Em 1994, Patricia Highsmith já era uma escritora consagrada. Tida como uma das melhores autoras policiais da segunda metade do século XX, a norte-americana, então com 73 anos, colecionava vários prêmios internacionais, uma indicação ao Nobel de Literatura e uma polpuda conta bancária. Por isso, causou estranheza a recusa da Knopf, sua editora nos Estados Unidos, em publicar “Small G” (Mandarim), seu último romance. “Como assim não editar uma obra de uma das escritoras mais conhecidas do mundo?”, indagaram-se os profissionais do mercado editorial, o público leitor e, creio eu, até mesmo a própria autora.
Devido ao impasse na América do Norte, “Small G” foi lançado primeiramente na Inglaterra, em março de 1995. O livro chegou às livrarias europeias um mês após o falecimento de Patricia Highsmith. A obra é a única narrativa longa desta escritora lançada postumamente. Nos últimos dez anos de vida, Highsmith só havia publicado dois romances: “Ripley Debaixo D´Água” (Companhia das Letras), em 1991, a última história da série “The Ripliad”, e “Found in the Street”, de 1986, livro ainda não editado em língua portuguesa.
Para justificar sua recusa em lançar a obra, a Knopf, na época, alegou que “Small G” era um livro com uma trama confusa e que fugia um pouco da proposta da literatura de Highsmith. Em suma, a editora norte-americana dizia que não via potencial mercadológico no novo romance. Para um bom entendedor poucas palavras bastam, já dizia o velho ditado. O que eles quiseram falar eufemisticamente foi que a obra era ruim.
Curioso para saber a verdadeira qualidade deste livro, li nesta semana “Small G”. Não podia terminar o Desafio Literário de outubro sem conhecer um romance questionável de Patricia Highsmith. Será que a norte-americana foi injustiçada no final de sua carreira pelos editores ou realmente havia produzido uma narrativa muito aquém de sua excelência literária? Após três noites de leitura, cheguei à conclusão que a segunda hipótese era a mais correta.
O enredo de “Small G” se passa essencialmente em Aussersihl, um bairro de Zurique. O livro começa com um assassinato. O jovem Peter Ritter, um gay de vinte anos de idade, é assassinado em uma rua do centro da capital suíça ao sair de um cinema à noite. A polícia não consegue identificar os autores do crime. Para as autoridades de segurança pública, o rapaz foi morto após a tentativa de um assalto comum.
Contudo, a morte de Petey vira assunto no bairro onde o rapaz morava. Muita gente acredita que ele foi morto na cama de seu namorado, Rickie Markwelder. Rickie tem 46 anos, é design gráfico, possui um estúdio publicitário em Aussersihl e cuida de Lulu, um esperto cachorrinho com habilidades circenses. Segundo a versão passada aos vizinhos por Renate Hagnauer, uma velha fofoqueira que odeia os gays, Peter foi morto quando transava com um garoto de programa na residência de Rickie. O rapaz assassinado aproveitava que o namorado estava trabalhando fora de casa para transar com alguém de sua idade. Aí, um bandido entrou na casa e pum, matou o garoto.
Rickie Markwelder, o protagonista do romance, fica muito abalado com a morte do namorado mais jovem, não dando ouvidos às fofocas maldosas que correm sobre o assassinato de Peter. Rickie é aidético e frequenta o bar-restaurante Jakob's, apelidado de Small G por ter como cliente majoritário o público LGBT. O publicitário mantém sua rotina, porém não consegue se relacionar amorosamente com mais ninguém. Ele realmente amava Peter Ritter.
Outra pessoa que sente muito a morte do jovem é Luisa Zimmermann, vizinha de Rickie e Peter. A moça de dezessete anos é estagiária de Renate Hagnauer, a velha fofoqueira do bairro, e era apaixonada por Peter. Luisa mora e trabalha com Renate há um ano. Depois de ter fugido da casa dos pais ainda adolescente (seu pai a assediava e tentara estuprá-la), Luisa foi praticamente adotada por Renate, sendo obrigada a viver sob o autoritarismo da velha. Para os vizinhos, Renate, que tem um problema físico em um dos pés e é extremamente antipática, é apaixonada platonicamente pela jovem funcionária. Por isso, não permite que a moça tenha qualquer diversão ou vida social. E sabendo da paixão da jovem por Peter, resolveu criar versões mentirosas sobre a morte do namorado de Rickie. Renate queria mostrar para sua filha adotiva/estagiária o quanto os gays eram pessoas pouco confiáveis e moralmente condenáveis.
Após um longo tempo sozinho, Rickie conhece, em um final de semana, Teddie Stevenson, um rapaz de fora do bairro que estava frequentando por acaso o Jakob's. Teddie tem vinte anos e sonha em ser jornalista. O publicitário se apaixona à primeira vista. Entretanto, Teddie não é gay. O rapaz se apaixona por Luisa, que também acaba ficando encantada com a beleza do jovem. A paixão em comum por Peter aproxima Luisa e Rickie. Os dois se tornam grandes amigos, para desespero de Renate. Rickie e Dorrie Wyss, uma amiga lésbica de Rick que frequenta regularmente o Small G, irão tentar ajudar Luisa a fugir da vigilância cerrada de Renate e a se encontrar com Teddie.
Inicia-se, portanto, um intrincado jogo amoroso. Rickie gosta de Teddie, que ama Luisa, que é a paixão da vida de Renate. Luisa também gosta de Peter e será ajudada por Dorrie, que rapidamente se apaixona por Luisa. É ou não é uma narrativa cômica, hein?! A impressão é que Patricia Highsmith foi muito mais criativa (e ousada) do que Carlos Drummond de Andrade ao criar sua “Quadrilha” - aquele famoso poema em que João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que amava Joaquim...
“Small G” é um romance grande, com 371 páginas. Sua leitura é fácil, o que permitiu que eu concluísse a publicação em apenas três noites. Os principais problemas deste romance são: demora no aparecimento do conflito central, longas descrições de cenas banais, o desfecho muito pobre, a falta de ação e de suspense e o derretimento dos aspectos mais fortes da trama. Ou seja, o livro é muito fraquinho. É difícil acreditar que se trate de uma obra produzida por Patricia Highsmith.
Muitos críticos literários, na época do lançamento de “Small G”, sentenciaram que este livro parecia inacabado. A impressão é que publicaram a primeira versão desenvolvida pela autora, o esboço inicial de um romance que precisava passar por várias depurações. No papel de editor, se eu recebesse algo assim, diria para seu(sua) escritor(a) que ele(a) tinha um ótimo ponto de partida em mãos, que precisaria ser melhorado ao longo dos meses ou, quem sabe, dos anos seguintes. Talvez Patricia Highsmith soubesse que não tinha esse tempo todo. Por isso, a vontade de publicar o romance desta forma mesmo.
Os conflitos principais de “Small G” (a sequência interminável de paixões não correspondidas entre as personagens e o conluio de Rickie e seus amigos para unir Teddie e Luisa) demoram mais de 100 páginas para se evidenciar. Para o meu gosto, é muito tempo para uma história engrenar. Enquanto isso não acontece, o leitor fica se perguntando qual é a proposta central desta narrativa. O que parecia ser a teia de um elaborado romance policial (quem assassinou Peter Ritter?), acaba se tornando um livro romântico (quem vai ficar com Luisa Zimmermann?). Convenhamos que é uma guinada e tanto para um romance. Curiosamente, o crime visto no primeiro capítulo não é resolvido e, pior ainda, é esquecido pela autora no decorrer da trama. As personagens passam a investigar uma agressão sofrida por Teddie, que também acabaria esquecida mais tarde. Fica difícil classificar esta obra como um thriller policial. Para mim, ela está mais para um drama romântico homossexual. Ou seja, este livro é mais parecido com “Carol” (L&PM Pocket) do que com “O Talentoso Ripley” (Companhia de Bolso) ou “Pacto Sinistro” (Nova Fronteira), os mais famosos romances de Patricia Highsmith. Contudo, “Small G” não chega aos pés, em relação à qualidade do drama e à profundidade da intriga narrativa, de “Carol”, este sim um bom romance.
Outro ponto negativo é a coleção interminável de cenas banais que inundam esta história. O leitor acompanha as personagens em momentos corriqueiros de suas rotinas, algo que torna a trama extremamente pobre. Muitos encontros ocorridos no Jakob's são supérfluos. Apesar de ser um ótimo local para o desenvolvimento de um romance, o bar-restaurante apresenta efetivamente poucos momentos de ação e de intriga. A sensação é que em “Small G”, Patricia Highsmith optou pela crônica de costumes da comunidade gay da Suíça, abrindo mão da narrativa policial. A escolha mais correta, em um primeiro momento, seria unir os dois elementos e não em optar por um deles.
Pior mesmo é o desfecho da obra. Renate Hagnauer é, desde o início, a principal vilã da trama. E a felicidade de todas as personagens passa necessariamente por uma ação que impeça a velha de continuar atrapalhando a vida de Luisa. “Como isso será feito?”, perguntam-se os leitores. A escolha de Patricia Highsmith me pareceu de uma infantilidade absurda. O plano de Rickie e Dorrie para salvar a amiga das garras de Renate já era bobinho. E as consequências do ato da dupla se tornaram ainda mais simples. Fazia um bom tempo que não via um final de romance tão besta quanto este. E, para piorar, o livro ainda demora mais 50 páginas para ser encerrado após o desencadeamento do clímax.
E, por fim, outro ponto que não gostei foi do derretimento de aspectos fortes da trama. Por exemplo, “O que será que acontecerá com Rickie Markwelder, um soropositivo?”, pensam os leitores mais curiosos. Apesar de saber que a opção de Highsmith para seu protagonista foi baseada em um episódio real que acontecera com um amigo gay da autora, o desfecho de Rickie me pareceu totalmente inverossímil. Já dizia Luigi Pirandello em seu livro "O Falecido Mattia Pascal" (Abril), de 1904: “Os absurdos da vida não precisam parecer verossímeis porque são verdadeiros. Ao contrário dos da arte que, para parecerem verdadeiros, precisam ser verossímeis. E sendo verossímeis, deixam de ser absurdos”. A escritora norte-americana parece não ter dado ouvidos aos conselhos do antigo italiano.
Devo reconhecer que “Small G” também tem alguns pontos positivos. As escolhas da escritora por retratar a comunidade gay e os preconceitos da sociedade mais conservadora foram excelentes. A grande quantidade de personagens do romance também não me incomodou muito (apesar de muitos deles serem figuras estereotipadas). A linguagem leve e a narrativa em tom de confidência deixaram o romance gostoso de ler. A liberdade sexual das principais personagens também mostra o quanto a obra é atual, mesmo tendo sido escrita há vinte e cinco anos.
Quando colocado na balança, este último romance de Patricia Highsmith acaba pendendo muito mais para o lado negativo. Para se tornar uma obra minimamente aceitável, “Small G” precisava ter passado por algumas revisões narrativas. Na certa, a autora não teve o apoio de nenhum bom editor durante este trabalho. Para um leitor minimamente exigente e conhecedor do trabalho formidável da escritora norte-americana, este último romance de Highsmith é uma grande decepção.
No próximo domingo, dia 28, retorno ao Bonas História para apresentar a análise literária completa de Patricia Highsmith, a autora foco do Desafio Literário deste mês. Até mais!
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