Minha leitura deste final de semana foi “No Seu Pescoço” (Companhia das Letras), a coletânea de contos de Chimamanda Ngozi Adichie. Adichie, nunca é demais lembrar, é a autora que está sendo analisada neste mês no Desafio Literário. Este livro, o terceiro da escritora nigeriana que comentamos no Bonas Histórias, aborda essencialmente os dramas dos imigrantes nos Estados Unidos, o choque cultural entre o estilo de vida ocidental e o nativo da África e os conflitos familiares provocados pela violência, pelo racismo, pelo machismo e pelas diferenças étnico-religiosas. Ou seja, temos aqui um coquetel bombástico com histórias de brutalidades, traições, injustiças, separações e desigualdades sociais. Quem gosta de drama, saiba que este livro é um prato cheio! Chimamanda Ngozi Adichie não tem medo de colocar o dedo nas feridas e apresentar a realidade nua e crua dos seus conterrâneos.
Apesar do conteúdo forte e do texto revelador, “No Seu Pescoço” é capaz de encantar seus leitores principalmente por suas ousadias estética e temática. Além disso, o livro apresenta uma faceta ainda hoje pouco explorada na literatura comercial: o ponto de vista do africano negro (ou melhor, da africana negra) que precisa imigrar para o “Primeiro Mundo” ou que sofre em seu próprio país as injustiças e os preconceitos impostos pelo Colonialismo europeu (e pelo machismo das sociedades de ontem e hoje). Vale a pena dizer que esta é a única coleção de narrativas curtas da escritora nigeriana até agora. Os outros livros de Adichie são romances e ensaios/crônicas.
Publicado em abril de 2009 nos Estados Unidos e na Inglaterra, “No Seu Pescoço” é o terceiro livro de Chimamanda Ngozi Adichie. Esta obra veio na sequência de “Hibisco Roxo” (Companhia das Letras), de 2003, e “Meio Sol Amarelo” (Companhia das Letras), de 2006. Contudo, a maioria dos contos desta coletânea é anterior a esses romances. As histórias de “No Seu Pescoço” foram produzidas ao longo da segunda metade da década de 1990 e durante os anos de 2000, época em que Adichie era ainda uma escritora desconhecida e que se dedicava mais às narrativas curtas. Por isso, quase todas as tramas de “No Seu Pescoço” já haviam sido publicadas em revistas literárias dos Estados Unidos (The New Yorker, Other Voices, Virginia Quarterly Review, Zoetrope e The Iowa Review), da Inglaterra (Granta e Prospect) e do Canadá (Prism International). O único conto realmente inédito é “A Embaixada Americana”, a oitava narrativa desta publicação.
Chimamanda usou boa parte de sua experiência de vida para construir as narrativas com personagens e famílias fragmentadas pelo processo de imigração e impactadas pelo choque cultural entre a vida na Nigéria e nos Estados Unidos. A escritora deixou a Nigéria em 1996, quando tinha apenas dezenove anos de idade, e desde então mora nos Estados Unidos. Foi no novo país que ela se formou, iniciou a carreira de escritora e se casou. Em parte, “No Seu Pescoço” apresenta os dramas de pessoas comuns que precisaram deixar sua antiga vida para trás e se lançaram para uma aventura rumo ao desconhecido bem longe de casa.
Mesmo sendo o livro mais desconhecido da carreira de Chimamanda Ngozi Adichie, autora best-seller por causa de seus romances dramáticos e seus ensaios/crônicas feministas, “No Seu Pescoço” foi indicado a vários prêmios internacionais. Os mais relevantes foram o Prêmio Frank O´Connor International de Contos, o Prêmio John Llewellyn Rhys, o Commonwealth Writers' Prize na categoria Melhor Livro Africano e o Prêmio Dayton Literary Peace. É inegável a qualidade de “No Seu Pescoço”. Quem gosta de coletâneas de contos na certa irá ficar positivamente impressionado com esta obra. Na minha opinião, esta publicação só é a menos conhecida do portfólio de Adichie por causa do seu gênero literário. Afinal, não é todo mundo que gosta de narrativas curtas, né?
“No Seu Pescoço” possui doze contos. Mais da metade deles (sete contos) são histórias narradas em terceira pessoa. As outras foram produzidas em terceira pessoa (três contos) e em segunda pessoa (dois contos). As histórias desta obra são: “A Cela Um”, “Réplica”, “Uma Experiência Privada”, “Fantasma”, “Na Segunda-feira da Semana Passada”, “Jumping Monkey Hill”, “No Seu Pescoço”, “A Embaixada Americana”, “O Tremor”, “Os Casamenteiros”, “Amanhã é Tarde de Mais” e “A Historiadora Obstinada”.
A primeira trama, “A Cela Um”, se passa em Nsukka. Ali, as casas dos professores da universidade local, todas famílias de classe média, estão sofrendo uma onda de assaltos. Paradoxalmente, os responsáveis pelos crimes são os próprios filhos dos docentes que invadem as residências dos vizinhos. Nnamabia, um rapaz de 17 anos muito medroso e mimado, prefere roubar as joias da própria mãe a adentrar as casas alheias. Três anos mais tarde, ele é preso acusado de integrar uma gangue juvenil. O segundo conto é “Réplica”. Nkem possui uma vida confortável nos Estados Unidos, onde imigrou com o marido, Obiora, há alguns anos. O casal deixou a Nigéria definitivamente para trás e passou a criar os filhos na América como uma típica família norte-americana. Certo dia, Nkem recebe uma ligação telefônica de uma amiga. Ela revela que Obiora tem uma amante.
Em “Uma Experiência Privada”, Chika está de passagem por Kano com sua irmã. Justamente nesse instante, explode uma onda de violência dos hausas contra os igbo. Na confusão, Chika é salva por uma muçulmana que se solidariza com sua situação e a ajuda a se esconder em uma pequena loja. Porém, a irmã de Chika, Nnedi, acaba desaparecendo sem deixar rastros. A quarta história se chama “Fantasma”. James Nwoye é um professor de matemática de Nsukka de 71 anos que está próximo de se aposentar. Certo dia, ele reencontra um colega que não via há 37 anos e que todos supunham ter morrido durante a Guerra Civil Nigeriana. “Na Segunda-feira da Semana Passada” é ambientado nos Estados Unidos. Kamara é uma jovem nigeriana que aguarda o recebimento do Green Card trabalhando como babá. Os clientes são uma família formada por um advogado branco e judeu e uma artista plástica negra. O filho deles é um menino que se chama Josh. O curioso desta narrativa é que depois de três meses de serviço, Kamara ainda não conhece a mãe de Josh. Ela passa os dias fechada no porão de casa trabalhando.
Em “Jumping Monkey Hill”, o sexto conto, conhecemos Ujunwa Ogundu, uma jovem nigeriana. Ela viaja de Lagos para um resort nos arredores da Cidade do Cabo para participar de um Workshop para Escritores Africanos. Durante as duas semanas do evento, Ujunwa precisa apresentar um conto. Ela usará alguns episódios autobiográficos para construir sua narrativa. “No Seu Pescoço”, a história que empresta seu nome ao título da coletânea, está em segunda pessoa. Você é Akunna, uma jovem nigeriana de 22 anos, da etnia igbo e que imigra para os Estados Unidos. Lá, você vai morar em um primeiro momento com um tio. Depois que ele tenta estuprar você, sua decisão é ir morar sozinha. “A Embaixada Americana” apresenta o drama da esposa de um jornalista perseguido pelo governo central da Nigéria. Depois de vê-lo fugir e de assistir ao assassinato do próprio filho, ela pede asilo político na embaixada dos Estados Unidos.
“O Tremor”, a nona história de “No Seu Pescoço”, inicia-se no dia em que a primeira dama nigeriana morreu na Espanha e um avião comercial caiu na Nigéria. Esses eventos trágicos precipitam a visita inusitada de Chinedu ao apartamento de Ukamaka na Universidade de Princeton. Ambos são estudantes nigerianos que moram nos Estados Unidos, mas nunca haviam se falado no campus. Chinedu e Ukamaka espantam a timidez e rezam juntos pelos compatriotas mortos. É o início de uma amizade forte entre eles. Em “Os Casamenteiros”, Chinaza se muda de Lagos para Nova York para viver ao lado do novo marido, Ofodile. Ele é médico e mora há muitos anos nos Estados Unidos. O casamento foi arranjado pela família de ambos. Portanto, Chinaza e Ofodile nunca haviam se visto ou conversado antes de dividirem o mesmo teto. Curiosamente, o maior desafio do novo casal não é se conhecer e sim equalizar as diferenças culturais.
“Amanhã é Tarde de Mais” é o outro conto em segunda pessoa deste livro. Dezoito anos depois, você volta para a Nigéria e visita a casa de sua avó recém-falecida. Ao pisar naquela residência, as lembranças da sua infância voltam com tudo. Você se recorda da morte trágica de seu irmão, Nonso, naquele quintal, da paixonite de menina pelo primo mais velho, da separação dos pais e de um segredo macabro daquela época. O último conto desta coletânea é “A Historiadora Obstinada”. Quando, enfim, Nwamgba consegue engravidar de seu marido, Obierika, ela se torna viúva. Obierika morre misteriosamente. Os primos gananciosos dele passam a cobiçar o patrimônio do falecido, para desespero de Nwamgba. Para se proteger, a viúva envia seu filho para ser criado por religiosos brancos. A boa instrução do garoto, segundo crê sua mãe, é a única arma para salvá-los das maldades dos primos de Obierika.
Este livro possui 256 páginas. Precisei de apenas dois dias para concluir sua leitura. Iniciei a coletânea de contos no sábado depois do almoço e no domingo à noite já tinha chegado ao seu final. Como nos dois romances anteriores de Chimamanda Ngozi Adichie, “Hibisco Roxo” e “Meio Sol Amarelo”, “No Seu Pescoço” tem um texto forte, sensível e dramático. Suas tramas percorrem a infância, a juventude, a maturidade e a velhice das diferentes personagens retratadas. Com isso, temos um relato abrangente da vida dos nigerianos que precisam imigrar para a América ou que permanecem morando em um país extremamente dividido e hostil como a Nigéria. Os termos dividido e hostil da frase anterior não foram colocados por acaso.
“No Seu Pescoço” mostra principalmente o quanto a Nigéria é um país violento, perigoso, desigual e injusto (daí a escolha pela palavra “hostil”). Ele também apresenta os dramas dos nigerianos que foram obrigados a imigrar. Assim, eles se tornaram pessoas fragmentadas entre o novo e o antigo, entre a cultura anglo-saxã e a nativa da África, entre a pátria natal e o país atual e entre os valores dos colonizados e dos colonizadores (daí o termo “dividido)”. Qualquer que seja o caminho escolhido, os protagonistas das narrativas sofrem com os vários choques culturais
Quanto às temáticas de cada conto: “A Cela Um” aborda a violência, a corrupção e as injustiças do sistema policial-penal nigeriano; “Réplica” trata da traição conjugal e do choque cultural; “Uma Experiência Privada” apresenta as diferenças étnico-religiosas da Nigéria e a violência do país africano; em “Fantasma”, assistimos ao choque cultural, aos horrores da Guerra Civil Nigeriana, à corrupção, à pobreza, ao caos econômico e à espiritualidade deste país africano; “Na Segunda-feira da Semana Passada” trata da imigração e do choque cultural; “Jumping Monkey Hill” fala de assédio, racismo, choque cultural e literatura; “No Seu Pescoço” temos como panorama a violência, o assédio, o racismo, a imigração e o choque cultural; “A Embaixada Americana” aborda a violência da Nigéria e o sonho da imigração para os Estados Unidos; “O Tremor” trata de religião, imigração e homossexualismo; em “Os Casamenteiros” temos o choque cultural e mais uma vez a questão da imigração; Em “Amanhã é Tarde de Mais” temos machismo e a violência; e em “A Historiadora Obstinada” temos poligamia, violência, colonialismo, escravidão, diferenças religiosas e choque cultural.
Repare especialmente nos dois contos do livro narrados em segunda pessoa: “No Seu Pescoço” e “Amanhã é Tarde de Mais” (este último é a minha história favorita da coletânea). Por ser raro este tipo de narração, fica nítida a ousadia da proposta estética de Chimamanda Ngozi Adichie. Tão interessante quanto a proposta foi a sua execução. Incrível! Os dois contos estão fantásticos.
O principal mérito do livro “No Seu Pescoço” é apresentar para o leitor a realidade do imigrante africano que vai morar sozinho ou com a família nos Estados Unidos. Os choques culturais que eles passam são assustadores. O mundo da sociedade contemporânea ocidental é completamente diferente da sociedade nativa africana. Crenças religiosas, moda, culinária, cultura, idioma, comportamento, família e relacionamentos conjugais são tão distintos de um lugar para outro que acabam tornando a vida do imigrante um inferno. A única coisa que parece não mudar é o machismo. Assim, as mulheres acabam sofrendo, independentemente de onde estejam.
O Desafio Literário deste mês retorna na próxima sexta-feira, dia 17, com mais uma análise de um livro de Adichie. A obra que iremos comentar será “Americanah” (Companhia das Letras), o maior sucesso da escritora nigeriana. Esta obra foi publicada em 2013 e se tornou um best-seller mundial, além de ter conquistado o Prêmio National Book Critics Circle de Ficção. Continue acompanhando, nas próximas semanas, o estudo sobre a literatura de Chimamanda Ngozi Adichie. Esta é uma exclusividade do Bonas Histórias. Não perca!
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