top of page

Bonas Histórias

O Bonas Histórias é o blog de literatura, cultura, arte e entretenimento criado por Ricardo Bonacorci em 2014. Com um conteúdo multicultural (literatura, cinema, música, dança, teatro, exposição, pintura e gastronomia), o Blog Bonas Histórias analisa as boas histórias contadas no Brasil e no mundo.

bonashistorias.com.br

Ricardo Bonacorci

Nascido na cidade de São Paulo, Ricardo Bonacorci tem 42 anos, mora em Buenos Aires e trabalha como publicitário, produtor de conteúdo, crítico literário e cultural, editor, escritor e pesquisador acadêmico. Ricardo é especialista em Administração de Empresas, pós-graduado em Gestão da Inovação, bacharel em Comunicação Social, licenciando em Letras-Português e pós-graduando em Formação de Escritores.  

  • Foto do escritorRicardo Bonacorci

Contos: Diálogos Urbanos - Tia Jô


Diálogos Urbanos: Tia Jô

Maria, o que você tá fazendo? Grossa! Eu só perguntei por educação. Vocês comeram os docinhos que mandamos? Não acredito! Era tudo coxinha?! Então veio errado. Veio errado de lá da festinha. Nós nem olhamos dentro. Eles falaram que era docinho e nós acreditamos. É, falaram. Vocês que comam os salgadinhos então. Esquenta no micro no café da tarde. Sabe que é até melhor assim. Ah, você sabe que não é para colocar mais adoçante no café, né? Adoçante, eu ouvi um médico falar, é um veneno. E tem gente que põe mais adoçante quase do que café na xícara. Um horror! Sabe quem está tomando café sem adoçar agora? O Ernesto. Só não sei se vai ajudar muito... Ele tá tão gordo, Maria. Só de olhar, eu fiquei mal. Eu vi na festinha da Conceição. Ele foi. E ele não ia? Ele sempre vai, né? Ficou o tempo todo comendo e bebendo. Como aquele homem bebe, é desesperador.


Ah, falando em desespero, tem mosquito aí? Aqui em casa tem tanto mosquito. Tá um inferno. Ninguém dorme. Quando não são as preocupações, as contas, são os mosquitos que não deixam a gente dormir. Sabe que ninguém mais dorme, né? Era tão bom antigamente quando o povo conseguia colocar a cabeça no travesseiro e dormir. Por isso as pessoas andam tão estressadas, nervosas, um matando o outro na rua por nada. Eu vejo pela Linda. Ela tá uma arara. Por quê? E você ainda pergunta. Claro que tá errado. Para quem gasta cento e vinte, cento e trinta, no máximo cento e cinquenta, vir quinhentos reais, tem alguma coisa muito errada... É. Não foi quinhentos redondinho. Foi, vai, quatrocentos e oitenta e sete reais e noventa centavos. De qualquer forma é muito. Nós não consumimos isso tudo. Tá errado. A segunda conta veio duzentos e setenta e oito reais... Mas o cara foi lá e disse: “Esse relógio está descontrolado”. Entendeu? Ele falou lá o nome que eu não lembro agora. Aí ele falou: “Tem que trocar esse relógio”. Mas como é que fica? “Não, eles vão vir trocar. Eu tô fazendo aqui um chamado”. Aí, Maria, outro dia ela teve que ligar para lá e falaram: “Não, não. Tem que fazer o pedido lá. Pessoalmente”. Ela não dorme há dias não por acaso.


Hoje saiu uma reportagem na televisão que diz que trinta e cinco minutos no chuveiro é cinquenta reais que você paga de água, de luz, de luz. Sei lá, de água ou de luz. Acho que falaram de luz. De qualquer jeito é um assalto. É sim. É cinquenta reais para cada banho de trinta e cinco minutos. Deu na televisão, ora. A televisão não ia mentir para a gente. Pior é que antes a gente tomava banho lá na academia. Você sabe, né? Mas como subiu muito a mensalidade, a Linda achou melhor parar de ir. Você fica quanto tempo no chuveiro? Todo dia? Imagine. Eu só fico, sei lá, se muito dois ou três minutinhos. E a maior parte do tempo é de torneira fechada. Onde já se viu deixar a torneira aberta nesses tempos em que tudo está o olho da cara.


Eu faço assim, Maria: abro a torneira, me molho um pouquinho e já desligo. Aí eu me esfrego bem, com calma. Esfrego mesmo. Antes coloco shampoo, né? Esfrego. Só abro a torneira de novo para repassar. E tudo muito rapidinho. Aí desligo. Se ficou um pouco de sabão, não tem problema, dá para tirar depois com a toalha. Só o cabelo eu enxaguo bem. Porque cabelo com shampoo não dá, né? Isso é quando eu lavo a cabeça, que não é coisa que se pode fazer todo dia. Quando não lavo, só dou uma passada embaixo da água. Do jeito que tá, ninguém mais pode ficar embaixo do chuveiro o tempo todo. Só quem é milionário, quem tá com a vida ganha, tipo esses artistas da televisão, que podem pagar qualquer conta. Ou se a pessoa é uma demente completa, que não tem amor ao dinheiro.


Não vai me dizer que o Rafael toma banho de torneira aberta? Meu Deus! E você deixa?! Ele não é mais criança para fazer isso. Fale com ele, explica que não pode. Quanto você paga de água aí? E de luz? Mesmo ele ficando com a torneira aberta no banho? Nossa! Você tem é que agradecer, então. Nós aqui não fazemos nada disso e a conta veio quinhentos reais. Por isso, eu digo: tem alguma coisa muito errada. Deve ser o relógio. Só pode. Ele não está marcando direito. A gente economizando e o relógio registrando errado. A Linda nem dormiu na semana passada. A gente segurando nas contas e vem um valor desse. Aí não dá. Deus me livre se isso acontece com uma família com menos dinheiro. Como eles vão pagar? Se para a gente já ficou pesado, imagine só para uma família pobre. Se veio errado aqui, deve ir errado para um monte de gente. Coisa de relógio descontrolado.


Ah, e tem outra: não dá para tomar banho à noite, no fim de tarde. Você sabia disso? É o horário, ele influencia sim senhora. Você paga mais caro no horário de pico. Eu já falei para a Linda: banho em casa é só de manhã. E sabe, não é porque você fica uma hora no banho que você ficará mais limpa. Eu só não tomo banho de mangueira porque a água é muito fria. Você já tentou? Uma vez eu tentei, mas não dá. Pelo amor de Deus, Maria! Vocês estão loucos de tomar à noite. Onde a gente vai parar? Fala para o Horácio tomar de manhã, antes de ir trabalhar. Ele não sai cedinho? Então é baratinho. Se ele morasse aqui, jamais iria tomar banho à noite.

Conto "Tia Jô" de Ricardo Bonacorci e da série "Diálogos Urbanos"

Tá todo mundo reclamando. Tá tudo subindo. O dinheiro não dá para mais nada. O governo parece que não vê isso, não liga. Na feira, eu nem te conto como está... Fui com a Linda na feira na semana passada e o homem da fruta disse para a gente: “Eu tô com vergonha de dizer o preço das coisas para os fregueses. Eles vão achar que eu estou roubando. Mas eu preciso repassar o aumento. Eu também estou pagando muito mais caro”. Coitadinho. Ele está preocupado com o que a gente vai pensar. Nós sabemos que a culpa do preço não é dele. Ele também é uma vítima. No final das contas, vai ver que não sobra nada para ele também... Não é barulho, é a televisão. Não vou desligar a televisão só porque estou no telefone...


Maria, você não vai fazer bolinho de chuva hoje? Sei. Ah, você não está sabendo da Melaine?! Elas estão com desgosto de novo agora. O filho da Melaine voltou com aquela moça que ele arrumou sei lá onde. Querem vir para cá os dois. Elas estão assim desesperadas. Porque lá em Curitiba o negócio não foi fácil, né? Elas não querem, mas ele quer vir... Não! Quem falou em morar junto? Ele quer sair por uns dez dias. Mas é um problema sério mesmo assim, porque a moça vem junto. Se fosse só ele, não teria problema. Você sabe o que é colocar uma estranha dentro de casa? Deus me livre. Você não tem noção do que essa mulher aprontou lá, na época em que eles estavam juntos. Eu acho o cúmulo ficar na casa da mãe, da avó, com uma moça que você sabe que ninguém gosta dela.


Sabe quem está muito doente? A Benê. Não vai mais. Ô, a Benê, eu acho que é depressão o que ela tem. Ela não come e só quer dormir. Sabe o que aconteceu lá? O Diogo se separou. Pelo visto, a Benê e a Ana Rita fizeram uma mansão lá para eles, né? Eu fiquei com dó. E a Benê... Sabe tia boba? Eu não sei o que é isso, porque eu não sou. Eu sei que vocês me tapeiam, vocês são tão idiotas. Falando nisso, a Linda também não acreditou que a médica da Marcela disse que está tudo bem. É claro que não está! Com aquela cara de doente dela... Onde já se viu estar tudo bem? Você tem que falar para ela procurar outra médica. Os médicos também erram, sabia? Não dá para ir nas conversinhas desses médicos que dizem que está tudo bem.


Aí, deixa eu continuar, elas iam para Campinas. Elas não, a Nati, né? Ela ia. Mas a moça quase não come, só dorme, não quer nada com nada. Levaram ela no médico e não tem nada. Eu acho que é depressão profunda. Eu tô dizendo. E os médicos lá falam alguma coisa?! Eles veem os exames, não tem nada, e falam que a pessoa tá boa. Mas a gente vê que não está bem. Por isso, eu digo: é depressão o que ela tem. É como diz a Nati: “Só vão para médico, para cá e para lá, o que eu vou fazer lá?” Tá certa ela de ficar aqui. Até aí, né? A moça vive em médico, tá uma confusão danada em Campinas. O melhor é ficar quietinha em casa mesmo. De confusões, já bastam as nossas, né?


E as meninas lá, como estão? Não me diga. A vizinha lá que é inquilina da Joana tem um gato. É um ou são dois, não sei. O filha da puta já foi lá no nosso quintal aprontar. Outro dia a porta da sala estava aberta, a de vidro, no corredor, Maria. Aí vi que ele estava olhando louco para entrar. Só que... Ela foi para a praia, porque eles têm casa na praia. Os pais dela tem casa, eles moram lá. Não é que tem casa na praia, eles moram em Santos. E eles foram num sábado para lá e ela foi ontem. Mas o gato ficou aqui. Como vai viajar e não leva o gato? Aí eu pergunto: quem dá comida e água para o gato nesses dias todos? O bicho não é bobo e pulou o muro. Vai ver que está passando fome. O quê? Dar comida para os bichos dos outros? Tá louca? O máximo que dei foi água. Não, não. Eu não dei água. Eu joguei água nele. O bichinho, mais do que depressa, voltou correndo para a casa dele. Quero ver ele voltar para o meu lado. Ele que fique lá esperando a dona dele voltar. Eu não gosto de gato. Odeio, para falar a verdade. Você sabe que gato é muito pior do que cachorro? É. O cachorro ainda gosta dos donos. Os gatos nem isso. Eles são interesseiros. Eles gostam só da casa. Aquele gato tá bonitão, gordo que só ele, você precisa ver.


Aí ela falou assim... A Nati. Tó falando agora da Nati. Ela não quer comer! Ela já era magra. Porque a Benê sempre foi muito magra. Diz que ela tá tão magra agora. Eu não sei onde ela foi perder mais quilos. A Doutora Ana falou exatamente o que da Marcela? Mentira! Se ela não abrir o olho, você vai ver para onde ela vai. O nosso colesterol subiu também. Eu acho que é de nervoso, da conta de luz. Ah, a academia fechou. Fechou mesmo. A Linda passou lá na frente e viu a placa de aluga-se. Ela falou? Eles estão arrasados. Hoje a Linda falou com a Carol, que era a professora que trabalhava lá. Aí ela falou que eles estão arrasados porque não tem tanto serviço... esse serviço dela, da Lourdes, não tem em todo lugar. Você reparou que está tudo fechando? Um horror!


Maria, depois a gente fala mais. Vai começar a novela. Que novela? A turca, né? Tá tão boa. Você assiste? Muito melhor do que as mexicanas e as portuguesas. Outra que está muito boa é a portuguesa. Eu assisto no canal português à noite. Você não assiste? As notícias de lá também são muito boas. Melhores do que as daqui. A Cleide? Ela está bem. Falamos com ela no fim de semana. É. Mandou um beijo pra você. Está daquele jeitinho dela que você conhece bem: reclamando de tudo e chorando por qualquer continha. A mulher tá bem de vida e fica reclamando de dinheiro o tempo todo. Quero morrer com isso. Mão de vaca! Tá começando. O quê? A novela turca, né? Eu te ligo quando terminar. Tá. Depois você me fala se os bolinhos de chuva ficaram bons. Tchau.

Gostou deste post e do conteúdo do Bonas Histórias? Compartilhe sua opinião conosco. Para acessar outras narrativas do blog, clique em Contos & Crônicas. E não se esqueça de curtir a página do Bonas Histórias no Facebook.


A Epifania Comunicação Integrada é parceira do Bonas Histórias, blog de literatura, cultura e entretenimento
A Dança & Expressão é parceira do Bonas Histórias, blog de literatura, cultura e entretenimento
Mandarina é a livraria diferenciada que está localizada em Pinheiros, na cidade de São Paulo
Eduardo Villela é Eduardo Villela é book advisor e parceiro do Bonas Histórias, blog de literatura, cultura e entretenimento
bottom of page