres é o sofrimento diário que ambas passam. Cada uma tem o que se lamentar da vida, do casamento, do destino e da família.
À medida que a história de "A Distância Entre Nós" vai se desenrolando, Bhima e Sera precisarão enfrentar a situação mais difícil de suas vidas. A decisão que cada uma tomará para resolver seus próprios problemas irá afetar diretamente a família da outra. Nesse momento, será preciso saber como elas irão se comportar. O que será mais forte: a amizade, a admiração e o companheirismo que as une ou as diferenças e as barreiras sociais e religiosas que as separam?
"A Distância Entre Nós" é um belo livro. Publicado pela primeira vez em 2001, ele tem 331 páginas e está dividido em duas partes (chamadas de Livro 1 e Livro 2). A divisão é motivada pelo projeto editorial original da obra, que fazia menção a dois livros ao invés de um só. A edição brasileira integrou as duas publicações em uma só.
O que chama a atenção, logo de cara, nessa história é a capacidade narrativa de Thrity Umrigar. A autora indiana consegue instigar o leitor, em todo momento, para cada aspecto novo da história. Às vezes, é difícil parar a leitura. A impressão é que Umrigar vai apresentando a trama à conta gotas para não nos assustar. Afinal, a quantidade de episódios tristes e trágicos é inesgotável. Quando se pensa que nada de pior pode acontecer, lá está a escritora para superar nossas expectativas. Apesar de muito triste, esse não é do tipo de livro que faz o leitor chorar. Ele fica, é verdade, chocado com tantas tragédias, mas não derruba muitas lágrimas (pelo menos isso não aconteceu comigo).
Outro componente positivo da obra é a boa construção das personagens. Cada personagem, das principais às secundárias, é descrita com realismo e imparcialidade. O retrato é nu e cru, por vezes brutal. A autora não se preocupa em florear a realidade nem em esconder a sujeira para debaixo do tapete. Tudo é escancarado aos olhos do leitor. É impossível não se emocionar com as vidas e as histórias narradas nesse livro. A sensação é que há muitas tramas dentro do enredo principal.
Outra coisa que gostei bastante foi da ambientação ou da caracterização do lugar onde a história se passa. Não há dúvidas que estamos na Índia. O panorama da sociedade indiana e a realidade da cultura hindu são pontos marcantes que "enchem os olhos" do leitor estrangeiro. Umrigar consegue nos transportar para dentro da vida de seu país natal, apresentando seus hábitos, suas crenças, seus valores e suas tradições. Estão ali Mahatma Gandhi, a guerra com o Paquistão, o colonialismo inglês, o preconceito contra os muçulmanos, a paixão pelo críquete, o preconceito social estabelecido pelo sistema de castas, os hábitos alimentares, as grandes empresas indianas, entre dezenas de outras referências culturais.
O único ponto negativo é a obviedade nas respostas dos maiores mistérios da história: quem é o pai do filho de Maya, a neta adolescente de Bhima?!; e por que a jovem, que estava na faculdade, "pecou" e "jogou seu futuro no lixo" com a gravidez indesejada? Nem é preciso chegar à metade do livro para elucidar as questões chaves do romance. A falta de opções faz o leitor concentrar suas suspeitas sobre a paternidade em apenas uma pessoa, enquanto a violência pela qual as mulheres passam o tempo inteiro oferece um indicativo preciso para a outra resposta.
Mesmo não surpreendendo o leitor em relação aos pontos principais da trama (as surpresas ocorrem em outras esferas), "A Distância Entre Nós" é um ótimo livro. Seus personagens são recheados de dualidades e contradições, o que torna tudo mais complexo, imprevisível e saboroso.
A temática dos livros de Umrigar e o estilo literário da indiana se parecem muito com os de seu colega asiático Khaled Hosseini. A única diferença é que ela retrata os perrengues dos indianos, enquanto ele foca nos infortúnios afegãos.
Quem quiser saber mais sobre a vida desta que é uma das principais escritoras contemporâneas da Índia pode ler "A Primeira Luz da Manhã", sua autobiografia. No livro autobiográfico, Thrity Umrigar narra os episódios mais marcantes da sua trajetória em seu país natal até sua migração para os Estados Unidos. Curiosamente, até nessa questão é possível encontrar pontos em comum com a trajetória de Khaled Hosseini. Ninguém me tira da cabeça que Umrigar é a versão feminina e indiana do autor de "O Caçador de Pipas" (Nova Fronteira).
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