Neste final de semana, li "Xamã" (Rocco), o segundo romance de Noah Gordon sobre a saga dos médicos da família Cole que possuem um dom mediúnico. O primeiro livro desta trilogia foi “O Físico” (Rocco), obra lançada em 1986 e analisada na semana passada no Bonas Histórias. A terceira e última parte desta série literária é “A Escolha da Dra. Cole” (Rocco), título publicado em 1995 e que, infelizmente, não comentaremos neste Desafio Literário. Afinal, precisamos conhecer as demais tramas do autor, né? A “Trilogia da Família Cole” é o maior sucesso da carreira de Gordon.
A iniciativa de Noah Gordon de escrever a continuação de “O Físico” é justificada do ponto de vista comercial. Depois do êxito retumbante na Europa da narrativa sobre o médico inglês na Idade Média, o escritor norte-americano resolveu contextualizar essa continuação em seu país natal. Na certa, Gordon queria conquistar o apreço também de seus conterrâneos, que de alguma forma, desprezaram um pouco o romance inicial da série. E ele fez isso ambientando sua ficção em um dos períodos mais conturbados da história dos Estados Unidos – o da Guerra Civil. Assim, os descendentes de Robert Jeremy Cole imigram da Escócia para a América no século XIX e se tornam os protagonistas do novo romance histórico do autor.
Lançado em 1992, “Xamã” é, curiosamente, o trabalho literário mais premiado de Noah Gordon, superando até mesmo “O Físico”, seu livro mais popular. Esse segundo romance da série conquistou prêmios literários na Itália, na Espanha, na Alemanha e, sim, nos Estados Unidos. Só por isso, a produção de “Xamã” já teria valido a pena. Porém, foi a partir desta publicação que Gordon passou a ser um nome relevante na literatura de seu país natal. Isso também foi potencializado pelas novas edições de “O Físico”, que, enfim, se tornaram bem-sucedidas comercialmente entre os leitores norte-americanos.
O enredo de “Xamã” começa em abril de 1864, durante a Guerra de Secessão. O jovem médico Robert Jefferson Cole, apelidado de Xamã (daí o título da obra) e com 22 anos, volta para a casa em Holden´s Crossing, no Illinois. Ele foi chamado para participar do enterro do pai, o também médico Robert Judson Cole. Xamã é surdo desde a infância e compreende o que as pessoas falam através da leitura labial. Ao regressar para o antigo lar, ele atende ao pedido da mãe, Sarah, para cuidar dos aspectos burocráticos da herança paterna. Assim, o rapaz vai ao escritório da casa para mexer nos documentos da família. Ali, ele encontra as anotações pessoais e os diários de Robert Judson. E com o material em mãos, ele começa a lê-lo. Dessa forma, o jovem médico conhece a história paterna. Os manuscritos do médico falecido iniciam em março de 1839, exatamente quando ele desembarcou nos Estados Unidos vindo da Escócia.
Robert J., como Robert Judson Cole era chamado, é descendente de Robert Jeremy Cole, o protagonista de “O Físico”. Jovem e talentoso médico de Edimburgo, Robert J. precisou deixar as pressas seu país natal por problemas políticos. Ou ele imigrava para a América ou corria o risco de ser deportado para a Oceania. Diante desse impasse, preferiu a primeira opção. Depois de desembarcar em Boston, ele atravessou os estados de Massachusetts, Connecticut, Pensilvânia, Ohio e Indiana, chegando até Illinois. No centro-oeste norte-americano, o escocês fixou residência em Holden´s Crossing, um pequeno povoado do condado de Rock Island. Além de atuar como médico, Robert J. comprou terras para criar ovelhas, uma tradição de sua família na Europa.
Desde o início, o médico escocês fez amizade com Nicholas Holden, um dos desbravadores daquela região, e com índios da tribo sauk, que habitavam aquelas terras. Entre os índios, a relação mais forte de Robert J. foi com Makna-ikwa, chamada de Mulher Urso. Makna-ikwa era a jovem curandeira de seu povo e, por afinidades médicas, se tornou a grande amiga do britânico. Precisando de mão de obra confiável para trabalhar em sua criação de ovelhas, Robert J. convidou alguns integrantes da tribo da Mulher Urso para viver com ele. A curandeira também foi morar na fazenda, mas passou a atuar ao lado do doutor na prática da medicina.
Não demorou muito para Robert J. se casar. Ele escolheu como esposa Sarah Bledsoe, uma viúva local. Como a mulher já tinha um filho do antigo casamento, Alexander, o médico adotou o menino. Robert J. e Sarah Cole tiveram um filho: Robert Jefferson. Por ter sido criado mais por Makna-ikwa do que pela mãe biológica, o garoto ganhou o apelido de Xamã.
Xamã se tornou surdo ainda na infância, depois de contrair uma doença. O fato provocou grande consternação na família, ainda mais porque o garoto sempre nutriu o sonho de se tornar médico, como o pai. Contudo, Robert J. sempre descartou essa possibilidade, dizendo ao filho que ele não poderia ingressar na medicina por não conseguir escutar.
Os Cole tinham como principais vizinhos em Holden´s Crossing os Geiger, uma família judia. Jason Maxwell e Lilian Geiger eram os melhores amigos de Robert Judson e Sarah Cole. As diferenças religiosas (Robert J. era ateu e Sarah era protestante) não impediram que os clãs se tornassem muito unidos, quase como uma só família. Naturalmente, os filhos dos Cole e dos Geiger se tornaram muito próximos. No caso de Xamã, o garoto se tornou muitíssimo amigo de Rachel, a filha mais velha de Jason e Lilian e três anos mais velha do que Robert Jefferson. Foi a menina que ajudou o amigo surdo a desenvolver a fala, mesmo sem escutar sua voz.
Ao ler os diários do pai, Xamã pôde compreender muitas das particularidades e dos segredos de sua família e dos moradores do seu povoado natal. Grande parte dos dramas de Robert J. que não foram solucionados até então passaram, com sua morte, para o filho. Assim, Xamã não apenas herdou a profissão paterna como algumas intrigas perigosas do passado. Se o cenário já era bem complicado, ele se tornou insustentável com a eclosão da Guerra Civil Norte-Americana, que jogou estados sulistas contra os nortistas. É nessa situação difícil que Robert Jefferson Cole encara o luto e tenta resolver antigas pendências suas e de seus familiares.
“Xamã” é um livro volumoso, com 488 páginas. Ele está dividido em 6 partes e em 74 capítulos. Precisei do final de semana inteiro para concluir sua leitura. Foram dois dias de atividades: iniciei no sábado de manhã e concluí somente no domingo à noite. Se “O Físico” é uma obra mais grandiosa e impactante, essa segunda parte da “Trilogia da Família Cole” apresenta uma narrativa mais bem amarrada e verossímil. O interessante é que o leitor não precisa conhecer o primeiro volume da série para ler e entender o segundo título. As histórias são independentes. Mesmo assim, acredito que a experiência de leitura é mais rica se você tiver lido o primeiro livro da trilogia (porém, repito: não é necessário qualquer conhecimento prévio!).
Apesar de ter muitas semelhanças com “O Físico” (aventuras ao estilo road story, romances históricos de formação do herói, desafios dos protagonistas em se estabelecer na medicina, panoramas históricos da prática médica, contextos políticos da trama, personagens com nomes parecidos e com os mesmos dons, narrativas extremamente violentas, narrações em terceira pessoa, paixões atrapalhadas por preconceitos religiosos, problemas de foco narrativo...) , “Xamã” se diferencia do seu antecessor principalmente pelo cenário (Estados Unidos versus Europa/Oriente Médio), pela época retratada (século XIX versus século XI), pelo tipo de conflito (intolerância étnica versus intolerância religiosa) e pela quantidade de protagonistas (dois versus um). Mesmo com essas sutis diferenças, o leitor não escapa de uma sensação de déjà vu.
Por tratar essencialmente de conflitos étnicos (europeus versus indígenas, brancos versus negros e norte-americanos versus estrangeiros), os conflitos religiosos, uma das principais marcas da literatura de Noah Gordon, acaba ficando em segundo plano em “Xamã” (mas ele não desaparece totalmente). Apesar de surgir levemente ao longo de todo o texto, as diferenças de crenças só serão um problema realmente a ser superado na parte final do romance, quando o relacionamento entre Robert Jefferson Cole e Rachel Geiger se intensificar (ele é cristão e ela judia). Essa mudança é bem-vinda na narrativa pois os Estados Unidos sempre foram uma nação, principalmente no século XIX, período em que a trama se desenrola, com muito mais problemas de ordem racial, étnica e xenofóbica do que religiosa (na verdade, a última é apenas uma consequência das anteriores).
Outra solução magistral de Noah Gordon foi ter colocado dois personagens principais em “Xamã”: algo que deu muita agilidade e contundência ao romance. Robert Jefferson e Robert Judson Cole dividem o protagonismo desta trama. Eles se revezam no primeiro plano dramático, sem que isso configure qualquer problema de natureza narrativa. A principal razão para isso foi o recurso utilizado pelo autor: o filho lê os diários deixados pelo pai. Trata-se de um expediente aparentemente simples, mas que teve ótimo resultado.
Mais uma vez, Noah Gordon impressiona seus leitores com a reconstituição histórica de sua narrativa. O panorama do século XIX foi minunciosamente refeito e seu quadro é simplesmente genial. Na certa, o autor teve um extenso trabalho de pesquisa documental e biográfica. A sensação é que os fatos retratados no livro realmente aconteceram de verdade (essa sensação é maior aqui do que em “O Físico”). A mistura de personagens reais e fictícias ajuda a criar essa impressão. Da perspectiva de recriação histórica, “Xamã” é uma obra-prima e merece nossos rasgados elogios! Destaque para as particularidades da cultura indígena (inclusive, os nativos do continente americano possuem um esporte que lembra muito o futebol americano), para as práticas médicas do século retrasado, os detalhes da Guerra Civil Norte-americana e os nuances da política da América do Norte nos anos de 1800. Incrível!
Por falar em política, acredite se quiser, o século XIX foi um período de extrema polarização ideológica nos Estados Unidos, com crescimento do espírito conservador. O radicalismo de direita era até mais forte do que agora - Donald Trump seria uma figurinha light perto de alguns indivíduos daquela época. Essa questão pode ser vislumbrada na relação pouco saudável com os indígenas, com os negros, com os imigrantes europeus e até mesmo com as mulheres. Os conservadores queriam dizimar todos os adversários. A ascensão de um terceiro partido, o Partido Americano, no cenário nacional, sempre polarizado entre Democratas e Republicanos, mostrava que a extrema direita já atuava fortemente naquele país há 150 anos. É interessante notar isso, além de ser extremamente assustador.
Gostei também que as passagens inverossímeis diminuíram sensivelmente em relação ao título inicial desta série literária. Note que quando digo diminuíram, isso não quer dizer que elas acabaram... Não à toa, esse foi o grande defeito de “O Físico”. Neste sentido, a única grande escorregada de Noah Gordon em “Xamã” (excetuando-se a questão do foco narrativo, um problema geral da literatura deste autor e não apenas deste título específico), foi a descrição dos diários de Robert Judson Cole em terceira pessoa. Onde já se viu os relatos pessoais de alguém não estarem na primeira pessoa, hein?! Gordon se mostra um autor, até aqui, preso às narrativas em terceira pessoa, mesmo quando suas histórias pedem relatos na primeira pessoa.
Sobre os vários erros de foco narrativo, nem quero comentá-los mais. Quem estiver acompanhando minhas análises sobre os romances de Gordon notará que este problema se repetiu nos quatro livros analisados até agora no Desafio Literário deste mês: “O Rabino” (Rocco), “O Diamante de Jerusalém” (Rocco), “O Físico” e “Xamã”. Em “Xamã”, essa questão se torna mais grave pelo fato de termos dois protagonistas. Mesmo assim, o narrador insiste em se deslocar deles e grudar em figuras secundárias da trama, algo que não tem sentido lógico nenhum. Isso se torna mais grave quando analisamos os diários do pai de Xamã. Há coisas ali que Robert Judson Cole jamais poderia saber (simplesmente porque ele não estava em cena!). Juro que até agora não entendi o sentido do olhar dos narradores dos livros do norte-americano.
De maneira geral, “Xamã” é um ótimo romance. Não seria surpresa encontrar leitores que preferem este livro ao primeiro da “Trilogia da Família Cole”. Entretanto, ainda fico com o primeiro título da série. Essa minha escolha é, confesso, mais sentimental do que racional. Afinal, por uma visão exclusivamente técnica, “Xamã” é uma narrativa superior a “O Físico”.
Ainda nesta semana, retornarei ao Bonas Histórias para analisar mais um livro do Desafio Literário de junho. A próxima obra de Noah Gordon que estudaremos será "O Último Judeu" (Rocco), título publicado em 2000. Este é o penúltimo romance adulto lançado pelo autor norte-americano. O post sobre “O Último Judeu” estará disponível no blog no próximo sábado, dia 22. Até lá!
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