Enquanto os cinéfilos brasileiros esperam avidamente pela reabertura dos cinemas (sim, um dia eles voltarão a operar!), filmes inéditos ou que não tiveram exibições massificadas no circuito comercial são apresentados em festivais online. Assim, dá para aplacar um pouco a ansiedade natural por novidades da sétima arte. Quem não tem cinemão, caça com streaming, não é?!
Na semana passada, os principais lançamentos cinematográficos ficaram concentrados no Festival Espaço Itaú Play, iniciativa inédita do Espaço Itaú de Cinema. Pela primeira vez, a rede irá transmitir seus filmes de maneira remota. Em outra iniciativa para lá de louvável, o Cine Belas Artes tem realizado sessões de cinema no Memorial da América Latina por meio da modalidade do drive-in. Em seu catálogo, há uma mistura de produções clássicas e longas-metragens recentes. Por fim, a Promoção Mês do Orgulho LGBTQI+, homenagem da plataforma Looke ao Dia Internacional do Orgulho Gay a ser celebrado no dia 28, trouxe uma boa variedade de antigos títulos internacionais relacionados à temática homoafetiva.
Com cardápios tão plurais como esses, aproveitei para assistir a alguns filmes nos últimos dias. A produção que destaco hoje, no Bonas Histórias, é “Thelma” (2017), um dos longas-metragens disponíveis na Promoção Mês do Orgulho LGBTQI+ do Looke. Prometo trazer, nas próximas semanas, na coluna Cinema, análises tanto de filmes do Festival Espaço Itaú Play quanto do Cine Belas Artes Drive-in.
Dirigido por Joachim Trier, cineasta norueguês conhecido por “Mais Forte que Bombas” (Louder Than Bombs: 2014) e “Começar de Novo” (Reprise: 2006), “Thelma” é um drama psicológico com pitadas de terror, suspense e ficção científica. Este filme foi lançado na Noruega em setembro de 2017. No Brasil, ele chegou ao circuito comercial em novembro daquele ano. Contudo, “Thelma” ficou poucas semanas em cartaz e foi exibido em um pequeno número de salas. Por isso, essa é uma nova oportunidade para conferi-lo.
“Thelma” conquistou alguns importantes prêmios internacionais. Além do Festival Internacional de Cinema da Noruega, ele foi eleito o melhor longa-metragem em língua estrangeira pela Sociedade de Críticos de Cinema de San Diego e pela Associação de Críticos de Cinema de Utah. Para coroar este trabalho de Trier, “Thelma” foi indicado ao Oscar de 2018 como representante da Noruega na categoria Melhor Filme Estrangeiro, mas não chegou à finalíssima.
Quem gosta do cinema escandinavo, que possui uma pegada mais sombria, tórrida e violenta - basta lembrarmos de “Rainha de Copas” (Dronningen: 2019) e “Border” (Gräns: 2018), dois filmes que estiveram em cartaz no ano passado em nosso país -, com certeza irá gostar das fortes emoções contidas nesta que é a mais recente produção de Joachim Trier. No elenco de “Thelma”, temos as jovens Eili Harboe, do mágico “O Rei da Montanha” (Askeladden - I Dovregubbens Hall: 2017) e da comédia adolescente “Beije-me, Cacete!” (Kyss Meg for Faen i Helvete: 2013), e Okay Kayao, mais conhecida como cantora do que como atriz. Ao lado delas, há as presenças de peso de Henrik Rafaelsen e Ellen Dorrit Petersen, protagonistas de “Blind” (2014), um dos melhores filmes do cinema norueguês do século XXI (se não for o melhor).
Nesta trama, Thelma (interpretada por Eili Harboe) deixa a casa dos pais, Trond (Henrik Rafaelsen) e Unni (Ellen Dorrit Petersen), no interior da Noruega para fazer faculdade em Oslo. A moça se matriculou no curso de Biologia e irá morar sozinha pela primeira vez. Solitária e introspectiva, Thelma tem dificuldades para fazer amigos na capital norueguesa. Sua rígida formação cristã faz com que a jovem veja pecado em muitas coisas banais das pessoas da sua idade (sair à noite, dançar, tomar cerveja, fumar, namorar...). Por isso, a protagonista fica cada vez mais angustiada e depressiva com seu constante isolamento social.
Quando conhece Anja (Okay Kayao), uma colega de faculdade, Thelma parece ter conseguido superar seu acanhamento inicial e a bolha que ela mesma construiu em seu entorno. Afinal, agora tem uma grande amiga e consegue conviver com um grupo de universitários conhecidos. Contudo, a relação de intimidade com Anja rapidamente evolui para um flerte. Thelma se apaixona pela amiga, lançando-se em uma paixão homossexual. Essa nova perspectiva de vida vai completamente contra suas crenças religiosas, levando-a a indecisão. Em pânico sem saber o que fazer (é certo ou errado, segundo a ótica de Jesus Cristo, uma mulher sentir amor por outra mulher?), a mente de Thelma desencadeia reações inimagináveis tanto para ela quanto para aqueles que estão ao seu redor.
A partir desse ponto, “Thelma” se transforma em um filme de suspense psicológico de alto nível. Os comportamentos inexplicáveis da personagem principal a levam a investigar por conta própria sua condição mental, seu misterioso passado e alguns episódios sombrios de seus ancestrais. Sua infância esconde segredos cabeludos que sua família sempre tentou esconder e que agora podem cobrar um preço amargo demais por não terem sido tratados adequadamente. A pequena, melancólica e frágil Thelma esconde um poder grandioso que nem ela mesma consegue entender e, o que é pior, não consegue controlar.
Com quase duas horas de duração, “Thelma” é um bom thriller, principalmente em sua metade final. Na primeira hora, o filme caminha a passos lentos, atiçando a curiosidade do espectador aos poucos e apresentando a conta-gotas o drama de sua protagonista. As principais surpresas e reviravoltas da trama estão concentradas no desfecho. E por falar nisso, que desenlace tem esse longa-metragem, hein?! A plateia fica com o coração na boca, incrédula com as descobertas de Thelma e com os acontecimentos finais de sua história. Em um caso raro de suspense, esse filme tem sua tensão dramática em constante crescimento. Se demora um pouco para pegar, depois que pega, seu drama se torna realmente pesado e desemboca em uma avalanche de proporções inimagináveis.
O enredo de “Thelma” apresenta uma relação direta com outros títulos clássicos do cinema e da literatura. Essa associação começa já em seu título. Thelma, o nome da protagonista, é uma referência óbvia a “Thelma & Louise” (1991), um grande sucesso de Ridley Scott que traz um dos casais lésbicos mais conhecidos da história da sétima arte. A intertextualidade não para por aí.
Se formos analisar a trama de “Thelma”, há uma nítida sensação de déjà vu. Não é errado pensar nesse filme de Joachim Trier como uma mistura de “Carrie, a Estranha” (Suma das Letras), romance de terror de Stephen King adaptado inúmeras vezes para as telonas, e “Carol” (L&PM Pocket), romance homoafetivo de Patricia Highsmith levado recentemente aos cinemas. Thelma é, nessa visão, a união de Carietta White, uma moça interiorana com poderes telecinéticos, e Therese Belivet, uma jovem que se descobre homossexual em meio a uma complicada fase de sua vida.
Em uma comparação mais cinematográfica, podemos ver a protagonista de “Thelma” como sendo a versão feminina, mais jovem, mais moderna e norueguesa de David Callaway, de “Amigo Oculto” (Hide and Seek: 2004), ou de Tyler Durden, de “Clube da Luta” (Fight Club: 1999). Não é preciso ser um cinéfilo inveterado para fazer essas relações entre a personagem do filme de Trier e os anti-heróis mais conhecidos do cinema norte-americano atual. Querendo ou não, “Thelma” bebe dessas fontes, o que evidentemente o prejudica nos quesitos criatividade e originalidade (Criatividade, NOTA 3. Originalidade, NOTA 1).
Esse aspecto, então, compromete a experiência cinematográfica da plateia? Por mais contraditória que pareça, minha resposta é um sonoro NÃO. Se não é criativo nem original, “Thelma” vale a pena ser visto pela tensão e pelo suspense que propicia. Sabe aquela receita velha que é manjada por todos, mas que funciona muitíssimo bem? Pois essa é a melhor definição para este filme de Joachim Trier. Chamo isso de Complexo (do Drible) de Garrincha. Por mais que já o tenhamos visto outras vezes, ainda sim ficamos estupefatos quando assistimos a sua repetição in loco. “Thelma” faz o espectador mais experiente se lembrar de um monte de títulos conhecidos, mesmo assim o público sai da sessão feliz com o resultado apresentado.
Se o enredo tem lá seus defeitos, por outro lado, esse filme tem alguns aspectos elogiáveis. O clima de suspense e a ambientação de terror são os primeiros elementos a serem enaltecidos. As paisagens frias, isoladas e inóspitas do interior da Noruega e de sua capital criam uma atmosfera de tensão constante. A câmera grudada ao rosto de Eili Harboe potencializa os dramas da protagonista. Com isso, ficamos muito próximo da personagem principal, enxergando o mundo sob seu ponto de vista. Assim, ela divide conosco suas dúvidas, suas preocupações e seus pavores mais íntimos.
É verdade que sem a atuação segura de Eili Harboe, esse recurso cinematográfico (câmera colada à fisionomia da atriz) não seria possível. A jovem norueguesa está ótima nesse que é, até aqui, seu papel mais importante no cinema. E olha que ela não se intimidou com a presença de Henrik Rafaelsen e Ellen Dorrit Petersen, dois dos melhores atores noruegueses da atualidade. E não apenas Harboe dá um show de interpretação como Rafaelsen e Ellen Dorrit Petersen têm uma nova atuação primorosa como casal (eles foram marido e mulher em “Blind”). Vale a pena dizer que Eili Harboe e Henrik Rafaelsen foram eleitos, respectivamente, a melhor atriz e o melhor ator no Festival Internacional de Cinema de Kosmorama, um dos mais importantes da Noruega. Ainda em relação ao elenco, o único ponto destoante foi a atuação abaixo da média de Okay Kayao, que parece ainda receosa quando larga os microfones dos shows e mergulha em produções cênicas. Contudo, isso não comprometeu a qualidade de “Thelma”.
Outros aspectos que merecem ser citados neste filme é sua trilha sonora e sua edição. Parte da tensão dramática é conseguida pelas músicas, que embalam a rotina e as dúvidas de Thelma. Quase sempre orquestrais, as canções ditam o ritmo dos sentimentos da personagem e levam a plateia a se emocionar. Em muitos momentos, é o silêncio absoluto o responsável por potencializar o suspense, que faz com que o público não consiga desgrudar os olhos da tela. Repare nesse efeito. É incrível! Quanto a edição, ele confere uma narrativa fluida e verossímil. Se não temos aqui uma trama extremamente original, por outro lado, ela é aceitável do ponto de vista ficcional.
Para apimentar ainda mais o clima de terror, “Thelma” mistura o universo real com o mundo onírico de sua personagem principal. Como consequência, entramos na mente perturbada da estudante de Biologia. É verdade que não temos aqui uma narrativa tão naturalista quanto “Border” e “Rainha de Copas”, mesmo assim houve tentativas neste sentido em algumas cenas. Contudo, a pegada maior não está nos elementos escatológicos e animalescos dessa história, e sim em sua tensão psicológica.
As duas últimas cenas de “Thelma” são fantásticas. Sutilmente, o roteiro do filme apresenta o desfecho da trama de maneira inteligente e lógica. Ao invés de detalhar o destino da personagem principal, ele mostra o que Thelma fez/fará delicadamente. De tão sutil, há quem possa vê-lo como um final aberto. Não. Ele não é aberto coisa nenhuma! Reveja as duas últimas cenas até você chegar a uma conclusão. Um acompanhamento atento dessa parte é esclarecedor (daí o aspecto fechado do final do longa-metragem). Adoro isso! Aprecio quando o cineasta investe na inteligência do público.
Como fã de suspense e de tramas de terror, gostei de “Thelma”. Não é o melhor filme escandinavo dos últimos anos, mas é uma produção interessante, que vale a experiência. Assista, a seguir, ao trailer de “Thelma”:
Os filmes da Promoção Mês do Orgulho LGBTQI+ estão disponíveis no Looke até o final de junho, próxima terça-feira. Para assisti-los, basta fazer um cadastro rápido na própria plataforma de streaming. A exibição é gratuita e há mais de dez opções de produções disponíveis, entre longas-metragens e séries. Além de “Thelma”, os destaques são “A Jovem Rainha” (The Girl King: 2005), drama histórico finlandês, “Transamérica” (2004), tragicomédia norte-americana, “Adeus, Minha Rainha” (Les Adieux à La Reine: 2011), drama francês, e “De Garota em Garota” (De Chica en Chica: 2015), comédia espanhola. Entre as séries, temos “Rio #semlimites” (2019), uma produção nacional recente, e “Meus Dois Amores” (J´ai Deux Amours: 2018), um drama francês.
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