Responda rapidamente: qual é a música brasileira que termina todos os seus versos em proparoxítona? E qual compositor ficou famoso por inserir o humor escrachado e a linguagem coloquial em suas canções? Se suas respostas foram, respectivamente, “Construção”, célebre criação de Chico Buarque, e Adoniran Barbosa, imortalizado na voz dos Demônios da Garoa, saiba que você foi pelo caminho mais fácil ou pecou pelo esquecimento. A primeira hipótese é até aceitável, mas a segunda não. Se há algo imperdoável, ao menos aqui no Bonas Histórias, é a falta de memória cultural.
Há exatos 70 anos, Alvarenga & Ranchinho, uma popular dupla sertaneja criada em 1929, lançava “Drama de Angélica”. Aposto que você não se lembrou desta importante canção na hora de responder a minha pergunta, né? Considerada por muitos especialistas e críticos musicais como uma das mais notáveis criações da nossa história, esta composição é fruto de uma parceria entre Murilo Alvarenga e G. M. Barreto. “Drama de Angélica” inovou ao inserir alguns elementos até então pouco usuais nas canções populares. Por isso, ela é vista até hoje como uma das mais engenhosas e criativas criações sertanejas de todos os tempos.
Alvarenga & Ranchinho é a dupla sertaneja formada por Murilo Alvarenga, mineiro nascido em maio de 1911, e Diésis dos Anjos Gaia, paulista nascido um ano mais tarde. Os dois permaneceram juntos até 1965, quando Diésis abandonou a parceria. Ele estava incomodado com o acentuado declínio na carreira da dupla. Naquele momento, eles não conseguiam mais emplacar grandes sucessos nem eram tocados nas principais rádios do país. Suas apresentações aconteciam exclusivamente em pequenas cidades do interior. A partir da saída de Diésis, Alvarenga & Ranchinho continuou existindo. Outros músicos (primeiro com Delamare de Abreu, irmão de Alvarenga, e depois com Homero de Souza Campos) passaram a exercer o papel de Ranchinho. Somente com a morte de Alvarenga em 1978, a dupla se encerrou definitivamente.
A popularidade de Alvarenga & Ranchinho vinha desde a década de 1930. A dupla interpretava caipiras matreiros do interior e narravam, em suas canções, a realidade e o universo do Brasil rural com muito bom humor. As especialidades deles eram as modas de viola, os desafios e as sátiras. O divertimento da plateia era garantido. Esse estilo permaneceria intacto até a década de 1970, apesar do declínio na popularidade e nos shows. Alvarenga e Ranchinho são também pioneiros por serem a primeira dupla sertaneja do país e por serem os primeiros músicos a estrelarem um filme no cinema. Nada mal, hein?!
Em 1949, Murilo Alvarenga compôs ao lado de M.G. Barreto “Drama de Angélica”, o que seria um dos maiores sucessos de Alvarenga & Ranchinho. A música está dividida em três atos. No primeiro, o narrador/eu-lírico explica o tipo de composição que fará e apresenta Angélica, a amada protagonista que sofre de anemia. No segundo ato, Angélica fica doente e, assim, é levada primeiramente ao médico e, na sequência, ao farmacêutico. A última visita se torna desastrosa por causa das trapalhadas do farmacêutico. Por fim, no terceiro ato, assistimos à dolorida morte da protagonista e suas consequências mais imediatas para aqueles que permaneceram vivos. Veja, a seguir, a letra completa desta canção:
Drama de Angélica (1949) - Murilo Alvarenga e M.G. Barreto
Ouve meu cântico
quase sem ritmo
Que a voz de um tísico
magro esquelético
Poesia épica
em forma esdrúxula
Feita sem métrica
com rima rápida
Amei Angélica
mulher anêmica
De cores pálidas
e gestos tímidos
Era maligna
e tinha ímpetos
De fazer cócegas
no meu esôfago
Em noite frígida
fomos ao Lírico
Ouvir o músico
pianista célebre
Soprava o zéfiro
ventinho úmido
Então Angélica
ficou asmática
Fomos ao médico
de muita clínica
Com muita prática
e preço módico
Depois do inquérito
descobre o clínico
O mal atávico
mal sifilítico
Mandou-me célere
comprar noz vômica
E ácido cítrico
para o seu fígado
O farmacêutico
mocinho estúpido
Errou na fórmula
fez despropósito
Não tendo escrúpulo
deu-me sem rótulo
Ácido fênico
e ácido prússico
Corri mui lépido
mais de um quilômetro
Num bonde elétrico
de força múltipla
O dia cálido
deixou-me tépido
Achei Angélica
já toda trêmula
A terapêutica
dose alopática
Lhe dei em xícara
de ferro ágate
Tomou num folego
triste e bucólica
Esta estrambólica
droga fatídica
Caiu no esôfago
deixou-a lívida
Dando-lhe cólica
e morte trágica
O pai de Angélica
chefe do tráfego
Homem carnívoro
ficou perplexo
Por ser estrábico
usava óculos
Um vidro côncavo
o outro convexo
Morreu Angélica
de um modo lúgubre
Moléstia crônica
levou-a ao túmulo
Foi feita a autópsia
todos os médicos
Foram unânimes
no diagnóstico
Fiz-lhe um sarcófago
assaz artístico
Todo de mármore
da cor do ébano
E sobre o túmulo
uma estatística
Coisa metódica
como Os Lusíadas
E numa lápide
paralelepípedo
Pus esse dístico
terno e simbólico
"Cá jaz Angélica
Moça hiperbólica
Beleza Helênica
Morreu de cólica!"
Ouça, a seguir, uma interpretação histórica de “Drama de Angélica” na voz de Alvarenga & Ranchinho. Esse vídeo é de um programa especial de televisão de 1973 sobre a carreira da dupla:
Repare que todos os versos do “Drama de Angélica”, canção composta 20 anos antes de “Construção”, terminam em proparoxítona. Curiosamente, uma ou outra palavra (maligna, perplexo e ritmo) nem são proparoxítonas de fato, mas na dinâmica da oralidade do matuto da zona rural elas viram. Algo que não acontece na composição de Chico Buarque, em que todas as proparoxítonas têm de fato a antepenúltima sílaba tônica.
Outro aspecto que chama a atenção em “Drama de Angélica” é a harmonia na sua estrutura poética. São 12 conjuntos de textos e cada um deles tem oito versos. Além disso, a maneira descritiva da apresentação da narrativa é sublime. A história vai se desdobrando com tanta naturalidade que até parece fácil compor uma música. Entretanto, não acredite nessa facilidade toda. O que temos aqui é um magnífico drama com tons épicos que deve ter dado um trabalho danado para ser produzido.
“Drama de Angélica” é uma das músicas mais tristes da nossa cultura popular. Talvez ela rivalize com “Iracema”, canção de Adoniran Barbosa composta sete anos mais tarde, no posto de ícone tétrico. Curiosamente, tanto a criação de Murilo Alvarenga e M. B. Barreto quanto a de Adoniran Barbosa possuem alguns elementos engraçadinhos (de evidente humor negro). Se a imperícia ao atravessar a rua levou a morte da protagonista da canção dos Demônios da Garoa, um erro farmacêutico foi o responsável por decretar o falecimento da protagonista da música de Alvarenga & Ranchinho. Triste, muito triste!
Outra canção super popular criada por Alvarenga & Ranchinho é “Êh São Paulo”. Sim, aquela dos versos pegajosos de “Êh, êh, êh São Paulo/Êh São Paulo/São Paulo da garoa/São Paulo que terra boa”. Porém, isso é uma história para outro post da coluna Músicas do Bonas Histórias.
Que tal este post e o conteúdo do Blog Bonas Histórias? Seja o(a) primeiro(a) a deixar um comentário aqui. Para acessar os demais posts sobre o universo musical, clique em Músicas. E aproveite para curtir a página do Bonas Histórias no Facebook.