O ano de 1930 foi extremamente farto para a música popular brasileira. Três obras-primas nacionais nasceram coincidentemente nesse período: “Com Que Roupa?”, a criação mais popular de Noel Rosa, “O Samba da Minha Terra”, um dos tantos clássicos de Dorival Caymmi, e “No Rancho Fundo”, o primeiro fruto da parceria genial entre Ary Barroso e Lamartine Babo. A ideia do post de hoje da coluna Músicas é tratar exclusivamente de “No Rancho Fundo”, que, ao lado de suas contemporâneas, comemora, em 2020, seu aniversário de nove décadas. Prometo voltar ao Bonas Histórias ainda neste ano para falar de “Com Que Roupa?” e de “O Samba da Minha Terra”.
A história da criação de “No Rancho Fundo” é, no mínimo, curiosa. No início dos anos 1930, Ary Barroso, um mineiro de 26 anos que morava no Rio de Janeiro há quase uma década e que tinha se formado recentemente em Direito, queria trabalhar com a música. Assim, nos últimos dois anos, ele vendia suas composições principalmente para os espetáculos de revista da então Capital Federal. Já conhecido nesse meio, o jovem compositor conseguiu, em 1930, um contrato fixo com o Teatro Recreio. Nesse mesmo ano, Barroso também emplacou seu primeiro sucesso nas rádios, “Vamos Deixar de Intimidades”, música gravada por Mário Reis em 1929.
Responsável por compor a melodia de “É do Balacobaco”, espetáculo comandado por José Carlos de Brito Cunha, o J. Carlos, Ary Barroso apresentou uma belíssima trilha sonora para o show no Teatro Recreio. Para completar a música, o próprio J. Carlos criou uma letra que intitulou de “Esse Mulato Ainda Vai Ser Meu – Na Grota Funda”. Dessa forma, estreava, em junho de 1930, o espetáculo “É do Balacobaco” no Rio de Janeiro. Sua principal trilha sonora era “Esse Mulato Ainda Vai Ser Meu – Na Grota Funda” da dupla Ary Barroso e J. Carlos.
Presente nas primeiras sessões do show, o jovem compositor carioca Lamartine Babo, apenas dois meses mais novo do que Ary Barroso, ficou encantado com a música que ouvira no teatro. Porém, ficou também bastante decepcionado com a letra, que julgou grosseira. Assim, ao sair do espetáculo, Lamartine voltou para a casa e passou a noite escrevendo o que julgava ser uma letra compatível à beleza incomum da melodia de Barroso. Com uma pegada melancólica, os versos do carioca narravam a solidão e a tristeza de um velho camponês que morava afastado da civilização, no alto de uma montanha.
No dia seguinte, aproveitando-se que tinha uma apresentação no programa da Rádio Educadora, Lamartine Babo cantou a nova versão da canção que criara algumas horas antes. Como companhia, ele teve o Bando de Tangarás, conjunto musical que tinha nada mais nada menos do que Noel Rosa e Braguinha em sua formação. Dá para acreditar nessa união! Vale a pena ressaltar que Lamartine não pediu autorização para Ary Barroso nem para J. Carlos para executar a canção ou mesmo para alterar sua letra.
Imediatamente, a nova música foi aprovada com louvor por todos na rádio. Assim, nascia “No Rancho Fundo”, o novo nome da composição, em substituição aos versos de “Esse Mulato Ainda Vai Ser Meu – Na Grota Funda”. Ao saber do ocorrido, J. Carlos ficou enfurecido. Magoado, ele chegou ao ponto de cortar relações para sempre com Ary Barroso, como se o mineiro tivesse culpa. Se Barroso perdia um parceiro, ganhava outro. No “Rancho Fundo” representou o início de uma frutífera parceria entre Lamartine e Ary. A dupla fez várias músicas, entre elas “Palmeira Triste”, “Na Virada da Montanha” e “Grau Dez”. Nenhuma, contudo, fez tanto sucesso quanto a criação de estreia deles.
“No Rancho Fundo” foi gravado, pela primeira vez, em 1931, por Elisinha Coelho. A cantora gaúcha, que se tornou a principal intérprete das criações de Ary Barroso, atingiu o ápice da carreira justamente cantando essa música. Entretanto, Elisinha não foi a única artista a se enveredar pelo “No Rancho Fundo”. Ao longo dos últimos noventa anos, dezenas e dezenas de músicos de todos os calibres regravaram essa canção. Sílvio Caldas, Isaurinha Garcia, Nelson Gonçalves, Emílio Santiago, Ná Ozetti, César Camargo Mariano, Gal Costa, Renato Teixeira e Ney Matogrosso são os principais intérpretes. Mais recentemente, ela foi regravada por Paula Fernandes, César Menotti & Fabiano, Fábio Jr. e pelos portugueses António Zambujo e Miguel Araújo.
A versão mais popular de “No Rancho Fundo” é a gravação de Chitãozinho & Chororó de 1989. Impossível que você não a conheça! Com a popularidade recente da canção de Ary Barroso e Lamartine Babo nas vozes de Chitãozinho & Chororó, nos últimos trinta anos, “No Rancho Fundo” adquiriu o status de clássico sertanejo (algo inimaginável pelos seus compositores).
Veja, a seguir, a letra dessa obra-prima da música brasileira:
No Rancho Fundo (1930) - Ary Barroso e Lamartine Babo
No rancho fundo
Bem pra lá do fim do mundo
Onde a dor e a saudade
Contam coisas da cidade
No rancho fundo
De olhar triste e profundo
Um moreno canta as mágoas
Tendo os olhos rasos d'água
Pobre moreno
Que de noite no sereno
Espera a lua no terreiro
Tendo um cigarro
Por companheiro
Sem um aceno
Ele pega na viola
E a lua por esmola
Vem pro quintal
Desse moreno
No rancho fundo
Bem pra lá do fim do mundo
Nunca mais houve alegria
Nem de noite, nem de dia
Os arvoredos
Já não contam
Mais segredos
E a última palmeira
Já morreu na cordilheira
Os passarinhos
Hibernaram-se nos ninhos
De tão triste esta tristeza
Enche de trevas a natureza
Tudo por que
Só por causa do moreno
Que era grande,
hoje é pequeno
Pra uma casa de sapê
Se Deus soubesse
Da tristeza lá na serra
Mandaria lá pra cima
Todo o amor que há na terra
Porque o moreno
Vive louco de saudade
Só por causa do veneno
Das mulheres da cidade
Ele que era
O cantor da Primavera
E que fez do rancho fundo
O céu melhor
Que tem no mundo
Se uma flor desabrocha
E o sol queima
A montanha vai gelando
Lembra o cheiro
Da morena
Assista, no vídeo abaixo, a uma interpretação de “No Rancho Fundo” por Chitãozinho & Chororó:
Nem parece que essa criação de Ary Barroso e Lamartine Babo possui nove décadas de vida. Incrível! Além disso, alguém aí notou que sua letra fala de um homem que se isolou da civilização e da cidade grande? Nada mais pós-coronavírus do que isso, hein?
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