Acho curiosas as críticas quanto à qualidade da música brasileira atual. Os mais exigentes afirmam que agora chegamos, enfim, ao fundo do poço. Outros dizem que o mercado fonográfico nacional dissemina apenas canções populares e de baixíssimo nível intelectual e artístico. Há quem condene os hits da moda, o sertanejo universitário e o funk, como se eles fossem os maiores vilões de nossa cambaleante nação. Será que é para tanto?!
Olhando em retrospectiva, o Brasil sempre teve músicas populares no topo do ranking das mais tocadas (do contrário, não seriam músicas populares, certo?). Qual a surpresa dessa constatação, então? Acho esse fato perfeitamente normal quando olhamos a estrutura de nossa sociedade, formada majoritariamente por gente simples e de pouca instrução. Ou alguém, diante do nosso cenário histórico-social, imagine a Música Clássica, o Jazz e a Bossa Nova, por exemplo, sendo cantadas pelo povão nas ruas e/ou tocadas à exaustão pelas rádios comerciais do Oiapoque ao Chuí?! Difícil crer em algo assim, né?
Depois do Rock ter liderado as paradas de sucesso na década de 1980, o que veio depois? Pagode, Axé Music, Lambada, Sertanejo, Sertanejo Universitário, Funk... E não há nada de errado nisso, Santo Deus! Ao invés de ficar reclamando, por que não cair de cara em um ritmo alegre e contagiante que consegue mobilizar multidões, hein? Sou da visão que a cultura genuinamente popular é uma das maiores riquezas brasileiras. Ela é comumente original, criativa, plural, espontânea, impactante e fruto de nossas raízes culturais. Em alguns casos, enquanto muitos compatriotas torcem os narizes, músicos brasileiros de gêneros populares (lembro de Michel Teló, Anitta, Terra Samba...) são aplaudidos no exterior como artistas de primeiro nível. Coisas de Brasilsilsil!
Estou falando desse preconceito musical no post de hoje da coluna Músicas, do Bonas Histórias, porque há 23 anos o sucesso que contagiava nosso país era “Psiu, Psiu”, um dos inúmeros sucessos da Companhia do Pagode. Quem tem hoje mais de 30 anos na certa cantou e dançou muito os hits do grupo baiano, um dos pioneiros do Axé Music. Só para citar uma música clássica da banda, relembro “Na Boquinha da Garrafa”, número 1 da parada musical na primeira metade da década de 1990.
A Companhia do Pagode foi fundada, em 1992, em Salvador, por Edney, Kiko, Zé Luis, Ely, Lobo Mau, Negão e Sérgio Rocha. O sucesso, contudo, demorou mais três anos e aconteceu após a chegada, em 1995, de Diumbanda, apelido de Zacarias Higino Jesus Filho, que saíra (de maneira um tanto tumultuada) do Gera Samba (que alguns anos mais tarde passaria a se chamar É o Tchan). Foi justamente quando integrava o Gera Samba que Diumbanda compôs seu maior sucesso, “Na Boquinha da Garrafa”. Curiosamente, o músico baiano era policial militar em Salvador antes da fama e voltou à sua antiga profissão nos anos 2000, quando o sucesso esmoreceu. Há inclusive uma reportagem incrível do Jornal Nacional, de setembro de 2009, que o (re)descobriu, sem querer, policiando as ruas da capital baiana na véspera de um jogo entre Brasil e Chile pelas Eliminatórias da Copa do Mundo de 2010.
Como toda banda de Axé que se preze, a Companhia do Pagode tinha dançarinos que sempre acompanhavam os intérpretes e os músicos. A formação clássica do grupo tinha a presença dançante de Sara Verônica e Tom. Vale a pena dizer que a adoção de um casal de dançarinos foi uma inovação que a banda trouxe. Até então, apenas mulheres integravam essa parte da equipe.
“Psiu, Psiu” integrou o álbum de 1997, o terceiro do grupo, sendo sua faixa principal. Chamado de “Companhia do Pagode Ao Vivo”, o LP foi um dos maiores sucessos daquele ano ao mesclar canções inéditas (“A Bicicletinha”, “Melô do Ti Ca Tás”, “A Dança do Cachorrinho”, “Tremelica”, “Thui-Thui”, “Cocorocó” e “Requebra”) com pot-pourri de sucessos antigos (“A Dança do Robô”, “Na Boquinha da Garrafa”, “Terra Samba Faz Bem”, “Sanduíche”, “Na Dança do Strip-Tease”, “Ondinha”, “Quando Eu Vou Pro Samba”, entre outras).
Poucos meses antes do lançamento de “Companhia do Pagode Ao Vivo”, houve uma grande mudança nos músicos da banda. Como acontece atualmente com os times de futebol, os grupos de Axé apresentavam na década de 1990 grande rotatividade de cantores e dançarinos de um ano para outro. O entra e sai foi uma constância da Companhia até 2003, quando o grupo terminou definitivamente. Para se ter uma ideia, uma das últimas cantoras da banda foi Cláudia Leite, no comecinho de carreira. Em 1997, chegou Negão Jamaica, irmão de Beto Jamaica. O novato assumiu o vocal ao lado de Sérgio Rocha. A dupla de dançarinos se manteve.
“Psiu, Psiu” foi composta por Edybinho e Tonho Matéria e segue o padrão clássicos das músicas de Axé: batida forte de tambor, ritmo dançante, letra simples, versos repetidos até a exaustão (para a memorização instantânea), temática de flerte/assédio masculino a uma mulher bonita (muitas vezes, de forma agressiva e até machista) e bastante sensualidade (com letra de duplo sentido ou mesmo de sentido sexual direto).
Veja, a seguir, a letra de “Psiu, Psiu”:
Psiu, Psiu (1997) - Edybinho e Tonho Matéria
Psiu, psiu
Coisinha linda do bumbum empinadinho
Psiu, psiu
Coisinha linda do bumbum empinadinho
Psiu, psiu
Coisinha linda do bumbum empinadinho
Psiu, psiu
Coisinha linda do bumbum empinadinho
Diga pra mim
qual seu nome
Eu quero ser,
quero ser seu homem
Diga pra mim
qual seu nome
Eu quero ser,
quero ser seu homem
Sua saia rodada,
sua blusa azul,
sua pele morena,
bronzeada do sol
Traduzem a sensualidade
reluz em meu ser
Você cheira a pecado
e desta fruta, quero comer
Psiu, psiu, psiu, psiu, psiu!
Em 1999, a Companhia do Pagode aproveitou-se de seu último grande sucesso, justamente “Psiu, Psiu”, para relançar este hit. A música emprestou seu nome para o título do álbum daquele ano, o quinto da banda. Se a formação dos músicos se manteve, com Sérgio Rocha e Negão Jamaica à frente da trupe, a dupla anterior de dançarinos foi substituída por um trio exclusivamente feminino: Paulinha, ex-dançarina do Grupo Cafuné, e Leila e Danielle, reveladas no concurso “A Nova Loira do Tchan” (que alçou a vencedora, Sheilla Melo, ao estrelato no É o Tchan/Gera Samba).
Assista, a seguir, a uma das interpretações de “Psiu, Psiu”:
Analisando criteriosamente, é óbvio que “Psiu, Psiu”, como a maioria das músicas de Axé da década de 1990, não apresentava uma qualidade admirável, digna de elogios ou de inveja. Mas quem está preocupado com isso, cara-pálida? O negócio é cair na empolgação e se divertir (a música é, afinal de contas, diversão!). Não é errado dizer que temos aqui um clássico de seu gênero. E a Companhia do Pagode é um grupo de Axé icônico de nosso país. Viva a sua memória!