"Bad Twin" (Prestígio) é um livro, para começo de conversa, curioso. Ele pode ser lido tanto como um romance independente quanto uma metaficção pertencente ao universo mágico da série "Lost". A primeira situação acontece quando o leitor é alguém que não assistiu ao famoso programa de TV em que os passageiros do voo 815 da Oceanic Airlines ficam presos em uma ilha misteriosa do Pacífico Sul. Se esse é o seu caso, aviso desde já que você perdeu uma das produções televisivas mais icônicas deste século. O segundo cenário ocorre quando o leitor é um grande fã da história criada por Jeffrey Lieber, J. J. Abrams e Damon Lindelof. Sob qualquer uma das óticas, o romance policial consegue empolgar quem o lê.
O aspecto excêntrico de "Bad Twin" começa logo na capa, mais especificamente na apresentação de seu autor. Nesse caso, a palavra autor precisaria vir escrita entre aspas. O "autor" Gary Troup é um escritor fictício. Apesar de jamais ter existido na realidade, ele é indicado como o responsável pela produção desta obra. "Como isso é possível?", alguém poderia perguntar. A identidade do literato faz parte da brincadeira metaficcional na qual "Bad Twin" está inserida (essa seria a reposta ao questionamento anterior). Para dar um ar de credibilidade à figura de Gary Troup, a quarta capa do romance estampa os seguintes dizeres:
"É com um misto de orgulho e tristeza que a Prestígio apresenta 'Bad Twin', o último romance do admirável autor que nos foi arrebatado no auge de sua vida de escritor. Como muitos leitores estão cientes, Gary Troup está desaparecido desde setembro de 2004, quando o jato que o transportava de Sidney a Los Angeles explodiu em algum ponto acima do Oceano Pacífico. Embora nada seja mais humano do que ter fé em milagres, a razão nos leva a crer que o autor e seus companheiros de viagem não sobreviveram ao desastre. Além de seus muitos romances envolvendo crimes e mistério, Gary Troup escreveu vários livros de não ficção, incluindo 'A Equação Valenzetti'. Seu desaparecimento é pranteado por todos aqueles que o conhecem e admiram seu trabalho".
Hilário! O leitor desavisado chega a acreditar na história sobre o triste fim do romancista (crendo, por consequência, em sua identidade). Em nenhum momento há a explicação sobre o quão inverídico é esse texto. Há apenas uma frase em letras minúsculas na quarta capa dizendo: "Nesta obra todos os nomes, personagens e acontecimentos são tratados de forma fictícia. O próprio autor é um personagem de ficção". Duvido que alguém tenha lido esse trecho em uma primeira (ou segunda ou terceira...) leitura.
Para dar ainda mais peso à versão trágica do fim de Gary Troup, o livro começa com uma nota de esclarecimento dos editores. Nela, os profissionais da editora prestam homenagem ao escritor falecido, citando a irreparável perda de seu nome para a literatura policial contemporânea. Em seguida, temos a troca de correspondências eletrônicas de Gary Troup com Christine DeVries, a editora australiana que ficou encarregada de publicar o romance na Oceania. Assim como o escritor, a moça também é uma personagem fictícia. Portanto, os emails jamais existiram... Impossível não rir. Só depois desse divertido lenga-lenga, o livro começa efetivamente.
Se Gary Troup não existe fora da ficção (o verdadeiro autor de "Bad Twin" é Laurence Shames, que não tem seu nome citado em nenhuma parte do romance), ao menos na trama de "Lost" ele existe. Troup é uma personagem pontual do seriado. Sua existência foi fruto da necessidade dos autores (verdadeiros) do seriado em expandir a trama dos passageiros da Oceanic Airlines para fora da TV. Assim, "Bad Twin" é só um dos vários materiais/peças produzidos que enriqueceram a narrativa de "Lost" para fora do seu ambiente original. Além do programa de TV, um jogo de realidade alternativa foi lançado na Internet, minivídeos foram divulgados pelos celulares e sites das empresas citadas na história foram materializados. "Bad Twin" é um dos três livros que acompanham a saga de "Lost". Os outros dois são "Risco de Extinção" (Prestígio), de Cathy Hapka, e "Identidade Secreta" (Prestígio), de Frank Thompson.
Os fãs da série vão se lembrar de quando "Bad Twin" apareceu na TV (eu pelo menos recordo!). No vigésimo episódio da segunda temporada de "Lost", Sawyer está sentado tranquilamente em sua barraca à beira da praia. Ele lê os manuscritos achados nos destroços do avião que pertenciam a um passageiro que não sobreviveu à queda. Sim: o que ele tem em mãos são as páginas do original de "Bad Twin" (um close de câmera revela isso). Enquanto o rapaz lê sossegadamente, seus amigos, Kate, Michael, Ana-Lucia e Jack, estão desesperados para descobrir onde é o esconderijo das armas que Sawyer descobriu na escotilha. Para convencê-lo a fazer a revelação, Jack, o médico que lidera o grupo de sobreviventes, implora por bom-senso. Mesmo assim, Sawyer não mostra qualquer interesse em cooperar. Sua alegação é que está muito ocupado lendo um romance inédito e muito divertido. Revoltado, Jack pega as páginas da mão de Sawyer e as atira na fogueira. Com isso, a única versão do livro de Gary Troup é destruída para sempre (pelo menos na ficção, pois na realidade tivemos acesso à obra).
Publicado em 2006, entre a segunda e a terceira temporadas de "Lost", "Bad Twin" pode encantar os fãs mais fanáticos do programa porque faz citações indiretas à narrativa principal do seriado. Além de apresentar com mais profundidade personagens e grupos empresariais citados na história-mãe, temos também um ótimo dialogo no livro sobre o comportamento das pessoas no Inferno, no Purgatório e no Paraíso. Ou seja, a intertextualidade com os episódios da série de TV é evidente. Contudo, a narrativa do livro é interessante porque tem uma história com muito suspense e ação. Como obra independente (desvinculada do universo de "Lost"), "Bad Twin" também é um ótimo romance policial. Admito ter ficado empolgado com sua leitura. Li o livro inteiro (ele tem 269 páginas) em um único dia.
O enredo deste romance inicia-se em Nova York. Seu protagonista é o detetive particular Paul Artisan. Solitário e decadente, o rapaz trabalha em seu pequeno escritório de investigação. Nos últimos anos, ele só é chamado para fazer serviços pouco complexos como a verificação de casos de traições conjugais e a comprovação de fraudes nos seguros. Sua vida melancólica é pautada por passeios no parque com seu velho cachorro de estimação, Argos. A guarda do cão é dividida com um amigo, o professor aposentado de literatura Manny Weissman. Argo fica um dia com um e o outro dia com o outro dono. Por isso, a dupla de amigos se encontra diariamente no parque. Eles aproveitam para conversar sobre suas rotinas e seus problemas.
O dia a dia entediante de Artisan é quebrado quando o filho de um importante magnata da cidade visita seu escritório. O novo cliente trás consigo um caso realmente emocionante e desafiador para o detetive. Clifford Widmore precisa encontrar seu irmão gêmeo desaparecido. Alexander Widmore é um playboy inconsequente que está há vários meses sem dar notícias para a família. Clifford teme que, dessa vez, Alexander tenha passado dos limites. Seu temor é que o irmão tenha arrumado alguma confusão que esteja colocando sua vida em risco.
Paul Artisan fica intrigado com sua contratação por Clifford Widmore. Por que um homem milionário iria arranjar um minúsculo escritório de investigação para fazer um trabalho tão complexo quanto esse? Clifford alega confiar nas habilidades do detetive. Além disso, diz que precisa de alguém que mantenha o sigilo do serviço. Afinal, esse é um caso de família e se a notícia do desaparecimento de Alexander chegar aos ouvidos da imprensa, um escândalo atrelado aos Widmore tomará conta de Nova York.
Após o recebimento de um adiantamento polpudo, Artisan inicia a investigação. Contudo, o caso é mais complexo do que ele imaginava. A família Widmore esconde segredos inimagináveis. À medida que avança nos podres dos membros do clã que o contratou, Paul começa a correr perigo de vida. Assassinatos são realizados para frear sua investigação. Aterrorizado, o detetive pede ajuda para Manny Weissman. O velho professor de literatura utiliza seus conhecimentos literários para orientar o amigo. Assim, Paul Artisan inicia uma caçada ao paradeiro de Alexander. Além de viajar pelos Estados Unidos, o detetive irá a Cuba e a Austrália atrás do irmão do seu cliente.
Escrita em terceira pessoa, a narrativa de "Bad Twin" é ótima. O mistério da trama prende o leitor às suas páginas. Além disso, a história tem várias reviravoltas interessantíssimas (um elemento afrodisíaco dos bons romances policiais). A cada quarenta ou cinquenta páginas, o enredo parece caminhar para um lado totalmente distinto, aguçando ainda mais a curiosidade de quem o lê.
Outros quatro pontos positivos deste romance que merecem ser citados são a boa construção das personagens, as referências literárias, as cenas de ação e o bom humor do texto. Quanto à construção das personagens, temos aqui uma narrativa com figuras dúbias. Tanto os protagonistas (detetive e seu amigo) quanto os investigados (família Widmore) têm qualidades positivas e negativas que o tornam complexos (personagens redondas). Qualquer um é suspeito de ter tramado o desaparecimento de Alexander. As revelações só apareceram nas últimas páginas.
Gosto muito de ler histórias que fazem referências às outras obras literárias. "Bad Twin" foi muito feliz nesse sentido. O professor Weissman avalia os envolvidos na investigação de Artisan comparando-os às figuras clássicas da ficção. São muito interessantes e engraçadas as analogias que ele faz durante a trama. A imaginação de Weissman é mais fértil do que a mente de muitos autores por aí.
O livro também é pródigo em cenas de ação. O protagonista está sempre viajando para locais desconhecidos, tornando tudo mais difícil e emocionante para ele. Por outro lado, o perigo é crescente. Sem perceber, Paul Artisan está se metendo em assuntos espinhosos que poderão colocar sua própria vida em risco.
E o que dizer então do humor do texto, hein? "Bad Twin" tem cenas, diálogos e momentos muito engraçados. Um dos que mais gostei foi a hilária visita do detetive a um spa naturalista. Lá, ele precisou andar pelado pelos corredores e pelos cômodos do estabelecimento. Para conseguir entrevistar o chefe/proprietário do spa, Paul Artisan teve de se submeter a um constrangedor banho de banheira junto com o anfitrião. Impagável!
De pontos negativos do romance, só achei dois. O primeiro é quanto aos absurdos da narrativa. A investigação de Artisan avança por causa de uma série de coincidências que são pouco verossímeis. Para você ter uma ideia do que estou me referindo, o detetive descobre pessoas e lugares rapidamente e sem qualquer pista mais concreta. Ele, por exemplo, viaja para uma cidade turística no litoral norte-americano procurando uma mulher que ele não sabe o nome. Em apenas duas conversas (com o taxista e com o recepcionista do hotel), pronto, ele descobriu a pessoa. Ele também viaja para a Austrália sem qualquer pista do que está indo fazer lá. Novamente em duas conversas rotineiras, já está mais uma vez no paradeiro do homem que está procurando. Ou esse detetive é o mais sortudo da história ou o autor acha que o leitor é burro em acreditar nessa coletânea de coincidências.
Outro elemento que incomodou minha leitura foi o excesso de erros de pontuação do texto. A editora parece ter comido bola na revisão final, deixando passar inversões de pontuação em algumas frases (pontos finais nos lugares de interrogações, interrogações nos lugares de pontos finais, por exemplo). Não é nada que inviabilize a leitura, mas que pode incomodar um pouco os leitores mais atentos e criteriosos.
Adorei "Bad Twin". Ao terminar o livro fiquei imaginando o desespero de Laurence Shames. O cara escreve um baita romance policial e não pode ter seu nome revelado em nenhum momento. Aí, quem ganha os créditos pela obra é uma personagem ficcional chamada Gary Troup. Curiosa essa situação, né? Coisas de metaficção!
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