Publicado em 2018, o thriller dramático do jovem autor maranhense gira em torno de um relacionamento incestuoso.
Neste final de semana, li um romance muito interessante. “Alto das Lágrimas” (Autografia) é a obra ficcional de estreia de Marcelo Coutinho, escritor maranhense mais conhecido pela produção acadêmica nas áreas das Ciências Políticas e das Relações Internacionais. Pela qualidade deste livro, é legal ficar de olhos abertos nos novos títulos de ficção de Coutinho. Não me surpreenderei se, nos próximos anos, ele despontar como um dos bons nomes da literatura brasileira contemporânea. Afinal, talento e competência para a construção de thrillers dramáticos ele já provou ter. “Alto das Lágrimas” possui um texto elegante, uma trama madura e está recheado de surpresas que são capazes de mexer com as emoções dos leitores. Para um romance de estreia, essa narrativa superou em muito as minhas expectativas.
Além de escritor, Marcelo Coutinho é acadêmico e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Apesar de ser novato na literatura, ele já publicou quatro livros não ficcionais. Nascido em São Luís e criado em Brasília, Coutinho vive no Rio de Janeiro desde 2001. Doutor em Ciências Políticas e Relações Internacionais, o autor já foi Comissário Geral da Cultura Brasileira no Mundo e Diretor de Relações Internacionais do Ministério da Cultura. Atualmente, é diretor do Observatório da Inteligência Artificial. Ele também escreve frequentemente artigos para jornais, é colunista do O Estado do Maranhão e se aventura pela poesia.
Lançado em janeiro de 2018 de forma independente, “Alto das Lágrimas” está disponível nas versões impressa e digital. Como a Autografia é uma editora pequena de autopublicação do Rio de Janeiro, já aviso aos interessados que não é tão fácil assim encontrar este livro nas estantes das livrarias brasileiras. Eu só achei a obra física no site da Livraria Martins Fontes Paulista (para compra online). Por isso, talvez seja mais rápido e fácil a aquisição da obra digital pela Amazon. Isto é, se você tiver o Kindle.
O enredo de “Alto das Lágrimas” começa com uma viagem romântica às montanhas. Um jovem casal de namorados aproveita o final de semana para escapar da rotina agitada da metrópole. Juntos há apenas quatro meses, eles querem viver bons momentos à dois longe dos olhos inquisidores da sociedade. Além disso, os amantes querem se conhecer melhor. Normalmente, seus encontros são rápidos e ocasionais e têm como cenários os impessoais quartos de motel. Por isso, o bate-e-volta (ida no sábado de manhã e retorno no domingo à noite) à cidade serrana os empolga tanto. Nada como o friozinho das montanhas para despertar o romantismo!
Elisa Andreozzi é uma bem-sucedida gerente financeira de um dos maiores bancos do país. Workaholic e perfeccionista no trabalho, a moça de 27 anos tem uma carreira meteórica. Não à toa, ela é uma das funcionárias preferidas da família proprietária da instituição financeira. Elisa é mãe da pequena Maria, de dois anos de idade. A gravidez indesejada aconteceu na época em que ela era estudante universitária e atrasou um pouco sua ascensão profissional (por isso, sua vontade desmedida de recuperar o tempo perdido).
O pai da criança é Henrique Albuquerque, um ex-colega de Elisa do curso de Administração de Empresas. Apesar do nascimento da filha, Elisa e Henrique não se casaram. Cada um seguiu a vida de maneira independente após a obtenção do diploma universitário. Enquanto Elisa namora Eli (um namoro ainda meio xoxo é verdade), Henrique está noivo de Violeta, uma colega de Elisa no banco. Apesar de não ser um pai tão presente, Henrique sempre ajudou financeiramente a filha e manteve um relacionamento respeitoso com a mãe da menina.
Quem viaja para as montanhas com Elisa é Eli, um ex-seminarista. Alguns anos mais velho do que a namorada, ele concluiu recentemente o mestrado ecumênico em um dos mais importantes centros de teologia do país e está agora desempregado. Eli sempre acalentou o sonho de ser padre, mas ainda não está seguro se deve seguir o caminho do sacerdócio. É ele quem narra a história em primeira pessoa. Mesmo querendo ser padre (e sabendo de sua vocação), o rapaz está encantado com o relacionamento com Elisa. Definitivamente, o celibato é algo que não o preocupa nem um pouco.
O sábado do casal caminha à mil maravilhas até Elisa receber uma mensagem da mãe, Dona Dúnia, no comecinho da noite. Pelo celular, a avó de Maria avisa que a menina, que está sob seus cuidados naquele final de semana, está com uma forte e insistente febre. Preocupada com a saúde da neta, Dona Dúnia avisa Elisa que levará a criança para o hospital. Se sentindo culpada por viajar com o namorado justamente no final de semana em que a filha se mostrava adoentada, Elisa encerra o passeio e pede para Eli levá-la imediatamente ao hospital.
A viagem de carro de Elisa e Eli das montanhas para a cidade grande é feita embaixo de um grande aguaceiro. Além da chuva torrencial e da lama na estrada de terra, os namorados enfrentam uma série de percalços no meio do caminho que irão abalá-los consideravelmente. Contudo, nada será páreo para o que vivenciarão no hospital. No centro médico, eles descobrirão os segredos incestuosos das famílias Andreozzi e Albuquerque que culminarão em uma madrugada trágica. A partir deste momento, as vidas de Elisa e Eli nunca mais serão as mesmas. É o início de um drama comovente e recheado de intrigas e surpresas.
“Alto das Lágrimas” é um romance de 224 páginas. O livro está dividido em 30 capítulos. É possível ler esta obra em um único dia. Foi o que fiz no último sábado. Comecei a leitura de manhã e no meio da tarde já a tinha concluído. Devo ter levado pouco mais de cinco horas para percorrer todo o seu conteúdo. A narrativa de Marcelo Coutinho é tão saborosa e intrigante que é difícil interromper a leitura no meio. Praticamente o li em duas sentadas (só parei para almoçar).
O primeiro aspecto que me chamou a atenção neste livro foi a série de passagens reflexivas do narrador. Ele interrompe a trama ficcional o tempo inteiro para inserir comentários, observações e divagações sobre os mais variados assuntos. Não é errado enxergarmos esta obra como pot-pourri de crônicas e de ensaios sobre as incongruências da vida contemporânea. Curiosamente, esses trechos mais analíticos e existencialistas não atrapalham em nada o ritmo da narrativa. Pelo contrário: eles ajudam na construção da ambientação, na composição da psique do narrador-protagonista e na contextualização da trama. Incrível ver esse expediente literário tão bem-feito (e que infelizmente vem sendo tão pouco explorado na maioria dos títulos comerciais mais recentes).
Marcelo Coutinho aborda ora de maneira mais filosófica ora com uma pegada mais informal as seguintes temáticas em “Alto das Lágrimas”: os desafios dos relacionamentos modernos; as angústias de homens e mulheres perante as novas dinâmicas sociais; as diferentes estruturas das famílias pós-modernas; a dicotomia entre religião e ciência; as características do mercado de trabalho nos tempos de capitalismo feroz; a ressignificação das partes do Espírito Santo em uma perspectiva mais feminista; os diferentes tipos de pecados bíblicos; a retrospectiva histórica do incesto; os choques geracionais; o empoderamento feminino tanto no ambiente de trabalho quanto nas demais esferas sociais; os efeitos deletérios da tecnologia na vida das pessoas comuns; e as consequências práticas do celibato para os padres.
Mesmo diante de um panorama tão multitemático, o assunto central deste romance é, sem dúvida nenhuma, a questão do incesto. Vale a pena ressaltar que esse tema é delicadíssimo de ser utilizado na literatura. Lembremos as polêmicas envolvendo, por exemplo, “Lavoura Arcaica” (Companhia das Letras), a novela mais celebrada de Raduan Nassar (paixão entre irmãos), “Proibido” (Valentina), título da britânica Tabitha Suzuma (amor carnal entre irmãos), “Lolita” (Alfaguara), obra mais conhecida do russo Vladimir Nabokov (obsessão sexual do padrasto pela filha adotiva menor de idade), e, em uma volta ainda maior no tempo, “Édipo Rei” (Clássicos Zahar), clássico do grego Sófocles (casamento do filho com a mãe).
Sabendo do quão arriscado é utilizar esse assunto na ficção (para cada obra que deu certo, existem milhares que fracassaram), é bom ver que Coutinho se saiu muitíssimo bem. Ele tirou de letra o complicado desafio de tratar o incesto – seu texto tem uma pegada original (mistura de romance com ensaio), corajosa (coloca o dedo em várias feridas sociais) e elegante (e põe elegância nisso!). Dessa forma, “Alto das Lágrimas” está longe de ser uma publicação panfletária, sensacionalista ou com polêmicas vazias. A obra é coerente, autoexplicativa, rica e com um enredo excitante. Em outras palavras, Marcelo Coutinho conseguiu fugir dos perigos naturais de um tópico tão controverso e, ainda por cima, entregou uma história criativa e com um ótimo conteúdo.
Outra questão para ser elogiada neste romance é a construção das cenas. Há várias passagens muito bem executadas. Um bom exemplo disso é a cena inicial. Ela é impecável – o carro entalado na estrada lamacenta e o desespero de seus ocupantes para concluir a viagem o quanto antes. Ao mesmo tempo em que acompanhamos os acontecimentos objetivos do presente (retorno apressado dos namorados para a cidade grande), somos levados aos meandros dos pensamentos do narrador-protagonista e aos dramas antigos de Elisa e de sua família. Tudo isso é embalado com os mistérios de acontecimentos mal explicados (ou não justificados pela ciência) e pelas reflexões existencialistas do narrador (que embelezam a trama). Impossível não gostar deste tipo de literatura.
Outro trecho memorável é o capítulo 7. Nele, Marcelo Coutinho faz uso das comparações de um jeito maravilhoso. É verdade que o autor maranhense usa esse recurso muito bem em todo o livro (à la Marcel Proust). Porém, no capítulo 7 especificamente, ele chega ao ápice da beleza textual. Associar o desenvolvimento físico e mental de Elisa Andreozzi à formação das cadeias montanhosas é simplesmente sublime. Juro que não consigo imaginar um jeito melhor de descrever as características desta personagem. Por mais surrealista que pareça essa comparação (mulher e montanha), ela é perfeita neste caso!
Também gostei muito das misturas antagônicas promovidas ao longo de “Alto das Lágrimas”. Repare nas contradições entre as referências religiosas que inundam a história (afinal, o protagonista é um homem religioso) e as altas doses de erotismo da narrativa (Eli não pensa duas vezes antes de pular na cama das mulheres que ama). Nesse sentido, o romance todo possui muitos significados ocultos (por exemplo, a ida à montanha é quase uma subida ao Céu Mundano, onde o narrador pode dar vazão às suas vontades mais carnais). Um leitor mais atento irá apreciar as descobertas polissêmicas deste livro.
Ainda no quesito “misturas antagônicas”, há também uma preocupação de explicar o mundo pelo olhar científico (o que por si só já é contraditório com a crença no Deus cristão onipresente e onisciente) ao lado de passagens fantásticas (febres de Maria são prenúncios de tempos difíceis para sua família, surgimento de figuras de aspectos sobrenaturais, coincidências diabolicamente assustadoras...). Adorei esses choques (religião versus ciência e realidade versus fantasia). Não dá para ler “Alto das Lágrimas” sem encarar suas séries de contradições (Deus versus pecado, família versus sexo, vida profissional versus vida pessoal etc.).
Em relação à estrutura narrativa, este livro de Marcelo Coutinho tem duas partes bem definidas. A primeira se passa na noite/madrugada trágica em que Elisa descobre o incesto involuntário. Essa parte se estende por metade das páginas do romance. Gostei mais desta seção inicial da trama pois ela foi desenvolvida inteiramente com personagens redondas e sem qualquer maniqueísmo (prova de que Coutinho é sim um ótimo escritor). Após a descoberta dos segredos pecaminosos das famílias Andreozzi e Albuquerque, o leitor é jogado vários anos à frente na linha do tempo. Nessa segunda parte de “Alto das Lágrimas”, assistimos a Eli cuidando sozinho de Maria, agora uma adolescente. Apesar do ritmo narrativo e da constituição da trama se mantiverem em bom nível, nota-se que o surgimento de personagens caricatas (leia-se planas) e de um forte maniqueísmo acabam atrapalhando um pouco o enredo. Mesmo assim, o resultado é para lá de satisfatório.
Outra questão que merece um elogio à parte é o projeto gráfico de “Alto das Lágrimas”, principalmente sua capa. A ilustração estampada na capa é impactante e belíssima. Além disso, ela traz sutilmente muitas questões levantadas pela história. Admito que após encerrar a leitura, fiquei contemplando a imagem da capa em busca das referências narrativas. É muito legal quando uma capa chama nossa atenção não apenas antes da leitura, mas também depois. Não me recordo da última vez que isso tenha ocorrido comigo.
Para quem gosta de comentários intertextuais (sempre há um maluco como eu que faz essas relações), “Alto das Lágrimas” me lembrou, em determinados momentos, “Pássaros Feridos” (Bertrand Brasil), o romance mais celebrado de Colleen McCullough. A partir desse ponto de vista, Eli seria a versão nacional e mais moderna de Ralph de Bricassart. Se a personagem australiana sofreu consideravelmente para equilibrar sua vocação sacerdotal com a paixão por Meggie Cleary, o protagonista brasileiro não pareceu tão preocupado em ultrapassar as linhas da profanação do corpo (seus relacionamentos com Elisa e Eleonora são provas cabais desse desprendimento).
Por falar em Eli, considerei ótima a construção das personagens deste livro. Além do narrador-protagonista, quase todas as personagens de “Alto das Lágrimas” são figuras redondas (possuem simultaneamente características positivas e características negativas). Ou seja, não há ninguém totalmente bonzinho e não tem ninguém inteiramente mauzinho. A única exceção parece ser Violeta, a grande vilã desta história. A noiva de Henrique é descrita quase como uma bruxa dos contos de fadas (ela me lembrou a madrasta da Cinderela). O problema da composição de Violeta como personagem é que ela é muito caricata e não tem qualquer nuance (a moça só tem defeitos e nenhuma virtude). Achei que “Alto das Lágrimas” merecia uma antagonista com maior riqueza de características. Se ela fosse uma personagem redonda, talvez o livro de Coutinho ganhasse ainda mais em dimensão dramática.
Outro defeito deste livro está nos errinhos textuais e de digitação. Infelizmente, eles aparecem em algumas páginas. Uma obra como esta merecia uma revisão mais atenta tanto por parte da editora quanto de seu autor. É verdade que esses tropeções não afetam em nada a experiência de leitura (os errinhos são bem pontuais). Contudo, para um leitor mais exigente, essas falhas podem incomodar um pouco.
Confesso ter ficado embasbacado com a qualidade do texto de “Alto das Lágrimas”. Saibam que quando Marcelo Coutinho – não o confundir com Marcelo Moutinho, autor de “Ferrugem” (Record) – publicar uma nova obra ficcional, vou correr para comprá-la. Quero ver se as novas produções do escritor maranhense irão continuar nesse alto padrão estético. Quem gosta de literatura, deve acompanhar os próximos passos desse talentoso autor.
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