Hoje, o Bonas Histórias irá investigar a literatura infantil de Fernando Sabino. Depois de analisarmos, na semana passada, dois romances adultos deste autor, “O Encontro Marcado” (Record) e “O Grande Mentecapto” (Record), agora vamos tratar, no Desafio Literário, de uma obra que mergulha nas memórias da infância do escritor mineiro. “O Menino no Espelho” (Record) é a primeira publicação infantojuvenil de Sabino. Este livro também é considerado um clássico nacional em seu gênero narrativo. Além de ter ganhado dezenas e dezenas de reimpressões ao longo das décadas (está se aproximando da marca da centésima edição), esta história de Sabino foi adaptada para o cinema recentemente. O filme “O Menino no Espelho” foi dirigido por Guilherme Fiúza Zenha e estreou no circuito nacional em junho de 2014.
Publicado pela primeira vez em 1982, o livro “O Menino no Espelho” se passa no início da década de 1930, em Belo Horizonte. Fernando, o protagonista e narrador da obra, é o Fernando Sabino em sua infância. Com oito anos, o garoto vive as típicas aventuras de uma criança levada, sonhadora e extremamente astuta. As peripécias que a personagem apronta se tornam mais divertidas pois, além do componente de memórias trazido pelo escritor, há também doses elevadas de fantasia trazidas pelo pequeno Fernando. Assim, temos um retrato bonito, poético, mágico e singelo da infância. Em poucas páginas, o leitor já entra no universo infantil do narrador e passa a acompanhar, ao longo dos capítulos, as delícias e os desafios da vida dessa criança.
“O Menino no Espelho” tem pouco mais de 200 páginas. Apesar da grande extensão do livro (o padrão da literatura infantojuvenil é constituído por obras curtas), sua leitura é rápida e fácil. Além da linguagem simples, muitas páginas possuem desenhos, que acabam ocupando muitas vezes toda a página ou boa parte dela. O texto de Sabino é complementado com as ilustrações de Carlos Scliar, famoso desenhista e pintor gaúcho. Por isso, a grande quantidade de páginas.
A obra tem dez capítulos, que também podem ser vistos como contos. Afinal, cada parte do livro possui um conflito próprio. A unidade da obra é construída pela manutenção do narrador (o menino Fernando), do cenário (a cidade de Belo Horizonte), da época retratada (o final dos anos de 1920 e, principalmente, o início da década de 1930), da temática (o mergulho na infância do protagonista) e das personagens (Fernando, sua família, seus animais de estimação, os amigos e vizinhos). Além dos dez capítulos/contos, “O Menino no Espelho” possui um prólogo e um epílogo que conversam entre si e dão um charme especial à narrativa do livro.
No Prólogo, chamado de “O Menino e o Homem”, o pequeno Fernando brinca com as formigas no quintal de casa quando surge, ao seu lado, um homem misterioso de aproximadamente 50 anos. O sujeito conversa e brinca com a criança por um longo tempo. A afinidade dos dois é surpreendente. A impressão que se tem é que eles já se conheciam há anos. Antes de ir embora, o adulto deixa um conselho sobre como o garoto deve fazer para encontrar a felicidade em sua vida.
O primeiro capítulo da obra é “Galinha ao Molho Pardo”, um dos textos mais famosos de Sabino. Nele, o menino Fernando tentará salvar a galinha Fernanda (nome dado por ele) de virar o prato principal do almoço de domingo. “O Canivetinho Vermelho”, a segunda narrativa, retrata o dia em que a personagem principal do livro adquiriu poderes especiais para transformar o mundo ao seu redor conforme seus desejos. Em “Como Deixei de Voar” narra as tentativas do garotinho em voar como os pilotos do aeroclube de sua cidade. Em “O Mistério da Casa Abandonada”, ficamos conhecendo uma das missões do Departamento Especial de Investigações e Espionagem Olho de Gato, grupo secreto formado por Fernando, sua amiguinha Mariana, Hindemburgo, o cachorro de Fernando, e Pastoff, o coelhinho do menino. O quarteto sairá à noite para descobrir o que se passa em uma casa abandonada na vizinhança.
O quinto capítulo do livro é “Uma Aventura na Selva”. Nele, Fernando narra os perigos que ele passou na primeira vez que foi acampar no meio do mato com o grupo de escoteiros. “O Valentão da Minha Escola” é o relato do que o grupo de colegas do protagonista aprontava na escola. A vítima preferida da criançada era a professora de religião. O sétimo capítulo é o conto/história que empresta seu nome ao título do livro. Em “O Menino no Espelho”, o pequeno Fernando faz amizade com seu reflexo no espelho. Sua versão idêntica, mas invertida, sai de dentro do espelho e passa a acompanhar o garoto verdadeiro em sua vida real, provocando as maiores confusões.
Em “Minha Glória de Campeão”, Fernando apresenta suas frustrações como jogador de futebol. Torcedor do América, o menino é o maior perna-de-pau da escola. Mesmo assim, ele terá a chance de se redimir quando vai assistir ao irmão mais velho jogar a partida final do Campeonato Mineiro. O nono capítulo é “Nas Garras do Primeiro Amor”. Nele, o menino se apaixona pela prima mais velha, a bela Cíntia. O problema é que Cíntia já é uma moça maior de idade, enquanto o garoto está com apenas 8 anos de idade. E, por fim, temos “A Libertação dos Passarinhos”, a história em que Fernando e Mariana aprontam diabruras com um vizinho que mantinha várias aves presas em gaiolas. No epílogo, chamado de “O Homem e o Menino”, temos a elucidação do mistério apresentado no prólogo.
O primeiro aspecto que chama a atenção do leitor em “O Menino no Espelho” é a mistura de realidade e de imaginação. As histórias narradas possuem um pé no mundo concreto e outro no universo fantasioso criado pelo protagonista-narrador. Como é típico das crianças, o menino Fernando viaja em sua imaginação, recriando o mundo a sua volta como bem deseja e como melhor lhe convém.
Assim, o garoto conversa com seus animais de estimação (um cachorro, uma galinha, um coelho e um papagaio), fazendo-se entender por eles. Fernando, com apenas oito anos de idade, entra em campo para disputar uma partida de futebol profissional de adultos. Também consegue voar, faz seu reflexo sair do espelho, ganha poderes de transformar o mundo, adquire a capacidade de ficar invisível, sobrevive dias sozinho na floresta perigosa e realiza missões secretas. Que criança nunca imaginou essas coisas, hein?
Esse elemento contraditório (o que é verdade e o que é brincadeira imaginativa em cada história?) da personagem principal traz graça e, curiosamente, veracidade aos relatos do livro. Afinal de contas, parte da experiência de entrar na mente do garoto é embarcar em sua imaginação fértil, independentemente do que os adultos vão achar. Sem esse aspecto lúdico, não teríamos um retrato tão fiel da infância.
Outro elemento interessante do livro é a linguagem utilizada por Fernando Sabino. Ao ler “O Menino no Espelho”, o leitor mergulha no linguajar mineiro e infantil. O texto da obra é fluído, natural e intuitivo. A ingenuidade do narrador e seus devaneios contribuem para dar credibilidade à narrativa em primeira pessoa.
As histórias do livro estão ancoradas no retrato do cotidiano, algo que Fernando Sabino sempre foi um mestre em apresentar para seus leitores. Apesar de conter muitos elementos banais do dia a dia, as tramas dos contos do livro são interessantes e possuem certa beleza poética. Para o olhar infantil, aspectos aparentemente simples da rotina ganham dimensões grandiosas e emocionantes.
Interessante reparar no retrato de Belo Horizonte que o livro traz. A BH de “O Menino no Espelho” é de quase cem anos atrás, época em que a cidade tinha ares de pequeno município do interior. Os moradores da capital mineira vão identificar vários cenários descritos nas páginas do livro, o que torna sua leitura ainda mais gostosa e encantadora. Por falar na época retratada no livro, é válido notar como era a infância no início do século passado. Nesse sentido, Fernando Sabino consegue transportar o leitor para o passado. Na ficção, podemos caminhar e brincar junto com o menino Fernando em um período em que as crianças passavam os dias nas ruas sem qualquer preocupação quanto à violência urbana. Incrível reparar no quão distinta era a infância daquela época para a de hoje em dia.
A divisão dos capítulos, como já disse, dá a ideia de formação de contos. Cada capítulo possui um conflito particular. Esse recurso ajuda na leitura das crianças, pois não é preciso ler tudo de uma vez só, nem rememorar em detalhes as tramas passadas. Assim, pode-se ler a obra aos poucos, um capítulo por dia ou um capítulo por semana, sem risco de se esquecer algo importante. Respeito quem chama “O Menino no Espelho” de romance, porém, para mim, este livro tem mais as características de uma coletânea de contos (possui várias pequenas narrativas curtas e independentes) do que um romance (com uma única narrativa longa).
É curioso notar as semelhanças entre “O Menino no Espelho” e “O Menino Maluquinho” (Melhoramentos), outro clássico da literatura infantil. As criações de Fernando Sabino e Ziraldo são mais ou menos da mesma época. Enquanto “O Menino no Espelho” foi publicado em 1982, “O Menino Maluquinho” chegou às livrarias brasileiras dois anos antes. As semelhanças entre os dois livros são quase que intermináveis: títulos parecidos (meninos nos nomes), temas similares (os retratos das infâncias felizes de garotos sapecas), mesmas personagens (os protagonistas são meninos e eles interagem, de alguma forma, com suas versões mais velhas, homens adultos que mantêm o espírito leve da infância), mensagens finais similares (para os adultos serem felizes, eles precisam ter tido infâncias alegres e manter sempre o espírito da época em que eram garotos), enredos parecidos (memórias dos tempos de criança dos autores) e os mesmos recursos narrativos (combinações de textos e imagens). Sinceramente não sei se isso foi coincidência ou se Fernando Sabino se inspirou na obra de Ziraldo.
E por falar em pontos em comum, algumas histórias do livro de Sabino lembram algumas narrativas de outros escritores nacionais e internacionais. “Galinha ao Molho Pardo”, por exemplo, faz lembrar “As Margens da Alegria” de João Guimarães Rosa, conto que abre “Primeiras Estórias” (Nova Fronteira). Quando o menino Fernando passa a visitar outras histórias infantis, lembrei de “Reinações de Narizinho” (L&PM Pocket), de Monteiro Lobato, que permitia esse intercâmbio intertextual. “O Mistério da Casa Abandonada” tem um quê de “O Gênio do Crime” (Global), romance de João Carlos Marinho Silva. E “Nas Garras do Primeiro Amor” parece bastante com alguns episódios de “O Pequeno Nicolau” (Rocco), obra da dupla francesa René Goscinny e Jean-Jacques Sempé.
Note bem: não estou dizendo que Fernando Sabino tenha copiado outras histórias para construir este livro. Não, definitivamente não é isso! Só estou dizendo que os capítulos de “O Menino no Espelho” lembram um pouco outras tramas. Mesmo com essas várias semelhanças narrativas, as histórias do livro de Sabino são ótimas.
Um aspecto que não gostei do livro foi dos desenhos apresentados ao longo das páginas. Como uma boa obra infantil, “O Menino no Espelho” possui ilustrações que contribuem para o enriquecimento e o incentivo da leitura pela meninada. Até aí, beleza. Contudo, a qualidade dos desenhos de Carlos Scliar deixa muito a desejar. Quando comparadas, por exemplo, às ilustrações de Ziraldo, em “O Menino Maluquinho”, as criações visuais de “O Menino no Espelho” são muito inferiores. Além de não dialogar diretamente com o texto, não integrando-se à experiência de leitura (algo que “O Menino Maluquinho” faz de maneira espetacular), os traços parecem displicentes, pouco cuidadosos, quase que amadores. Uma coisa é fazer ilustrações que se parecem com o universo infantil. Outra coisa é fazer traços banais e de maneira apressada. Nesse caso, achei que em “O Menino no Espelho” temos mais a segunda opção do que a primeira.
Outra questão que me pareceu excessivamente simplista foi a do mistério do prólogo. Apenas um leitor muito ingênuo não percebe, logo de cara, quem é o homem adulto que conversa com o menino nas páginas iniciais do livro. É verdade que a construção narrativa de Fernando Sabino é poética e bonita, tendo um desfecho maravilhoso no epílogo. Porém, ainda sim a descoberta não provoca qualquer espanto no leitor adulto (talvez as crianças “comprem” a surpresa bombástica da verdadeira identidade da personagem misteriosa).
Admito que adorei a leitura de ”O Menino no Espelho”. A obra de Fernando Sabino é espetacular e consegue emocionar tanto os leitores adultos quanto os mirins. Não à toa, este livro esteja no catálogo das livrarias há quase quarenta anos (um feito raríssimo) e integre os cânones da literatura infantojuvenil brasileira.
No próximo sábado, o Desafio Literário prossegue com a análise de “As Melhores Crônicas de Fernando Sabino” (BestBolso), coletânea de textos do autor mineiro que foram publicados originalmente em jornais e revistas. Não perca os novos posts sobre a literatura de Fernando Sabino que o Bonas Histórias publicará ainda em novembro.
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