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Bonas Histórias

O Bonas Histórias é o blog de literatura, cultura, arte e entretenimento criado por Ricardo Bonacorci em 2014. Com um conteúdo multicultural (literatura, cinema, música, dança, teatro, exposição, pintura e gastronomia), o Blog Bonas Histórias analisa as boas histórias contadas no Brasil e no mundo.

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Ricardo Bonacorci

Nascido na cidade de São Paulo, Ricardo Bonacorci tem 43 anos, mora em Buenos Aires e trabalha como publicitário, produtor de conteúdo, crítico literário e cultural, editor, escritor e pesquisador acadêmico. Ricardo é especialista em Administração de Empresas, pós-graduado em Gestão da Inovação, bacharel em Comunicação Social, licenciando em Letras-Português e pós-graduando em Formação de Escritores.  

Foto do escritorRicardo Bonacorci

Músicas: Drama de Angélica – O sucesso tétrico de Alvarenga e M. G. Barreto


Drama de Angélica - Alvarenga e M. G. Barreto

Responda rapidamente: qual é a música brasileira que termina todos os seus versos em proparoxítona? E qual compositor ficou famoso por inserir o humor escrachado e a linguagem coloquial em suas canções? Se suas respostas foram, respectivamente, “Construção”, célebre criação de Chico Buarque, e Adoniran Barbosa, imortalizado na voz dos Demônios da Garoa, saiba que você foi pelo caminho mais fácil ou pecou pelo esquecimento. A primeira hipótese é até aceitável, mas a segunda não. Se há algo imperdoável, ao menos aqui no Bonas Histórias, é a falta de memória cultural.

Há exatos 70 anos, Alvarenga & Ranchinho, uma popular dupla sertaneja criada em 1929, lançava “Drama de Angélica”. Aposto que você não se lembrou desta importante canção na hora de responder a minha pergunta, né? Considerada por muitos especialistas e críticos musicais como uma das mais notáveis criações da nossa história, esta composição é fruto de uma parceria entre Murilo Alvarenga e G. M. Barreto. “Drama de Angélica” inovou ao inserir alguns elementos até então pouco usuais nas canções populares. Por isso, ela é vista até hoje como uma das mais engenhosas e criativas criações sertanejas de todos os tempos.

Alvarenga & Ranchinho é a dupla sertaneja formada por Murilo Alvarenga, mineiro nascido em maio de 1911, e Diésis dos Anjos Gaia, paulista nascido um ano mais tarde. Os dois permaneceram juntos até 1965, quando Diésis abandonou a parceria. Ele estava incomodado com o acentuado declínio na carreira da dupla. Naquele momento, eles não conseguiam mais emplacar grandes sucessos nem eram tocados nas principais rádios do país. Suas apresentações aconteciam exclusivamente em pequenas cidades do interior. A partir da saída de Diésis, Alvarenga & Ranchinho continuou existindo. Outros músicos (primeiro com Delamare de Abreu, irmão de Alvarenga, e depois com Homero de Souza Campos) passaram a exercer o papel de Ranchinho. Somente com a morte de Alvarenga em 1978, a dupla se encerrou definitivamente.

A popularidade de Alvarenga & Ranchinho vinha desde a década de 1930. A dupla interpretava caipiras matreiros do interior e narravam, em suas canções, a realidade e o universo do Brasil rural com muito bom humor. As especialidades deles eram as modas de viola, os desafios e as sátiras. O divertimento da plateia era garantido. Esse estilo permaneceria intacto até a década de 1970, apesar do declínio na popularidade e nos shows. Alvarenga e Ranchinho são também pioneiros por serem a primeira dupla sertaneja do país e por serem os primeiros músicos a estrelarem um filme no cinema. Nada mal, hein?!

Alvarenga & Ranchinho

Em 1949, Murilo Alvarenga compôs ao lado de M.G. Barreto “Drama de Angélica”, o que seria um dos maiores sucessos de Alvarenga & Ranchinho. A música está dividida em três atos. No primeiro, o narrador/eu-lírico explica o tipo de composição que fará e apresenta Angélica, a amada protagonista que sofre de anemia. No segundo ato, Angélica fica doente e, assim, é levada primeiramente ao médico e, na sequência, ao farmacêutico. A última visita se torna desastrosa por causa das trapalhadas do farmacêutico. Por fim, no terceiro ato, assistimos à dolorida morte da protagonista e suas consequências mais imediatas para aqueles que permaneceram vivos. Veja, a seguir, a letra completa desta canção:

Drama de Angélica (1949) - Murilo Alvarenga e M.G. Barreto

Ouve meu cântico

quase sem ritmo

Que a voz de um tísico

magro esquelético

Poesia épica

em forma esdrúxula

Feita sem métrica

com rima rápida

Amei Angélica

mulher anêmica

De cores pálidas

e gestos tímidos

Era maligna

e tinha ímpetos

De fazer cócegas

no meu esôfago

Em noite frígida

fomos ao Lírico

Ouvir o músico

pianista célebre

Soprava o zéfiro

ventinho úmido

Então Angélica

ficou asmática

Fomos ao médico

de muita clínica

Com muita prática

e preço módico

Depois do inquérito

descobre o clínico

O mal atávico

mal sifilítico

Mandou-me célere

comprar noz vômica

E ácido cítrico

para o seu fígado

O farmacêutico

mocinho estúpido

Errou na fórmula

fez despropósito

Não tendo escrúpulo

deu-me sem rótulo

Ácido fênico

e ácido prússico

Corri mui lépido

mais de um quilômetro

Num bonde elétrico

de força múltipla

O dia cálido

deixou-me tépido

Achei Angélica

já toda trêmula

A terapêutica

dose alopática

Lhe dei em xícara

de ferro ágate

Tomou num folego

triste e bucólica

Esta estrambólica

droga fatídica

Caiu no esôfago

deixou-a lívida

Dando-lhe cólica

e morte trágica

O pai de Angélica

chefe do tráfego

Homem carnívoro

ficou perplexo

Por ser estrábico

usava óculos

Um vidro côncavo

o outro convexo

Morreu Angélica

de um modo lúgubre

Moléstia crônica

levou-a ao túmulo

Foi feita a autópsia

todos os médicos

Foram unânimes

no diagnóstico

Fiz-lhe um sarcófago

assaz artístico

Todo de mármore

da cor do ébano

E sobre o túmulo

uma estatística

Coisa metódica

como Os Lusíadas

E numa lápide

paralelepípedo

Pus esse dístico

terno e simbólico

"Cá jaz Angélica

Moça hiperbólica

Beleza Helênica

Morreu de cólica!"

Ouça, a seguir, uma interpretação histórica de “Drama de Angélica” na voz de Alvarenga & Ranchinho. Esse vídeo é de um programa especial de televisão de 1973 sobre a carreira da dupla:

Repare que todos os versos do “Drama de Angélica”, canção composta 20 anos antes de “Construção”, terminam em proparoxítona. Curiosamente, uma ou outra palavra (maligna, perplexo e ritmo) nem são proparoxítonas de fato, mas na dinâmica da oralidade do matuto da zona rural elas viram. Algo que não acontece na composição de Chico Buarque, em que todas as proparoxítonas têm de fato a antepenúltima sílaba tônica.

Outro aspecto que chama a atenção em “Drama de Angélica” é a harmonia na sua estrutura poética. São 12 conjuntos de textos e cada um deles tem oito versos. Além disso, a maneira descritiva da apresentação da narrativa é sublime. A história vai se desdobrando com tanta naturalidade que até parece fácil compor uma música. Entretanto, não acredite nessa facilidade toda. O que temos aqui é um magnífico drama com tons épicos que deve ter dado um trabalho danado para ser produzido.

“Drama de Angélica” é uma das músicas mais tristes da nossa cultura popular. Talvez ela rivalize com “Iracema”, canção de Adoniran Barbosa composta sete anos mais tarde, no posto de ícone tétrico. Curiosamente, tanto a criação de Murilo Alvarenga e M. B. Barreto quanto a de Adoniran Barbosa possuem alguns elementos engraçadinhos (de evidente humor negro). Se a imperícia ao atravessar a rua levou a morte da protagonista da canção dos Demônios da Garoa, um erro farmacêutico foi o responsável por decretar o falecimento da protagonista da música de Alvarenga & Ranchinho. Triste, muito triste!

Outra canção super popular criada por Alvarenga & Ranchinho é “Êh São Paulo”. Sim, aquela dos versos pegajosos de “Êh, êh, êh São Paulo/Êh São Paulo/São Paulo da garoa/São Paulo que terra boa”. Porém, isso é uma história para outro post da coluna Músicas do Bonas Histórias.

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