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Bonas Histórias

O Bonas Histórias é o blog de literatura, cultura, arte e entretenimento criado por Ricardo Bonacorci em 2014. Com um conteúdo multicultural (literatura, cinema, música, dança, teatro, exposição, pintura e gastronomia), o Blog Bonas Histórias analisa as boas histórias contadas no Brasil e no mundo.

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Ricardo Bonacorci

Nascido na cidade de São Paulo, Ricardo Bonacorci tem 42 anos, mora em Buenos Aires e trabalha como publicitário, produtor de conteúdo, crítico literário e cultural, editor, escritor e pesquisador acadêmico. Ricardo é especialista em Administração de Empresas, pós-graduado em Gestão da Inovação, bacharel em Comunicação Social, licenciando em Letras-Português e pós-graduando em Formação de Escritores.  

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Livros: 14 Contos de Kenzaburo Oe - As narrativas curtas do autor japonês


14 Contos de Kenzaburo Oe - Coletânea de contos

A literatura de Kenzaburo Oe é bem variada. O escritor japonês vencedor do Prêmio Nobel de Literatura de 1994 produziu contos, novelas, romances, crônicas e ensaios. É uma pena que a maior parte desse portfólio artístico não tenha sido traduzida para o português. No Desafio Literário de junho, estamos vendo um pouco dessa multiplicidade narrativa de Oe. Foram analisados no Bonas Histórias, até agora, a novela “A Captura” (Luna), os romances “Uma Questão Pessoal” (Companhia das Letras) e “O Grito Silencioso” (Francisco Alves) e a coleção de crônicas “Jovens de Um Novo Tempo, Despertai!” (Companhia das Letras).


No post de hoje, vamos aprofundar nosso estudo sobre a literatura de Kenzaburo Oe comentando seu principal livro de narrativas curtas. A obra em questão é “14 Contos de Kenzaburo Oe” (Companhia das Letras), minha leitura dessa semana. Este título abrange quase três décadas e meia da produção de pequenas histórias do autor. As tramas desta coletânea de contos foram publicadas originalmente, no Japão, entre 1957 e 1990. Entretanto, quase todas se mantiveram inéditas em português (e na maioria dos idiomas ocidentais) até o lançamento, em 2011, deste livro. Ou seja, “14 Contos de Kenzaburo Oe” joga luz a um importante aspecto da ficção do popular escritor naturalista, até então oculta a quem não era fluente na língua japonesa.


A ideia de reunir, em uma coletânea, os melhores contos de Kenzaburo Oe partiu das editoras estrangeiras, que sentiam falta de apresentar esse tipo de texto aos seus leitores. Invariavelmente, o público fora do Japão tinha acesso principalmente às novelas e aos romances do Nobel, narrativas com maior apelo comercial. Apenas no século XXI, começaram a aparecer traduções das mais famosas narrativas curtas de Oe. Dessa maneira, pudemos conhecer uma parte riquíssima da literatura japonesa contemporânea.


A edição nacional de “14 Contos de Kenzaburo Oe” teve a tradução direta de Leiko Gotoda, uma das principais tradutoras brasileiras do idioma japonês. Foi ela quem justamente selecionou os textos mais relevantes de Oe para integrar essa coleção. Com 456 páginas, este é o livro mais volumoso de Kenzaburo Oe que analisamos no Desafio Literário deste mês.


As quatorze tramas desta obra são: (1) “O Armazém Zoológico” (história publicada pela primeira vez em dezembro de 1957), (2) “Salte Sem Olhar” (junho de 1958), (3) “Os Pássaros” (outubro de 1958), (4) “Em Outro Lugar” (julho de 1959), (5) “Exultação” (novembro de 1959), (6) “A Convivência” (janeiro de 1961), (7) “Seventeen” (janeiro de 1961), (8) “O Homem Sexual” (maio de 1963), (9) “A Semana do Idoso” (junho de 1963), (10) “Aghwii, O Mestre Celeste” (janeiro de 1964), (11) “Em Português Brasileiro” (fevereiro de 1964), (12) “O Nascimento de Uma Nova Izumi Shikibu” (maio de 1984), (13) “Viver em Paz” (abril de 1990) e (14) “A Dor de Uma História” (maio de 1990).

Kenzaburo Oe

Antes da apresentação das narrativas de “14 Contos de Kenzaburo Oe”, temos uma introdução desenvolvida por Arthur Dapieve, jornalista, escritor e crítico cultural carioca. Sinceramente, não sabia que o colunista de O Globo era um apreciador da literatura japonesa nem que era um grande fã do trabalho de Oe. Dapieve contextualiza para o leitor brasileiro a importância de Kenzaburo Oe para a ficção japonesa do século XX e explica a relevância dos contos para o portfólio literário do escritor.


“O Armazém Zoológico”, o primeiro texto do livro, é uma pequena peça teatral. Ambientada no escritório de um armazém portuário, dois funcionários (o zelador e a escriturária) precisam resolver um problema seríssimo: o desaparecimento de uma jiboia gigante. O animal, que fora importado dos Estados Unidos, tinha sido vendido e entregue há poucas horas para o dono de um circo. Porém, o empresário circense retornou alegando que a jiboia fugiu e que agora está à solta pela cidade. Uma tragédia está para acontecer!


Em “Salte Sem Olhar”, a segunda história de “14 Contos de Kenzaburo Oe”, assistimos ao drama de um universitário de 20 anos. Cursando Literatura Francesa na Universidade de Tóquio, o rapaz se vê envolvido em dois triângulos amorosos – primeiramente com Gabriel, um jornalista estrangeiro, e Yoshie, uma prostituta japonesa de meia-idade; e depois com a própria Yoshie e Yuko Tagawa, uma adolescente para quem ele dá aulas particulares de francês.


“Os Pássaros” apresenta o conflito psicológico de um jovem. Aos 20 anos, o rapaz decidiu isolar-se da sociedade para viver recluso no quarto escuro da casa da mãe. Ali, ele tem a companhia sinistra de um bando de pássaros. Certo dia, aparece um psiquiatra que lhe propõe um experimento: sair de casa para ver se as aves são mesmo suas amigas. Se forem, elas irão acompanhá-lo para onde ele for.


O quarto conto da coletânea é “Em Outro Lugar”. Nessa história, um rapaz se hospeda em um hotel com sua amante. Uma vez na intimidade do aposento, ao invés de fazerem sexo, os dois começam a discutir seriamente. A pauta do acalorado debate é o relacionamento que possuem. Enquanto a moça tem vontade de se casar e ter filhos, ele posterga ao máximo a evolução daquela relação. Na cabeça e no coração dele, não há lugar para um relacionamento mais profundo.


Em “Exultação”, um jovem vivencia uma crise de relacionamento com K, sua namorada ninfomaníaca. A moça é uma famosa atriz japonesa. Após presenciar, ao lado do namorado, um acidente fatal de moto na estrada da cidade portuária de Kanzai, em um dia ensolarado e calmo de Verão, K fica intimamente ligada ao amigo do motociclista falecido. A partir daí, ela não desgrudará do novo amigo, deixando o antigo companheiro de lado.

Livro 14 Contos de Kenzaburo Oe

Em outro thriller psicológico (ao melhor estilo de Franz Kafka), “A Convivência” retrata a agonia de um jovem morador de Tóquio que precisa conviver com quatro macacos em seu apartamento. A vida do rapaz se torna um inferno com a presença dos bichanos. Envergonhado com essa situação inusitada, o protagonista vê sua trajetória profissional e sua vida sentimental degringolarem.


“Seventeen” é a sétima narrativa de “14 Contos de Kenzaburo Oe”. Nele, um adolescente de Tóquio completa 17 anos diante de vários dilemas. Solitário, feio, tímido e virgem, o protagonista dessa história se vê diante da polarização política de seu país no Pós-Guerra. Apesar de possuir uma visão esquerdista, ele se alista a um partido político de extrema-direita.


“O Homem Sexual” apresenta duas histórias protagonizadas por J, o filho bissexual de um milionário japonês. Na primeira trama/capítulo, o protagonista viaja, em um Jaguar, para sua casa na baía de Miminashi com outras seis pessoas. O grupo irá filmar o primeiro curta-metragem da esposa de J, uma jovem cineasta. Na segunda trama/capítulo deste conto, ele forma uma associação de molestadores de mulheres.


Em “A Semana do Idoso”, três universitários (um estudante de Letras, um de Ciências Sociais e uma de Pedagogia) são contratados por um senhor de noventa anos. O velhinho está há dez anos vivendo isolado em sua mansão, sem receber qualquer informação do mundo externo. Assim, cabe aos jovens noticiar o que está acontecendo no Japão e no planeta no Pós-Segunda Guerra Mundial. Porém, a enfermeira do milionário excêntrico é enfática: nada de notícias ruins! Caso contrário, o idoso pode morrer do coração. Será que os universitários conseguirão ser otimistas em relação ao mundo em que vivem?


“Aghwii, O Mestre Celeste” é o décimo conto desta coletânea. Nele, um rapaz de 28 anos e com um olho deficiente relata o primeiro trabalho que teve na vida. Há dez anos, quando ainda cursava Literatura Francesa na universidade, ele foi assistente de um compositor com problemas emocionais.


“Em Português Brasileiro” gira em torno de um mistério. Todos os moradores de um povoado na floresta de Shikoku desapareceram inexplicavelmente da noite para o dia. Intrigado, o guarda florestal da localidade irá investigar o caso ao lado de seu amigo dos tempos de faculdade em Tóquio.

Livro 14 Contos de Kenzaburo Oe

“O Nascimento de Uma Nova Izumi Shikibu” trata dos relatos da infância de um escritor experiente. Após ficar famoso nacionalmente, ele acalenta a vontade de produzir um livro sobre “as mulheres extraordinárias” de seu vilarejo natal. Para tal, irá começar contando a história de sua Tia Hana, que lhe ensinou os poemas de Izumi Shikibu.


“Viver em Paz”, o penúltimo de “14 Contos de Kenzaburo Oe”, é narrado por Maa-chan, a filha de um famoso escritor. A moça de vinte e poucos anos precisará cuidar, por algumas semanas, da rotina da casa e do irmão excepcional durante a viagem dos pais pela Califórnia.


Por fim, temos “A Dor de Uma História”. Essa trama é, de certa forma, a continuação do conto anterior. A filha do escritor continua seus relatos. Agora, Maa-chan debate as mensagens dos livros “Momo” e “Uma História Sem Fim”, lidos em sua adolescência. Enquanto o primeiro fala de uma menina que salvou sozinha o mundo, o segundo trata da vida depois da morte.


Li “14 Contos de Kenzaburo Oe” em três dias. Comecei na terça e o concluí na última quinta-feira. Para mim, as melhores histórias são: “O Armazém Zoológico”, “Os Pássaros”, “Seventeen”, “O Homem Sexual”, “A Semana do Idoso” e “O Nascimento de Uma Nova Izumi Shikibu”.


O primeiro aspecto que notamos nesta coletânea é o predomínio de narrativas (11 de 14 contos) produzidas antes de “Uma Questão Pessoal”, cuja publicação foi em 1964. Achei acertadíssima essa escolha. É inegável que após o nascimento do filho excepcional, em 1963, e do lançamento do romance semi-autobiográfico sobre essa questão, a literatura de Kenzaburo Oe tenha se transformado completamente. A fixação pela deficiência da criança tornou-se um dos motes principais dos seus textos a partir dali. Aí o leitor se pergunta: e antes disso, qual era a temática prioritária das histórias do escritor japonês, hein? As tramas de “14 Contos de Kenzaburo Oe” apresentam justamente essa resposta. Nesse sentido, esta coletânea de contos mergulha essencialmente nos primeiros anos do trabalho de Oe como escritor.


Assistimos, nesta coleção de pequenas narrativas, a conflitos psicológicos e sociais de grande tensão dramática (por vezes, tragicômicos). Os assuntos debatidos mais comumente aqui são doenças mentais, distúrbios e taras sexuais, dúvidas filosófico-existencialistas, brigas matrimoniais, relacionamentos conflituosos entre homem-mulher e debate político sobre a polarização do Japão no pós-Guerra (direita versus esquerda, movimento de pacificação versus corrida armamentista e proliferação das armas nucleares versus campanha antinuclear). Trata-se, evidentemente, de um material com uma multiplicidade temática muito maior do que encontramos nos mais famosos romances de Oe.

Livro 14 Contos de Kenzaburo Oe

Ao mesmo tempo, “14 Contos de Kenzaburo Oe” possui a mesma ambientação sombria e pesada dos principais livros do autor. Em outras palavras, isso não mudou absolutamente nada. Essa é uma das marcas estilísticas de Oe desde o início de sua carreira. Assim, há, nesses contos, muita violência (suicídios, assassinatos, guerras, bomba atômica, abortos, estupros, agressões, prisões, assédios, intimidações), humilhações (medos, covardias, relações abusivas), cenários inóspitos (sujeira, esgoto, fedo, escuridão, cenários claustrofóbicos e insalubres), escatologias (vômitos, excrementos, suores excessivos, sangue por todo o lado, sêmen, arrotos), personagens sem nomes próprios (em alguns casos são chamados por uma letra e em outras situações nem há essa preocupação) e animalização das personagens (homens e mulheres são comparados o tempo todo aos bichos). Vou logo avisando: é preciso estômago forte para encarar essas histórias (e a literatura de Kenzaburo Oe como um todo).


Por falar nas personagens, elas, quase sempre protagonistas masculinos jovens e universitários, sofrem de depressão, loucura, paranoias, neuroses, compulsões sexuais bizarras, alcoolismo e dependência química. Em busca de uma vida normal e/ou que faça algum sentido, esses indivíduos questionam-se sobre: a dignidade humana, a coragem para correr atrás de seus sonhos, a busca pela liberdade, a existência de vida após a morte, a distinção entre realidade e imaginação e os elementos da essência do ser humano. Nota-se, dessa forma, um forte componente filosófico nesses contos. Não à toa, a influência da literatura francesa de Jean-Paul Sartre, Albert Camus e Blaise Pascal no trabalho de Kenzaburo Oe atingiu seu auge nas produções textuais da primeira metade da década de 1960.


Gosto da carga intertextual dos textos de Oe. Suas narrativas dialogam sutilmente com a literatura, com a música, com o cinema, com a política e com a geopolítica mundial. Porém, se comparado às suas crônicas e às histórias de outros escritores japoneses, por exemplo Haruki Murakami, essa intertextualidade pode até parecer fraquinha.


De aspecto negativo, temos, em “14 Contos de Kenzaburo Oe”, um retrato negativo das mulheres japonesas. Elas são normalmente prostitutas, strippers, ninfomaníacas, esposas/namoradas infiéis, mães submissas e indivíduos com algum tipo de loucura. Invariavelmente, elas possuem apenas uma finalidade nessas narrativas: servir de amantes para os protagonistas masculinos. Não é preciso dizer que essa é uma visão de mundo extremamente machista. São raras as figuras femininas neste livro que apresentam qualidades positivas, atitudes nobres e que estejam desvinculadas da prática sexual. As exceções são as protagonistas dos três últimos contos.

Kenzaburo Oe

Também fiquei incomodado com a mistura da narrativa em terceira pessoa com o pensamento das personagens em primeira pessoa. Não há qualquer indicação/sinalização textual da entrada das reflexões das pessoas no meio da parte principal da narrativa. Isso é no mínimo estranho. Esse recurso já havia aparecido nos romances de Oe. Sinceramente, eu não gosto. O que custa colocar as aspas nos pensamentos das figuras ficcionais, hein?


Com a leitura de “14 Contos de Kenzaburo Oe”, percebemos a altíssima qualidade das narrativas curtas do autor japonês. Apesar de “Uma Questão Pessoal” e “O Grito Silencioso”, dois romances, serem suas obras mais famosas, não podemos dizer que Oe seja mais romancista do que contista. Na verdade, ele é até mesmo mais contista (pela quantidade de publicações e pela profundidade destes textos) do que romancista. Não dá para alguém estudar a literatura do Nobel de 1994 sem mergulhar em seus contos. E “14 Contos de Kenzaburo Oe” é o título ideal para isso.


O Desafio Literário de junho irá se encerrar na próxima segunda-feira, dia 29, com a postagem, no Bonas Histórias, da análise completa da literatura de Kenzaburo Oe. A partir de tudo o que lemos nesse mês, já podemos tecer uma visão abrangente do trabalho de um dos principais escritores japoneses do século XX. Não perca a última parte desse nosso estudo literário. Até lá!


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