Estamos na reta final do Desafio Literário de junho. Até aqui, foram realizadas as leituras críticas de quatro livros de Noah Gordon de diferentes décadas: "O Rabino" (Rocco), lançado nos anos 1960, "O Diamante de Jerusalém" (Rocco), na década de 1970, "O Físico" (Rocco), nos anos 1980, e "Xamã" (Rocco), na década de 1990. Hoje, vamos analisar o quinto trabalho ficcional do escritor norte-americano, o primeiro publicado no século XXI. “O Último Judeu” (Rocco) é um romance histórico ambientado na Espanha durante a virada do século XV para o XVI. Neste drama, um jovem judeu precisa encarar os horrores da Inquisição espanhola para continuar professando sua fé. Para isso, ele precisará realizar uma jornada arriscada e solitária pela Península Ibérica, em uma aventura em que a sobrevivência é o objetivo principal.
Penúltimo livro adulto publicado por Noah Gordon, “O Último Judeu” chegou às livrarias em 2000, quando seu autor tinha 74 anos. Trata-se do sétimo romance do norte-americano. Esta obra tornou-se um best-seller quase que imediatamente após seu lançamento. Não à toa, ela figurou entre as dez mais vendidas daquele ano na Europa. Este título de Gordon também conquistou alguns prêmios literários no cenário internacional, como o Que Leer Prize, na Espanha, na categoria Melhor Livro do Ano de Autor Estrangeiro, e o Boccaccio Literary Prize, na Itália, como Melhor Romance Histórico daquela temporada. Nos Estados Unidos, “O Último Judeu” foi vice-campeão no Book of Literary Merit Award do Boston Authors Club. Ou seja, mais uma vez, o escritor norte-americano conseguia agradar tanto o público quanto a crítica literária.
Com 382 páginas e dividida em sete parte e em 46 capítulos, a trama de “O Último Judeu” começa em 23 de agosto de 1489. Na cidade de Toledo, em Castela, vive a família Toledano. O patriarca, Helkias, é um renomado ourives judeu. Viúvo, ele cuida de três filhos homens: Meir, Yonah e Eleazar. As tragédias que a família precisará enfrentar começam com o assassinato de Meir, o primogênito. O adolescente de 15 anos é assaltado e violentado quando fazia a entrega de um relicário produzido pelo pai. A joia era uma encomenda do Mosteiro da Assunção, que queria uma peça luxuosa para guardar uma relíquia de Santa Ana, avó materna de Jesus Cristo. O crime não é solucionado, apesar das suspeitas recaírem sobre alguns membros da Igreja Católica da região e envolverem integrantes da nobreza local.
Três anos mais tarde, os Toledano e todos os judeus da Espanha precisam encarar a intensificação do antissemitismo. A religião judaica é definitivamente proibida pelos reis espanhóis e seus praticantes precisam escolher: ou aceitam se cristianizar ou devem deixar o mais rápido possível o reino. Helkias Toledano prefere a segunda opção. Contudo, antes de viajar com Yonah e Eleazar para a Europa Central, o ourives precisa receber o pagamento de antigos trabalhos feitos. Só assim, terá grana para efetuar a longa viagem pelo continente e, principalmente, conseguirá estabelecer uma nova vida quando chegar ao destino. Do valor devido, a maior parte é do conde Fernán Vasca, um dos mais cruéis habitantes de Toledo. Sabendo da situação delicada do judeu, o nobre posterga o pagamento ao máximo. Na verdade, Vasca espera que Helkias se mude sem receber o que lhe é devido.
De tanto esperar, Helkias Toledano perde o prazo de fuga e torna-se alvo fácil do ódio dos cristãos da cidade. Em uma noite, sua casa é invadida e ele é brutalmente assassinado. Por sorte, Yonah e Eleazar, então com quinze e sete anos, respectivamente, conseguem fugir. Os irmãos órfãos acabam separados um do outro e cada um segue por um caminho diferente. Diante de cenário tão arriscado, Yonah Toledano entende que precisa deixar Toledo sozinho e o mais rápido possível. Além disso, deve ocultar sua fé custe o que custar. Montado em um burrinho chamado ironicamente de Moisés, o rapaz inicia uma longa jornada pela Espanha. Nessa saga, ele mudará de tempo em tempo seu nome: Tomás Martín e Ramón Callicó serão seus principais disfarces. E para ganhar dinheiro, Yonah precisará trabalhar como peão em Ciudad Real, como pedreiro em Salamanca, como pastor de ovelhas em Granada, como marinheiro em Málaga, como aprendiz de armeiro em Gibraltar e como auxiliar médico em Saragoça.
Yonah Toledano não aceita se cristianizar. Dessa maneira, ele se sente como o último judeu da Espanha (daí o título da obra de Gordon). Mesmo fugindo da Inquisição e ocultando sua verdadeira fé e sua real identidade, o protagonista mantém o sonho de encontrar o irmão mais novo. Para completar, o protagonista não esquece de se vingar dos assassinos do irmão mais velho e do pai. A narrativa se estende até 1509, quando Yonah já deixou há muito tempo de ser um garotinho indefeso. Homem feito, ele irá testar sua capacidade de se camuflar e de se transmutar em várias profissões por onde passa.
“O Último Judeu” é um livro muitíssimo bom, principalmente para quem ainda não leu os demais trabalhos ficcionais de Noah Gordon. Sua narrativa é eletrizante, seu drama é comovente e sua reconstrução histórica é impecável. Contudo, para quem já leu alguns livros de Gordon, há uma forte sensação de déjà vu. Não é errado ver “O Último Judeu” como uma mistura entre “O Rabino” (médico judeu com conflitos de ordem religiosa), “O Diamante de Jerusalém” (aventura sobre relíquias bíblicas e mistério policial) e “O Físico” e “Xamã” (saga de um protagonista que precisa peregrinar ao longo de muitos anos por terras perigosas).
Este é o primeiro romance de Noah Gordon ambientado na Espanha – “La Bodega” (Rocco), publicado sete anos mais tarde, também tem como cenário o país ibérico. Como é característica do estilo literário deste autor, essa aventura é uma típica road story. Yonah Toledano/Tomás Martín/Ramón Callicó viaja por todo o território espanhol por aproximadamente 20 anos. O detalhamento da jornada é tão preciso que Noah Gordon, logo no início do livro, apresenta o mapa da Península Ibérica na virada do século XV para o XVI com a trajetória realizada pela personagem. Confesso que consultei o mapa algumas vezes durante a leitura para entender os caminhos feitos pelo herói da trama.
Mais uma vez, temos um livro de Gordon ancorado no conflito religioso a partir da perspectiva dos judeus - algo deixado de lado na “Trilogia da Família Cole”. Nesse sentido, o escritor acertou no alvo ao colocar como contexto da sua trama o auge da Inquisição espanhola, um dos períodos mais tristes da história para os judeus (e olha que esse povo teve uma overdose de períodos conturbados!). Como consequência, temos nesta trama todo o tipo de violência possível e imaginável. Há cenas realmente fortes, que exigem estômago forte do leitor.
A ambientação histórica deste romance é incrível. Noah Gordon é um dos autores contemporâneos mais competentes em produzir aventuras históricas. Ele percorre os tempos bíblicos, o período medieval, a época moderna e os dias contemporâneos com enorme tranquilidade, como se esse recurso literário fosse algo simples. Na verdade, além do talento natural para a escrita, nota-se uma profunda pesquisa documental e biográfica para a realização de narrativas deste tipo.
Algo que gostei muito em “O Último Judeu” foi a velocidade da sua narrativa. Esse é o romance mais veloz de Gordon que li até agora. Se antes, ele reservava páginas e páginas e capítulos e capítulos para contar o drama de seus protagonistas e, o que é pior, para descrever as histórias de figuras secundárias, aqui ele é bem mais enxuto. Diria até mais direto, deixando a trama mais precisa e gostosa para o leitor. Na certa, Noah Gordon aprimorou seu poder de síntese e passou a dar mais atenção para a etapa de edição (em que corte geralmente são bem-vindos).
“O Último Judeu” é o tradicional romance de formação do herói. Assistimos à construção da personalidade do protagonista desde a sua infância até a vida adulta. Para tornar a trama mais saborosa, há a inserção de ótimos elementos de mistério (quem é o assassino e quem é o culpado pelo roubo?), de drama (conseguirá a personagem principal se vingar dos algozes de sua família?) e de superação (busca obstinada pelo irmão menor que desapareceu). Como uma história fidedigna, nem todos os desfechos serão positivos.
O principal problema de “O Último Judeu”, como acontece sempre nas obras de Gordon, é o foco narrativo. Este romance é até pior nesse sentido. As duas primeiras partes do livro são aulas de tudo o que não se deve fazer em relação ao foco do narrador em uma obra ficcional. A história, narrada em terceira pessoa, começa acompanhando o médico Bernardo Espina. Logo em seguida, em um capítulo mais à frente, o narrador abandona o doutor e cola no prior Sebastian Alvarez. Não demora muito e essa prática se repete mais uma vez. Passamos, então, a acompanhar os passos de Helkias Toledano - Espina e Alvarez são totalmente escanteados pelo narrador. Aí o leitor pensa: achamos, enfim, o protagonista. Porém, com a morte de Helkias, passamos a acompanhar seu filho, Yonah. Não é preciso conhecer muito de foco narrativo para notar que o início deste romance é no mínimo confuso, para não dizer que ele é extremamente equivocado.
Como já disse, se você não conhece muito da literatura de Noah Gordon, a experiência de leitura de “O Último Judeu” será mais prazerosa do que se você já tiver lido alguma das obras do escritor. Querendo ou não, as situações, as cenas, os conflitos e as personagens acabam se repetindo muito. O melhor exemplo disso está na parte final, quando Ramón Callicó (Yonah Toledano) se torna médico. O leitor mais experiente dirá: outra vez um médico! Assim não dá. Excluindo a sensação de déjà vu e os problemas de foco narrativo, “O Último Judeu” é um romance brilhante que mostra os efeitos nefastos dos conflitos religiosos na história da Europa.
Para encerrarmos a parte de análises individuais do Desafio Literário deste mês, trarei na próxima quarta-feira, dia 26, um post sobre a última publicação de Gordon. "La Bodega" (Rocco) é o romance histórico ambientado na Espanha do século XIX. A obra foi lançada em 2007. Somente a partir desta leitura, poderemos encerrar o estudo do estilo literário de Noah Gordon, o principal objetivo do Bonas Histórias em junho. Até lá!
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