Michael Connelly é atualmente um dos escritores norte-americanos mais vendidos nas livrarias dos quatro cantos do planeta. Alguns dos seus best-sellers já foram adaptados para o cinema, transformando-se também em blockbusters. Especializado em produzir séries policiais, esse autor de 61 anos já vendeu mais de 60 milhões de cópias e foi traduzido para mais de 40 idiomas. Ou seja, conhecer as obras de Connelly é compreender uma faceta bem-sucedida da literatura comercial dos Estados Unidos.
A mais famosa e longínqua série de Michael Connelly é protagonizada por Harry Bosch, ex-soldado norte-americano no Vietnã que trabalha como investigador do Departamento de Polícia de Los Angeles (DPLA). Com um jeitão truculento, adepto de uma boa malandragem e pouco afeito aos procedimentos da instituição onde trabalha, Bosch é o tipo de policial que gosta de fazer justiça com as próprias mãos.
Até agora foram publicados 20 romances com o detetive de Los Angeles, além de vários contos. A primeira narrativa longa dessa emblemática personagem de Connelly foi "O Eco Negro" (Gótica), de 1992. A obra rendeu ao escritor nascido na Pensilvânia o Mystery Writers of America Edgar Award de 1993 como o melhor romance de estreia do ano anterior. O último livro da coleção foi "Two Kinds of Truth" (Sem tradução para o português), lançado neste ano nos Estados Unidos. Em 2018 há a previsão da publicação na América do Norte de "Dark Sacred Night" (Também sem tradução para o português), o vigésimo primeiro romance da saga.
No Brasil, um dos últimos livros da série "Harry Bosch" traduzido para o português e lançado por aqui foi "A Caixa-Preta" (Suma das Letras). Publicado em 2012 nos Estados Unidos, esse romance é o décimo sexto episódio da saga do famoso detetive de Los Angeles. Foi esta obra de Michael Connelly que li neste finalzinho de ano e que gostaria de comentar com vocês agora no Blog Bonas Histórias.
Em "A Caixa-Preta", temos um Harry Bosch próximo da aposentadoria (algo que só ocorrerá de fato dois romances para frente, em "The Crossing"), mas ainda muito atuante na Unidade de Abertos/Não Resolvidos, setor da Polícia de Los Angeles responsável pelos casos do Departamento de Crimes e Homicídios ainda não solucionados. Já veterano na profissão e morando com a filha, Maddie, o detetive precisa conciliar as preocupações do trabalho com os cuidados da filha adolescente.
Em casa, a vida do protagonista não parece fácil. Maddie, agora uma jovem de dezesseis anos, aspira ser policial como o pai. Essa escolha parece provocar reações diferentes em Harry. Ao mesmo tempo em que sente orgulho da aptidão da filha pela profissão almejada, a atividade policial também causa preocupações sérias para o pai que conhece muito bem os bastidores de um departamento de polícia. Para complicar as coisas, Maddie é alvo de bullying na escola e o detetive não pode fazer nada para resolver essa questão. Para completar, ele deseja costurar a amizade da garota com sua nova namorada, Hannah Stone.
No trabalho, o detetive Bosch tem dois desafios. O primeiro é elucidar um enigmático caso aberto desde 1992. Naquele ano, Los Angeles viveu a semana mais violenta da sua história. A onda de protestos e tumultos que se espalhou pelas ruas da cidade foi motivada por uma disputa de origem racial. Os negros ficaram revoltados com a decisão judicial de liberar os policiais brancos que mataram injustamente um homem negro. Esse evento real levou a anarquia para as ruas.
Entre as várias vítimas fatais daquela semana há a misteriosa morte de uma fotojornalista dinamarquesa. Anneke Jespersen era uma freelancer de uma revista europeia que cobria conflitos armados pelo mundo. O corpo da moça foi encontrado pela polícia em um beco de um dos bairros mais barra pesados de LA com um tiro na cabeça. Na época, o homicídio foi relacionado às turbulências daquela semana difícil.
Em 2012, ou seja, vinte anos depois da morte da jornalista, Harry Bosch resolve investigar com mais afinco o caso de Anneke Jespersen, apelidada por ele de Branca de Neve (a moça era muito branquinha). Estava aberto um baú recheado de vespeiros.
A celebração de duas décadas do conflito que marcou a cidade para sempre, contudo, acabou gerando grande comoção pública por tudo o que era relacionado àquela época. A imprensa noticiou os fatos históricos de 1992 com estardalhaço. Exatamente por isso, Cliff O'Toole, o novo chefe da Divisão de Roubos e Homicídios da DPLA, que inclui a Unidade de Abertos/Não Resolvidos, decidiu que o detetive Bosch não deveria se aprofundar nessa investigação. Segundo o sargento, Harry tinha outros casos mais importantes para trabalhar.
Por trás da decisão de O'Toole estava uma questão política. Se a polícia elucidasse depois de tanto tempo um homicídio de uma pessoa branca de 1992, aquilo poderia ser interpretado como uma postura racial da instituição. Afinal, muitos crimes cometidos contra negros naquele ano continuavam indefinidos. Se a imprensa explorasse o assunto com força, uma nova onda de protestos e confusões poderia se espalhar pela cidade. Indiferente ao fato e às consequências, Harry Bosch decide prosseguir na investigação. Para ele, há um assassino solto e isso, por si só, já justificativa seu trabalho.
Dessa maneira, Cliff O'Toole e Harry Bosch tornam-se inimigos. Justamente quando está trabalhando em um dos casos mais complicados de sua carreira, o detetive Bosch tem o próprio chefe atrapalhando suas atividades. O pior é que o avanço da investigação levará o policial para eventos que envolvem gente poderosa e que remontam à Primeira Guerra do Iraque. Tudo muito sinistro...
"A Caixa-Preta" é um bom thriller policial. Harry Bosch é uma ótima personagem que Michael Connelly sabe trabalhar muito bem. Não à toa, o tira foi largamente utilizado em duas dezenas de romances do escritor. O estilo de policial durão das antigas que gosta de música lembra um pouco os protagonistas de Rubem Fonseca (principalmente o comissário Aberto Mattos, de "Agosto"). Contraditório e carismático, Bosch faz seu trabalho bem do seu jeito particular, não sendo possível julgá-lo nem enquadrá-lo nas regras sociais.
A dedicação quase que exclusiva do detetive ao seu trabalho também parece cobrar um alto preço. Essa conta começa a ser paga por Harry em sua vida pessoal. A filha fica muitas vezes sozinha em casa. Quando eles decidem partilhar algo, aí as brigas acontecem. A namorada do policial é quase uma estranha para ele. No departamento de polícia, ninguém sabe qual é o dia em que Harry faz aniversário, escancarando a pouca amizade do policial com os colegas. Este é Harry Bosch, pessoal!
Contudo, a melhor mistura de "A Caixa-Preta" não se dá entre a vida pessoal complicada do detetive e seu trabalho perigoso. O ponto alto da trama é a relação conflituosa de Harry com seu novo chefe. Cliff O'Toole é talvez o grande vilão da história. O chefe de polícia que se preocupa apenas com a burocracia, com os números brutos do seu departamento, com as regras estipuladas nos manuais, e principalmente, com a política, pode ser o grande inimigo dos policiais que estão na linha de frente das investigações de homicídios.
Gostei também da contextualização histórica do romance. Michael Connelly utiliza-se de fatos reais (protestos de maio de 1992 na cidade de Los Angeles e Primeira Guerra do Iraque) para construir uma trama densa e com algumas reviravoltas interessantes.
"A Caixa-Preta" tem pouco mais de 300 páginas. Como sua leitura é rápida, é possível ler o livro em duas ou três noites. Foi o que fiz nesta semana. Comecei a obra na segunda-feira à noite e na quarta à noite já tinha concluído (li apenas no período noturno). Com o bom conflito e a linguagem simples do romance, o leitor fica preso nessa história, devorando suas páginas sem qualquer complicação.
Como qualquer história feita sob uma moldura narrativa, "A Caixa-Preta" permite aos leitores compreenderem sua trama sem que seja necessária a leitura das partes anteriores da série. Contudo, muitos aspectos do romance não serão usufruídos em sua totalidade por quem estiver lendo esse livro como o primeiro do detetive Bosch. Por exemplo, quem é a mãe de Maddie (Eleanor Wish)? Onde ela está agora (Eleanor foi assassinada em Macau em um dos romances da saga)? Por que filha e pai tem um relacionamento ainda frio (A garota foi morar com Harry há pouco tempo; Ela morava com a mãe no exterior)? Por que Bosch e seu parceiro possuem uma relação ainda tímida (Eles passaram a trabalhar juntos recentemente, conforme mostrado em "A Queda", o romance anterior da coleção)? Note que essas respostas são apresentadas apenas em outros títulos da série de Harry Bosch.
De ponto negativo, "A Caixa-Preta" sofre, talvez, do mal que acomete a maioria dos romances policiais: a falta de verossimilhança da história como um todo. A investigação avança quase que exclusivamente por sorte ou por uma série de coincidências que na vida real são difíceis de acreditar. Dúvida? Então o que você me diz de um criminoso que telefona para a delegacia para saber como está o andamento da investigação de homicídio que ele cometeu e ainda não foi citado por nenhum dos envolvidos? Parece verossímil isso para você? Para mim beira o absurdo. E o que você me diz de um caso que fica parado na gaveta da polícia por duas décadas e, de repente, se torna prioridade para um policial da corporação sem qualquer explicação da noite para o dia? Para mim, beira o improvável. Tirando esses detalhes que são típicos da maioria dos romances policiais, o livro é bem interessante.
Reparem nas boas cenas de ação das últimas 80 páginas. Quando o bicho pega fogo nas histórias de Michael Connelly é impossível o leitor desgrudar do livro e interromper sua leitura.
"A Caixa-Preta" está longe de ser o melhor livro da série de Harry Bosch. Porém, ele também não está na categoria dos piores. É uma boa obra de Michael Connelly e um bom romance policial. Na certa, os fãs do detetive Bosch vão apreciar mais esse título do que aqueles leitores que ainda não conhecem nada desta saga.
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