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Bonas Histórias

O Bonas Histórias é o blog de literatura, cultura, arte e entretenimento criado por Ricardo Bonacorci em 2014. Com um conteúdo multicultural (literatura, cinema, música, dança, teatro, exposição, pintura e gastronomia), o Blog Bonas Histórias analisa as boas histórias contadas no Brasil e no mundo.

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Ricardo Bonacorci

Nascido na cidade de São Paulo, Ricardo Bonacorci tem 42 anos, mora em Buenos Aires e trabalha como publicitário, produtor de conteúdo, crítico literário e cultural, editor, escritor e pesquisador acadêmico. Ricardo é especialista em Administração de Empresas, pós-graduado em Gestão da Inovação, bacharel em Comunicação Social, licenciando em Letras-Português e pós-graduando em Formação de Escritores.  

  • Foto do escritorRicardo Bonacorci

Talk Show Literário: Riobaldo Tatarana Urutú-Branco


Talk Show Literário: Riobaldo Tatarana Urutú-Branco

Darico Nobar: E aí, pessoal animado do Talk Show Literário, tudo bem?

Plateia: Ehhhhhhhhhhhhhhh! [É possível ver faixas e cartazes com mensagens de carinho ao programa e ao apresentador sendo erguidas no meio do auditório. Os fãs mais empolgados são filmados aos gritos histéricos].

Darico Nobar: Vou falar uma coisa do fundo do meu coração: se vocês estão gostando de nossas entrevistas, saibam que irão adorar o programa desta noite. Hoje, nosso convidado é ninguém mais, ninguém menos do que o mais famoso protagonista roseano. Agora, em nosso palco, Riobaldo! [O entrevistado recebe muitas palmas da plateia.] Tudo tranquilo com você, meu amigo?

Riobaldo Tatarana Urutú-Branco: Sêo Darico, comigo tudo bom e com o senhor?

Darico Nobar: Tudo ótimo. E melhor neste instante que estou na sua companhia. Depois de tanto tempo sem nos vermos, você, enfim, aceitou meu convite e veio me visitar. Já estava na hora, né? Fez boa viagem?

Riobaldo Tatarana Urutú-Branco: Araviva! O que Deus obra, obra bem e no tempo certo. Viajei amiúde até esta cidade de muitos rios, mas de nome de um só, aquele pregado no começo do calendário. Mas confesso que já tardava sim para nos rerevermos. O senhor se alembra quando foi a última vez que nos avistamos?

Darico Nobar: Sim. Faz mais de sessenta anos que fui visitá-lo em sua fazenda em Minas Gerais, Riobaldo. Pouca gente sabe, mas você estava conversando comigo quando narrou Grande Sertão: Veredas. Foram três dias inteiros ouvindo você falar sem parar. Admito que não foi fácil, mas eu sobrevivi ao seu interminável monólogo. [Apresentador e convidado riem enquanto prolongam um novo abraço desajeitado].

Riobaldo Tatarana Urutú-Branco: Uma prosa nonada, Sêo Darico. Já fui Asa Branca que piava noite e dia, alvo de estilingadas de tudo quanto é montaria. Agora, sou apenas anta empoçada, ninguém me quer como caçada. Da vida pouco me resta - só o deogratias, e o troco. Bobéia. Já fui professor, assessor de contar, jagunço, chefe de bando, criador de gado e de palavras e lavrador. Para outras coisas não fui parido não, seu moço. Hoje sou só mais um velho a insistir em não esquecer o passado que me persegue a venta. Às vezes sou eu quem acossa por vontade minhas memórias, nas outras é o povo quem clama pelas minhas histórias. O senhor é um desses, Sêo Darico: faz questão que eu requente cada pedacinho do meu Sertão-mundo que guardo preso dentro do alçapão da alma.

Darico Nobar: Afinal, Riobaldo, seu romance, um indiscutível clássico da nossa literatura, fala prioritariamente do quê? É um livro sobre a fé religiosa, sobre a dureza do Sertão, sobre o amor verdadeiro ou sobre a guerra entre os sertanejos?

Riobaldo Tatarana Urutú-Branco: Olhe: conto ao senhor... Para compadre meu Quelemém, uma história sempre fala do geral e não do particular. A parte maior da vida sempre ganha da menor. Sempre. Tudo é e não é. Em relação à minha terra, Sertão é uma enorme espera. A rotina lá é baseada na arte do persistir. É provocar a lógica e insistir. Manter-se vivo é fim e meio. Viver é negócio muito perigoso, principalmente embaixo do sol sertanejo. O senhor não duvide - tem gente, naquela aborrecida terra, que mata só para ver careta... A vida é ditada pela boca do trabuco: é no té-retê-retém. O Sertão é só braveza. Vi tanta crueza em minhas andanças que o senhor nem atina. O senhor sabe: Sertão é onde manda quem é forte, onde sobrevive quem tem astúcia nas mãos. Lá, o homem tem que ter a nuca dura e a mão quadrada. Deus mesmo, quando vier, que venha armado.

Darico Nobar: Por falar em Deus...

Riobaldo Tatarana Urutú-Branco: Deus?! Não se engane, meu velho amigo. Ele é traiçoeiro! Ah, uma beleza de sujeito traiçoeiro - dá gosto de ver! A força Dele quando quer - moço! - me dá um baita medo pavorado só de pensar! Ele ninguém vê. Vem de mansinho e ataca sem alarde. Enquanto Deus come escondido, o Diabo sai por toda parte lambendo os beiços... Careço ter coragem para encará-los. Não sei de quem mais temo: Deus perdido no coração da gente ou o Demo no meio do redemunho... Para jagunço certo das ideias, é Deus no Céu e Joca Ramiro na outra banda do Rio. O Demônio, esse pode ficar pousado na ponta do trabuco que é lugar quente para ele viver.

Darico Nobar: Quando pensamos...

Riobaldo Tatarana Urutú-Branco: O senhor conhece Joca Ramiro, não é? Como ia falando, acho uma penação o povo jovem do agora não se atinar para as figuras importantes do ontem. Ninguém mais se alembra de Zé Bebelo, de Medeiro Vaz ou do Urutú-Branco aqui! Nem de Joca Ramiro, o maior de todos, o povo reconhece seja na palavra falada ou na voz escrita. Às vezes, me pego a matutar que o único a ficar no pensado geral foi Virgulino Ferreira da Silva, por cunha Lampião, e sua mulher Maria Bonita, nessa confusão do povo de agora entre jagunço e cangaceiro, como se tudo fosse a mesma coisa. Uma pena! Estou contando ao senhor, Sêo Darico, porque carece de um explicado. Ave, vi de tudo neste mundo. Compadre meu Quelemém é um homem sabido de engenharia. Ele disse, certa vez, que amor é bicho burro que ataca a gente derepentemente e sem lógica nenhuma. Uma vez mordido no coração pela perigosa praga, caímos doentes da cabeça e cegos da visão. Comigo acorreu exatamente assim. Eu gostava mesmo de Diadorim. Não era só gosto de gostoso, era amor mesmo de gastoso. Que culpa tinha eu de Reinaldo ser homem e estar em corpo amancebado?! Que culpa nós tínhamos se éramos jagunços destemidos que botávamos medo em meio Sertão e, mesmo assim, nos queríamos amasiados?! Não me culpe, meu bom senhor, por favor. Isso é praga ou peça que nos afeta o sentimentar. No início, pensei que era trem trazido pelo Que-Não-Há. Onde já se viu Deus deixar homem gamar em homem, em desejar corpo de companheiro? Só podia ser manobração do Tinhoso mesmo... Não entendia como jagunço obreiro e macho como eu podia cair em tentação... É vera que Reinaldo não era igual aos outros jagunços. Bonito de rosto e de alma. Rapaz cheiroso e sempre limpo. Olhos verdes como esmeraldas a olhar para gente com anseio. Ele tinha o nariz fininho, a boca pequena e as mãos macias como seda. O corpo delicado e as maneiras graciosas escondiam o gosto por matar. De corpo-fechado, não havia lutador mais brabo no campo de batalha, seu moço. Dava gosto estar ao lado dele. Certa vez, perguntei para Diadorim se ele não tinha uma irmã. Não tinha, me respondeu atravessado. Meu gostar dele só aumentou com o tempo. Nossa amizade nunca invejou os outros. Ou quase nunca... O senhor conhece jagunço de verdade? Digo de verdade, porque esses que os homens cantam em prosas e versos são só gentes genéricas. Jagunço é homem já meio desistido por si. Ele não se escabrêia com perda nem com a derrota - quase que tudo para ele é igual. Nunca vi. Para ele a vida já está assentada: comer, beber, apreciar mulher, brigar muito e esperar o fim final. Jagunço é isso. Não mais, mas também não menos. A guerra distrai e diverte ao mesmo tempo - Demo concorda e Deus não opina. O que Deus sabe, Deus sabe. E o que Ele não se opõe, o Tinhoso se manifesta a contento. Viver é coisa muito perigosa. É preciso ter coragem... Desculpa me dê seu moço, sei que estou falando de mais, de lado. Resvalo. Assim faz a velhice. Também, o que é que vale e o que não vale? Tudo. Mas conto. Conto para mim, conto para o senhor, conto para o público sentado aí na frente. Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniões... O Sertão está em toda parte: em mim, em ti e no Diadorim. Falar da minha vida é falar da minha terra. Falar do Sertão é traçar a linha da jagunçagem, dos meus companheiros. E dos chefes dos bandos, nunca houve homem mais correto do que Joca Ramiro. Muita gente me pergunta: o que Joca Ramiro fez de tão relevante para ser tão venerado? Ora - respondo - fruto dele foi Reinaldo, o moço mais bonito do mundo. Diadorim era filho de Joca Ramiro, o senhor sabe. Tem melhor realização para um sujeito ostentar? Nonada!

Darico Nobar: Riobaldo?!

Riobaldo Tatarana Urutú-Branco: Com amigo Reinaldo, eu ia até o inferno por Joca Ramiro e pelos seus. Falando assim, posso ser mal compreendido, não é? Sou homem que gosta de mulhê, Sêo Darico. Vá pensar mal de mim não, hein?! Por minha cama se passaram muitos rabos de saia de bom gabarito e damas de primeira linhagem. Nem sei se consigo contar todas. Além da bela Otacília, a maioral, na minha mão comeram e se lambuzaram Nhorinhá, filha de Ana Duzuza, Rosa'uarda, Maria-da-Luz, Hortência, Bruna Surfistinha, Hilda Maia Valentim e Maria Machadão. Atente-se, meu senhor, que eu disse Maria Machadão e não Maria Machodão. Macho para mim só o Reinaldo, e olha que ele não era assim tão másculo como supúnhamos. Mas ponho minha fiança - nunca tive inclinação pra os vícios desencontrados. Repilo o que, o sem preceito. Então, o senhor me pergunta, o que era chamego com Diadorim? Ah, lei ladra, o poder da vida. Direitinho declaro sem medo o que, durante sempre, mais, às vezes menos, comigo se passou. Aquela amizade pouco preta no branco, mas também não chegada a toda colorida. Eu não pensava em adiação nenhuma, de pior propósito. Mas eu tinha gosto por ele, dia mais dia, noite mais noite, eu gostava. Diga o senhor: como um feitiço? Isso mesmo. Feito coisa-feita. Como coisa-boa-ruim. Era ele estar perto de mim, e nada me faltava. Era ele fechar a cara e estar tristonho, e eu perdia o sossego e as estribeiras. Era ele estar por longe, e eu não via graça neste mundo. Eu mesmo não entendia então o que era? Sei que sim. Mas não. E eu mesmo entender não queria. Acho que... Aquela meiguice, desigual que ele sabia esconder o mais de sempre. E em mim a vontade de chegar todo próximo, quase uma ânsia de sentir o cheiro bão do corpito dele, dessa eu espairecia, aí rijo comigo renegava. Muitos momentos. Me alembro, por exemplo, daquelas mãos, do jeito como se encostavam em meu rosto, quando ele cortou meu cabelo ou quando cuidou dos meus ferimentos. Sempre. Do Demo: digo? Ou trem de Deus: pode ser? Tolêima! Juro que sempre me pus a calcular isso, seu moço. Com que entendimento eu entendia, com que olhos eram que eu olhava? Eu conto. O senhor vá ouvindo.

Darico Nobar: Eu preciso perguntar algo para você! [O apresentador se aproxima do entrevistado e pega com delicadeza em um de seus braços.]

Riobaldo Tatarana Urutú-Branco: Para que a perguntação se estou a responder tudo de antemão, meu bom amigo de estimação? Acalme-se! Compadre meu Quelemém é que está sempre certo. Não existe vida bandida. Vida é para ser vivida. Quanto mais estendida, menos compreendida. Constrangida é a vida ressentida sem amor e sem despedida. Pensar mal é fácil, porque esta finita existência é embrejada. A gente vive, eu acho, para se desiludir e para se desmisturar. A senvergonhice reina tão leve e leve pertencidamente, que primeiro não se crê no sincero sem maldade.

[Enquanto o entrevistado fala, as letras dos créditos do programa começam a subir na tela. O apresentador tenta dizer algo mais uma vez, mas não obtém êxito. Ao perceber que não conseguirá interromper o convidado, Darico Nobar encosta-se em sua cadeira e solta um suspiro. Com a mão direita, ele acena timidamente para o público no auditório e, depois, para as câmeras. É sua despedida daquela noite].

Riobaldo Tatarana Urutú-Branco: Sêo Darico, releve o tanto dizer, mas foi assim que tudo se passou e eu penso ser. Ah, eu só queria era ter nascido em cidade, feito o senhor, jornalista e escritor, para poder ser instruído e inteligente também! E tudo conto, como está dito. Não gosto de me esquecer de coisa nenhuma nem de falar pela metade. Tudo precisa ser posto na horizontal para dúvida ou não-entender não nos atacar na diagonal. Podem me acusar de língua solta e de falador, mas nunca de omissão ou de mentidor. Uma vez, compadre meu Quelemém, que tudo sabe e sempre fala, contou que...

[Mal a imagem da dupla de personagens desaparece da tela, os comerciais da nova atração da emissora entram no ar. Um novo programa está para começar.]

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O Talk Show Literário é o programa de televisão fictício que entrevista as mais famosas personagens da literatura. Assim como ocorreu nas duas primeiras temporadas, neste terceiro ano da atração, os convidados de Darico Nobar, personagem criada por Ricardo Bonacorci, são os protagonistas dos clássicos brasileiros. Para acompanhar as demais entrevistas, clique em Talk Show Literário. Este é um quadro exclusivo do Blog Bonas Histórias.

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