Em 2018, a Coreia do Norte esteve no centro do noticiário internacional. O programa nuclear e os testes de mísseis intercontinentais do pequeno país comunista resultaram em várias reportagens dos órgãos de imprensa do mundo todo. Os líderes dos Estados Unidos, Coreia do Sul e Japão, principalmente, se indignaram com as condutas e com os discursos inflamados do exótico líder norte-coreano, Kin Jong-un. Para muitos analistas políticos, o Leste da Ásia quase viu a primeira grande guerra do século XXI.
Nas últimas semanas, li um livro extremamente interessante sobre o que é viver na República Popular Democrática da Coreia (que de República e de Popular não tem absolutamente nada), um dos países mais fechados e pobres do planeta. "Fuga do Campo 14" (Intrínseca) é a biografia de Shin Dong-hyuk, o primeiro e, até o momento, único prisioneiro de um campo de trabalhos forçados da Coreia do Norte a conseguir escapar das garras do regime ditatorial de Pyongyang. Escrito pelo jornalista norte-americano Blaine Harden, que por muitos anos foi correspondente de veículos ocidentais na Ásia, a obra dá a dimensão exata do sofrimento do povo norte-coreano. Ao apresentar a vida e a fuga de Shin, Harden constrói um panorama aterrorizante da realidade do país governado por Kin Jong-un.
"Fuga do Campo 14" foi publicado, em 2012, nos Estados Unidos. No mesmo ano, o livro foi traduzido para o português e lançado no Brasil pela Intrínseca. A obra foi produzida por Blaine Harden a partir de uma série de entrevistas realizadas com Shin Dong-hyuk. As conversas da dupla duraram aproximadamente três anos. Elas começaram em dezembro de 2008 na Coreia do Sul, onde Shin estava morando naquele momento, e se estenderam até a metade de 2011, nos Estados Unidos, para onde o norte-coreano se mudou.
A publicação conquistou importantes prêmios internacionais na sua categoria (Não Ficção). O mais relevante deles foi o Grand Prix de La Biographie Politique, concedido anualmente na França para a biografia política mais marcante escrita ou traduzida para o francês. No Prêmio Dayton Literaty Peace, voltado para as obras literárias que promovam a compreensão de diferentes culturas, povos e religiões do planeta, "Fuga do Campo 14" ficou, em 2013, entre os finalistas.
Após o sucesso de crítica e de público do livro, Blaine Harden deu sequência, nos anos seguintes, ao debate sobre a Coreia do Norte em suas obras não ficcionais. O norte-americano lançou mais dois títulos sobre a ditadura de Kin Jong-un e o regime norte-coreano: "The Great Leader and the Fighter Pilot", em 2015, e "King of Spies: The Dark Reign of America's Spymaster in Korea", em 2017 (ambos ainda sem tradução para o português).
Em "Fuga do Campo 14", conhecemos a trajetória de vida de Shin Dong-hyuk, cujo nome original é Shin In Geun. O rapaz preferiu adquirir uma nova nomeação quando se naturalizou sul-coreano. Shin nasceu e viveu como prisioneiro por 23 anos no Campo 14, o mais terrível campo de trabalhos forçados da Coreia do Norte. Localizado a 80 quilômetros ao norte de Pyongyang, a capital do país, o Campo 14 é para onde são enviados os principais inimigos políticos (e os familiares desses) do governo comunista de Kin Jong-un. De lá, nunca nenhum prisioneiro tinha consegui escapar. Apenas alguns policiais e soldados que trabalharam no campo conseguiram imigraram escondidos para o Japão e para a Coreia do Sul, relatando as práticas desumanas instituídas naquele local. Isso até surgir Shin e sua incrível história de superação.
No Campo 14, os prisioneiros são obrigados a trabalhar em jornadas de 12 a 15 horas diárias em fazendas, minas e fábricas estatais. Toda a produção é enviada depois para o consumo da elite governamental situada em Pyongyang. O destino dos prisioneiros é morrer em execuções sumárias, acidentes de trabalho ou vítimas de doenças provocadas pela fome. Homens, mulheres e crianças são tratados como animais e vistos meramente como mão de obra barata para o serviço braçal. Ninguém está livre das maldades dos policiais e do desespero dos demais presidiários.
Shin Dong-hyuk e sua família foram parar no Campo 14 por causa de um tio paterno. Na década de 1970, esse parente fugiu clandestinamente para a Coreia do Sul. Como punição, seus familiares mais próximos (incluído o pai de Shin) foram condenados como inimigos do Estado à detenção perpétua no Campo 14. A mãe (que não sabemos por que foi parar lá) e o pai de Shin se conheceram na prisão. Do relacionamento dos dois, surgiram dois filhos. Shin não teve muito contato com o pai nem com o irmão mais velho. Ambos foram enviados para trabalhos em fábricas e em minas de carvão quando Shin era ainda pequeno. Da mãe, o protagonista só tem poucas e traumáticas lembranças. A primeira é que ele, sempre faminto, roubava a comida dela quando ela saía para trabalhar. Quando regressava, a mulher ficava furiosa e espancava a criança.
Alguns anos mais tarde, Shin delatou a mãe e o irmão, que planejavam fugir do Campo. Como punição, a dupla foi executada pelos policiais na frente da família e dos demais presos. Shin recebeu como gratificação pela denúncia algumas regalias, que se estenderam por anos. Não havia, segundo as leis do Campo 14, nada mais digno para um prisioneiro do que delatar seus companheiros e até mesmo sua própria família. Naquele momento, Shin acreditou que tivesse feito a coisa certa. Cumpriu sua obrigação e foi agraciado por isso.
Apesar dos benefícios pontuais recebidos pelos guardas, a vida de Shin não era nada fácil no Campo 14. O rapaz cresceu passando fome, frio, trabalhando como um escravo e sem nunca receber carinho de ninguém. A rotina sem esperanças durou até o dia em que ele conheceu Park, um preso mais velho que já havia trabalhado como burocrata do governo central norte-coreano e, por isso, tinha viajado muitas vezes para o exterior. Park relatou ao jovem a beleza do mundo fora do campo e do país. Com as histórias do amigo na cabeça, Shin convenceu Park de fugirem juntos. Sem saber o quão difícil era a missão, os dois colocaram o plano em prática.
"Fuga do Campo 14" é uma obra sensacional. Com 230 páginas, é possível ler essa publicação em um único dia. O drama narrado é tão contagiante (e assustador, vale a pena ressaltar) que ficamos presos às páginas de sua história. Para vocês terem uma ideia, eu comecei o livro no sábado de manhãzinha e no começo da noite já tinha terminado (com algumas interrupções nesse meio tempo). Devo ter demorado entre quatro ou cinco horas ao todo para concluí-lo.
O principal mérito desta obra está em revelar a realidade dos norte-coreanos a partir do ponto de vista das pessoas comuns. Shin Dong-hyuk descreve a rotina dentro do campo e também fora dele (após sua fuga da prisão, conheceu algumas cidades norte-coreanas). Ele passou algumas semanas viajando pelo seu país até conseguir ultrapassar a fronteira ao norte e entrar na China. Nesse período, pode vivenciar a agonia dos habitantes comuns da Coreia do Norte, que apesar de não serem presos políticos também passam fome e incontáveis privações.
A constatação que ainda hoje há campos de trabalhos forçados no mundo é assustadora. Como diz Blaine Harden em seu livro, os campos nazistas foram terríveis, mas duraram apenas alguns anos. Os campos norte-coreanos, por sua vez, operam há mais de cinco décadas, dizimando milhões e milhões de vidas sem que ninguém no Ocidente pareça se importar muito com isso. É desesperador!
A narrativa de "Fuga do Campo 14" é recheada de surpresas. Do início ao final, o drama de Shin chacoalha o leitor. Não sei dizer qual parte é mais incrível: a vida sofrida na prisão, a fuga espetacular pelo país ou a depressão do rapaz após chegar ao seu destino. Em relação à última parte, note a sensibilidade do autor por apresentar as angústias de Shin ao se tornar cidadão sul-coreano e, depois, morador dos Estados Unidos. Por mais que a vida se torna aparentemente maravilhosa para um ex-prisioneiro político tratado como escravo por mais de duas décadas, os demônios internos e o passado perturbador continuam a desestabilizar o rapaz.
Outra questão interessante colocada por Harden foi a contextualização política e social da Coreia do Norte. Esses aspectos aparecem no meio da narrativa. Enquanto lemos sobre a vida de Shin Dong-hyuk, também ficamos sabendo o que estava acontecendo em seu país natal e no exterior de maneira geral. Essas visões micro e macro ajudam os leitores a entender exatamente a sorte ou o azar que o protagonista teve em diferentes momentos da trama.
Por fim, nos anexos do livro, temos alguns pontos mais sensíveis da história rememorados. No Anexo I, há o detalhamento das dez leis que todos os prisioneiros do Campo 14 precisavam saber, decorar e, principalmente, praticar. Se descumprissem algumas delas, eram torturados e corriam o risco de serem executados. E no Anexo II, temos ilustrações das cenas mais marcantes da vida de Shin. Mais aterrorizante do que ler sobre elas, é ver suas imagens do livro. Prepara-se para fortes emoções.
"Fuga do Campo 14" é um excelente livro de não ficção. Lê-lo é conhecer um pouco da agonia de norte-coreanos aprisionados direta ou indiretamente por um regime opressor, corrupto e injusto. Depois de concluir as páginas desta obra, nunca mais conseguiremos ver Kin Jong-un, o governo de Pyongyang e a Coreia do Norte com os mesmos olhos.
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