Músicas: Cinquentenário do II Festival de Música Popular Brasileira da TV Record
- Ricardo Bonacorci
- 14 de set. de 2016
- 5 min de leitura
Atualizado: 13 de dez. de 2020

Você é "A Banda" ou é "Disparada"?. Esta era uma pergunta corriqueira nas ruas do país há exatos cinquenta anos. Naquela época, a população brasileira estava polarizada não pela política, como nos dias de hoje, e sim pela música. As canções compostas por Chico Buarque e por Geraldo Vandré/Theo de Barros dividiam corações. A mobilização foi tamanha que as duas canções ganharam torcidas apaixonadas. Isso era reflexo da popularidade do Festival da Música Popular Brasileira da TV Record. Em sua segunda edição, realizada entre setembro e outubro de 1966, os principais compositores e interpretes do país apresentavam suas novidades em busca do Prêmio Viola de Ouro, entregue para a melhor música.

Naquele festival, realizado no Teatro Record, na cidade de São Paulo, foram ao palco Elza Soares cantando "De amor ou paz" (de Luís Carlos Paraná e Adauto Santos), Jair Rodrigues com "Canção para Maria" (Paulinho da Viola e Capinam), o grupo MPB-4 interpretando "Canção de Não Cantar" (de Sérgio Bittencourt), Elis Regina com "Ensaio Geral" de Gilberto Gil) entre outros. Contudo, quem chamou mais a atenção dos jurados e do público foi Nara Leão cantando "A Banda" (de Chico Buarque) e Jair Rodrigues com "Disparada" (Geraldo Vandré e Theo de Barros).
"Disparada" foi a canção de protesto mais enfática feita no país até então. Era o início da Ditadura Militar e começavam a pipocar músicas contra o golpe de 1964. Na voz grossa e potente de Jair Rodrigues, que vivia seu auge como interprete, a canção ganhava mais força. A letra de Geraldo Vandré (a melodia é de Theo de Barros) fazia uma comparação entre a vida das pessoas e a vida do gado. Assim, como a boiada era confinada e conduzida coercitivamente, o personagem da música, um vaqueiro, era oprimido pelos patrões. Os fazendeiros não eram apenas donos dos animais e das terras, mas também das pessoas. O vaqueiro queria sua liberdade. "Na boiada já fui boi, boiadeiro já fui rei/ Não por mim nem por ninguém, que junto comigo houvesse/ Que quisesse ou que pudesse, por qualquer coisa de seu/Por qualquer coisa de seu, querer ir mais longe do que eu" diz o desfecho da canção, livrando o personagem do aprisionamento ideológico imposto pelos patrões. Veja a seguir a interpretação de Jair Rodrigues no Festival de 1966 e a letra completa da música:
"Disparada" (Geraldo Vandré/Theo de Barros):
Prepare o seu coração
Pras coisas
Que eu vou contar
Eu venho lá do sertão
Eu venho lá do sertão
Eu venho lá do sertão
E posso não lhe agradar
Aprendi a dizer não
Ver a morte sem chorar
E a morte, o destino, tudo
A morte e o destino, tudo
Estava fora do lugar
Eu vivo pra consertar
Na boiada já fui boi
Mas um dia me montei
Não por um motivo meu
Ou de quem comigo houvesse
Que qualquer querer tivesse
Porém por necessidade
Do dono de uma boiada
Cujo vaqueiro morreu
Boiadeiro muito tempo
Laço firme e braço forte
Muito gado, muita gente
Pela vida segurei
Seguia como num sonho
E boiadeiro era um rei
Mas o mundo foi rodando
Nas patas do meu cavalo
E nos sonhos
Que fui sonhando
As visões se clareando
As visões se clareando
Até que um dia acordei
Então não pude seguir
Valente em lugar tenente
E dono de gado e gente
Porque gado a gente marca
Tange, ferra, engorda e mata
Mas com gente é diferente
Se você não concordar
Não posso me desculpar
Não canto pra enganar
Vou pegar minha viola
Vou deixar você de lado
Vou cantar noutro lugar
Na boiada já fui boi
Boiadeiro já fui rei
Não por mim nem por ninguém
Que junto comigo houvesse
Que quisesse ou que pudesse
Por qualquer coisa de seu
Por qualquer coisa de seu
Querer ir mais longe
Do que eu
Mas o mundo foi rodando
Nas patas do meu cavalo
E já que um dia montei
Agora sou cavaleiro
Laço firme e braço forte
Num reino que não tem rei
Na boiada já fui boi
Boiadeiro já fui rei
Não por mim nem por ninguém
Que junto comigo houvesse
Que quisesse ou que pudesse
Por qualquer coisa de seu
Por qualquer coisa de seu
Querer ir mais longe
Do que eu
Mas o mundo foi rodando
Nas patas do meu cavalo
E já que um dia montei
Agora sou cavaleiro
Laço firme e braço forte
Num reino que não tem rei

"A Banda", por sua vez, era o oposto, uma canção de contraprotesto. Composta pelo até então desconhecido Chico Buarque (na época um estudante universitário de classe média que tentava seus primeiros passos na carreira musical), a letra propunha uma busca pela simplicidade da vida cotidiana em oposição a obsessão panfletária que tomava conta do país. A passagem de uma banda de música pela cidade muda o cotidiano das pessoas por alguns instantes. Esta fração do tempo é suficiente capaz de alimentar o coração e os sonhos dos habitantes, que se esquecem dos seus problemas, das suas frustrações e da violência dos militares. Assim, "A Banda" é uma manifesto lírico de um Brasil poético e humano. Cantando pela voz doce da carismática Nara Leão, a canção rapidamente chega ao sucesso. O disco com a música vendeu em uma semana mais de 100 mil exemplares em setembro de 1966. Veja a seguir a interpretação de Chico Buarque e Nara Leão na final do Festival e a letra da música na íntegra.
"A Banda" (Chico Buarque):
Estava à toa na vida
O meu amor me chamou
Pra ver a banda passar
Cantando coisas de amor
A minha gente sofrida
Despediu-se da dor
Pra ver a banda passar
Cantando coisas de amor
O homem sério que contava dinheiro parou
O faroleiro que contava vantagem parou
A namorada que contava as estrelas
Parou para ver, ouvir e dar passagem
A moça triste que vivia calada sorriu
A rosa triste que vivia fechada se abriu
E a meninada toda se assanhou
Pra ver a banda passar
Cantando coisas de amor
Estava à toa na vida
O meu amor me chamou
Pra ver a banda passar
Cantando coisas de amor
A minha gente sofrida
Despediu-se da dor
Pra ver a banda passar
Cantando coisas de amor
O velho fraco se esqueceu do cansaço e pensou
Que ainda era moço pra sair no terraço e dançou
A moça feia debruçou na janela
Pensando que a banda tocava pra ela
A marcha alegre se espalhou na avenida e insistiu
A lua cheia que vivia escondida surgiu
Minha cidade toda se enfeitou
Pra ver a banda passar cantando coisas de amor
Mas para meu desencanto
O que era doce acabou
Tudo tomou seu lugar
Depois que a banda passou
E cada qual no seu canto
Em cada canto uma dor
Depois da banda passar
Cantando coisas de amor
Depois da banda passar
Cantando coisas de amor

O público ficou completamente dividido no auditório ao ouvir estas duas canções que se tornaram, mais tarde, clássicas de nossa cultura popular. Metade dos presentes queria que "A Banda" vencesse. A outra parte queria que a vitoriosa fosse "Disparada". A expectativa pela decisão só aumentou quando os jurados declaram que precisavam de mais tempo para julgar. Desta forma, a decisão final foi postergada em algumas semanas.
Em outubro de 1966, o auditório da Record em São Paulo esteve novamente lotado. O primeiro colocado seria, enfim, anunciado. Na frente da televisão, milhões de pessoas acompanhavam a cerimônia. Os jornais divulgavam em suas manchetes o evento. O clima era parecido ao de uma final de campeonato de futebol, com as duas torcidas fazendo barulho e vibrando pela sua canção favorita. A rivalidade era tanta que uma torcida chegava a vaiar efusivamente a outra quando esta era cantada. Isso fica evidente no vídeo em que Chico Buarque e Nara Leão cantam "A Banda". Para evitar uma vaia maior de sua torcida aos adversários, Jair Rodrigues educadamente fica ao lado de Chico e Nara batendo palmas e cantarolando a música rival.

Ao final das apresentações, saiu o resultado. O primeiro lugar ficou com "A Banda" e com "Disparada". O empate foi a única solução encontrada para elucidar a dúvida de qual era melhor. Pela primeira (e única vez), o Festival terminou empatado com dois vencedores. Nada mais justo.
Este era o Brasil de cinquenta anos atrás.
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