Li, nesta semana, "José" (Nova Fronteira), a novela autobiográfica de Rubem Fonseca. A obra é apresentada ao leitor como uma ficção, porém é inegável seu caráter de memória. O José da história e do título do livro é o próprio Rubem Fonseca. Para quem não sabe, o nome completo do escritor é José Rubem Fonseca. Nesta narrativa em terceira pessoa, Fonseca apresenta a infância e a juventude de sua personagem. A trama segue até o protagonista completar vinte e poucos anos de vida. Nesta época, José atuava como advogado criminalista (e sua carreira de escritor ainda não tinha começado – até então, ela não passava de um sonho distante).
A pergunta que me fiz durante a leitura de "José" foi: por que o autor e sua editora posicionaram esta obra como uma novela e não como um livro de memórias? Sinceramente não sei a resposta. O próprio escritor justifica-se na segunda página da narrativa: "Ao falar de sua infância José tem que recorrer à sua memória e sabe que ela o trai, pois muita coisa está sendo relembrada de maneira inexata, ou foi esquecida. Mas ele gostaria de concluir, ao fim dessas lembranças tumultuadas, que memória pode ser aliada da vida. Sabe que todo relato autobiográfico é um amontoado de mentiras - o autor mente para o leitor, e mente para si mesmo. Mas aqui, se alguma coisa foi esquecida, ele se esforçou para que nada fosse inventado. José cita Proust: 'a lembrança das coisas passadas não é necessariamente a lembrança das coisas como elas foram'". Diante dessas palavras do principal autor policial brasileiro, quem sou eu para discutir o que é ficção e o que é autobiografia, hein?!
Publicado em 2011, "José" tem 168 páginas e está dividido em 19 capítulos. Trata-se de uma leitura muito rápida. É possível ler o livro inteiro em duas ou três horas. Foi o que fiz na noite de anteontem. Esta obra é a última narrativa longa (novela/romance) lançada por Rubem Fonseca. Depois de "José", o escritor mineiro só publicou coletâneas de contos: "Axilas e Outras Histórias Indecorosas" (Nova Fronteira), de 2011, "Amalgama" (Nova Fronteira), de 2013, "Histórias Curtas" (Nova Fronteira), de 2015, "Calibre 22" (Nova Fronteira), de 2017, e “Carne Crua” (Nova Fronteira).
O enredo de “José” começa com o narrador-protagonista relembrando-se de sua infância. Menino tímido e introspectivo, José era fascinado pela literatura. Desde os oito anos de idade, quando morava em Juiz de Fora, seu passatempo favorito era a leitura. Ele passava boa parte dos dias e das noites mergulhado nas páginas das histórias ficcionais francesas que uma tia, que morava no Rio de Janeiro, lhe enviava.
Nos primeiros capítulos desta novela, acompanhamos a vida da família da personagem principal em Minas e, depois, no Rio de Janeiro. Os pais de José eram portugueses que vieram tentar a sorte no Brasil. Eles se conheceram no Rio e se mudaram para Juiz de Fora para empreender. Foi na cidade mineira que José nasceu. No início, a loja de departamento do pai foi um sucesso e a família enriqueceu. Porém, o negócio foi à bancarrota depois de alguns anos. Falidos, eles precisaram voltar para o Rio de Janeiro sem muito dinheiro no bolso. Na então Capital Federal, passaram a levar uma vida mais simples (de trabalhadores humildes).
A descoberta do Rio pelo jovem José é um capítulo à parte de sua autobiografia. O menino se mudou para a Cidade Maravilhosa aos oito anos de idade e ficou deslumbrado com tudo o que viu ali. Ao mesmo tempo em que a paixão pela literatura continuava (da ficção francesa ele partiu para os romances policiais norte-americanos, ficando fã deste gênero), o adolescente descobriu a adoração pelas ruas e pelas mulheres cariocas. Literatura, a metrópole dos contrastes e os corpos femininos eram as grandes paixões do agora adolescente.
O relato prossegue da adolescência (as primeiras namoradas, a iniciação sexual, o gosto pelo cinema, a relação com os colegas de escola, os primeiros trabalhos profissionais) até o início da vida adulta (forma-se em Direito, passa a trabalhar como advogado criminalista, envolve-se com uma mulher casada, alguns familiares morrem).
Curiosamente, o livro termina (fique tranquilo: não há spoiler aqui!) quando José começa a acalentar a vontade de ser escritor. Inclusive, ele havia escrito sua primeira coletânea de contos. Isso ocorreu mais ou menos quando o rapaz tinha dezoito anos de idade. Com o original da obra em mãos, ele entregou o material para a avaliação de um editor especializado em literatura brasileira. Essa história é incrível! Não vou contar o que aconteceu para não estragar as surpresas de quem for ler “José” (não falei que não contava o spoiler!). O que posso adiantar é que a iniciação na literatura do narrador foi uma experiência tão traumática que ele ficou quase duas décadas sem escrever nada.
É preciso admitir que a interrupção da história quando José iria virar Rubem Fonseca pode frustrar alguns leitores mais curiosos. Por exemplo, eu gostaria muito de saber mais sobre os relatos do início da carreira literária do autor. Porém, entendi perfeitamente a opção por esse limitado recorte temporal. O narrador-protagonista justifica essa opção na última página da novela: "José resolveu seguir o exemplo de Isaac Bashevis Singer, que ao escrever a sua autobiografia parou nos trinta anos. José resolveu parar um pouco mais cedo. Certamente não conseguiu escrever a história completa da sua vida nesses vinte e poucos anos. Na realidade, como diz Singer, 'a história verdadeira da vida de uma pessoa jamais poderá ser escrita. Fica além do poder da literatura. A história plena de qualquer vida seria ao mesmo tempo absolutamente aborrecida e absolutamente inacreditável'". Impossível não assinar em baixo e não concordar com a proposta do autor.
A primeira coisa que chama a atenção em "José" é o seu narrador. A obra é escrita em terceira pessoa. Porém, fica evidente o caráter pessoal desse relato. É como se o Rubem Fonseca de hoje narrasse a história de sua infância e de sua juventude com um olhar de fora, como se estivesse revendo o que passou e não como se quisesse vivenciar outra vez os momentos antigos. Ou seja, o protagonista é o José de ontem, um indivíduo desvinculado do Rubem de hoje. Por isso, a escolha pela terceira pessoa.
Ao mesmo tempo que há uma separação formal entre narrador e personagem principal, há uma grande proximidade entre eles. O narrador está fora da trama, mas sabe tudo o que se passa na cabeça do seu protagonista (uma terceira pessoa quase em primeira pessoa). Esse recurso é bastante parecido com o que foi utilizado por J. M. Coetzee, escritor sul-africano vencedor do Nobel de Literatura de 2003, em boa parte de suas histórias ficcionais. No estilo textual-narrativo, “José” acaba lembrando muito a trilogia autobiográfica de Coetzee, composta por "Infância" (Companhia das Letras), "Juventude" (Companhia das Letras) e "Verão" (Companhia das Letras).
Outro aspecto interessante de ser percebido pelo leitor em "José" é a relação de episódios reais da vida do escritor com passagens ficcionais de suas obras (essa é a principal explicação para a classificação da obra estar como novela e não como autobiografia). Notei que há muitas semelhanças entre o que Rubem Fonseca (ou seria José?) vivenciou na prática e algumas características de suas personagens ficcionais. É muito legal procurar identificar esses paralelos no texto. Por exemplo, juro que visualizei Mandrake, personagem de "A Grande Arte" (Nova Fronteira) e de outros livros mais de Fonseca, trabalhando em seu escritório de advocacia quando o narrador contou sobre o início da carreira de José no Direito Criminal.
Admito ter ficado encantado com o relato franco e sincero de Rubem Fonseca sobre seu passado. Não é preciso dizer que "José" foge completamente das características típicas da literatura do escritor mineiro (ou seria carioca?!). Esse é mais um motivo para ver esta obra como um livro de memórias e não como uma novela ou um romance ficcional. As únicas evidências do Brutalismo, corrente literária na qual Fonseca se tornou o principal representante em nosso país, surgem quando o narrador apresenta o Rio de Janeiro entre o final dos anos 1930 e o início dos anos 1940. É espetacular acompanhar a descrição da capital carioca naquele período, praticamente outra cidade se comparada com a de agora.
"José" é um ótimo livro autobiográfico. Quem quiser conhecer mais sobre as duas primeiras décadas de vida de um dos principais autores contemporâneos do Brasil, esta publicação é uma boa escolha. E é com esta obra que encerramos a parte das análises individuais do Desafio Literário de setembro. Na próxima terça-feira, dia 29, irei retornar ao Bonas Histórias para apresentar uma análise geral da literatura de Rubem Fonseca. Até lá, pessoal!
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