O Desafio Literário deste mês de julho começa suas análises pela obra de estreia de Haruki Murakami. A novela "Ouça a Canção do Vento" (Alfaguara) foi escrita em 1978 e publicada naquele mesmo ano. O livro resultou no primeiro prêmio literário da carreira do autor japonês. A premiação da revista Gunzo oferecida aos melhores escritores amadores do Japão e a boa receptividade da crítica do país fizeram com que o jovem Murakami, então com 30 anos de idade, escrevesse a continuação dessa história. Em 1980, chegava às livrarias "Pinball, 1973" (Alfaguara), a segunda novela do autor. O novo sucesso levou Haruki Murakami a vender o bar de Jazz que administrava em Tóquio há quase uma década e concentrar sua atenção na literatura comercial.
Curiosamente, os leitores brasileiros só tiveram acesso às narrativas de estreia do mais popular escritor japonês da atualidade no ano passado. No finalzinho de 2016, a Alfaguara, editora com os direitos de publicação das obras de Murakami no país, lançou um livro que contém as duas novelas. O interessante é que a dupla "Ouça a Canção do Vento" e "Pinball, 1973" fez parte de um projeto editorial especial. Além das histórias terem sido traduzidas diretamente do japonês (mantendo, assim, grande parte do estilo do autor), o acabamento da nova edição é primoroso. Para completar, o livro contou com um prefácio escrito pelo próprio Haruki Murakami para a ocasião. Nele, o escritor narra em qual contexto produziu suas primeiras histórias e como se transformou em um autor profissional.
Neste post, vou comentar "Ouça a Canção do Vento", enquanto na segunda-feira que vem, dia 10, comentarei "Pinball, 1973".
O enredo de "Ouça a Canção do Vento" se passa no verão de 1970. Quem narra a trama (em primeira pessoa) é um estudante de biologia de vinte anos de idade. Aproveitando o recesso universitário, ele retorna para sua pequena cidade natal onde ficará por dezoito dias. Enquanto está de férias, o rapaz passa o dia fumando e bebendo na companhia do seu antigo amigo, Rato. Ambos são fregueses assíduos do J's Bar. J é um chinês que imigrou para o Japão há muitos anos. O proprietário do estabelecimento é conhecido apenas pelo seu apelido (composto por uma única letra).
Se isso causa alguma estranheza a você, saiba que o protagonista não tem seu nome revelado durante toda a história. Também não sabemos como Rato se chama (Rato é um apelido) nem conhecemos o nome da cidade litorânea onde a narrativa se passa. Muitos outros personagens aparecem e saem da novela sem que saibamos suas denominações. A impessoalidade das personagens (representada pela ausência de nomes próprios) é uma das marcas da obra.
Quando o narrador não está no bar bebendo e fumando, ele fica parado em algum lugar contemplando a paisagem ou pensando em suas antigas namoradas. O único momento em que se quebra o enredo estático e banal do livro ocorre quando o protagonista acorda, em certa manhã, no apartamento de uma jovem muito estranha. Ambos despertam nus e sem saber o que aconteceu para terem chegado ali naquela situação. Obviamente, a noite anterior foi regada a muita bebida alcoólica pelos dois (ao menos isso eles se recordam).
Depois da constrangedora apresentação, a dupla tenta demonstrar alguma naturalidade, seguindo suas vidas de maneira independente. Porém, após alguns encontros ocasionais pela cidade nos dias seguintes, novamente o casal se aproximada, passando a se ver rotineiramente. A expectativa do leitor é que se inicie, assim, um novo romance. Será que o protagonista irá deixar a solidão de lado e vai ficar com a não menos solitária moça da cidade?
O que chama a atenção logo de cara em "Ouça a Canção do Vento" é o caráter desconexo da narrativa. O protagonista conta a história à medida que vai se lembrando das emoções vividas. Os capítulos são curtos e não seguem uma sequência cronológica. Ao invés de optar pela descrição dos fatos, o autor opta por expor suas emoções, por mais contraditórias e subjetivas que possam parecer. Assim, cabe ao leitor a responsabilidade de compor mentalmente a trama e ordená-la logicamente.
Ao mesmo tempo, a novela possui uma pegada reflexiva e um tanto onírica. O contexto narrativo é ancorado no cotidiano das personagens. Não há muitos nem significativos acontecimentos se sucedendo no livro. Tudo se baseia em uma entediante repetição do dia a dia. É nas pequenas e banais cenas da vida diária que as personagens refletem sobre a razão das suas existências e exprimem suas angústias mais íntimas. O medo da morte, a indefinição quanto ao futuro, a busca pelo amor verdadeiro, a dificuldade de relacionamento, a frieza emocional da sociedade contemporânea, a dificuldade da transição da adolescência para a vida adulta, a busca pela aptidão profissional e o saudosismo em relação a um passado que não voltará nunca mais são alguns dos temas discutidos.
Neste cenário, é inegável o caráter confuso das personagens. Tanto o narrador quanto Rato, J e a moça do apartamento são figuras solitárias, melancólicas, reprimidas, indecisas e temerosas. A baixa autoestima é geral. A baderna mental da qual sofrem é representado pelo imobilismo dos seus atos. Nada acontece em suas vidas e as personagens também não procuram realizar nada de especial. O cotidiano vazio e repetitivo consegue "matar" todos os sonhos e os desejos mais nobres dos indivíduos. Os raros instantes de ação surgem de lembranças do passado ou em reflexões existencialistas sobre a vida. Assim, a morte/suicídio, a fuga da cidade/sociedade ou uma nova relação sexual são as únicas soluções capazes de amenizar a melancolia geral.
Outra característica marcante de Haruki Murakami e presente do começo ao final de "Ouça a Canção do Vento" é a intensa citação a elementos da cultura pop. Neste caso, a música e a literatura (duas grandes paixões do escritor) destacam-se. Além das referências a canções e livros, também há uma infinidade de citações a filmes, programas de televisão, games, esportes e hábitos de lazer e entretenimento típicos da década de 1960 e 1970. Muitos desses elementos marcaram tanto os japoneses quanto as sociedades ocidentais. Ler Murakami é mergulhar na riqueza da cultura popular contemporânea.
A inclusão de elementos da cultura pop na literatura e a construção de personagens deslocados/perdidos no espaço temporal fez com que eu me lembrasse, durante a leitura de "Ouça a Canção do Vento", de Nick Hornby. O escritor inglês gostava de construir histórias de adultos infantilizados e que eram fortemente influenciados pela cultura pós-moderna. A diferença entre os autores é que Murakami fez isso uma década antes de Hornby e ainda acrescentou forte carga reflexiva e simbólica às suas tramas. As históricas do japonês também possuem mais cenas de sexo e reflexões sobre a sexualidade de suas personagens.
Por ter sido fortemente influenciado pela cultura norte-americana e europeia (regiões onde o escritor morou), Haruki Murakami sempre foi visto como um autor mais ocidentalizado do que um escritor essencialmente japonês. Ao inserir elementos internacionais às suas obras, as narrativas de Murakami adquirem um aspecto mais universal (e, portanto, menos regional).
Outra característica que merece ser comentada é a linguagem simples utilizada por Murakami. O escritor usa frases e orações curtas e com pouca variedade lexical. Trata-se de uma literatura objetiva e muito clara. Em "Ouça a Canção Vento", você não encontrará, por exemplo, paráfrases. Esqueça também a variedade de adjetivos e de advérbios. Se você achar uma construção sintática complexa no meio do texto, saiba que você deve ter pulado, inadvertidamente, alguma linha da página. Por isso, volte na leitura e a faça corretamente.
A maneira encontrada por Murakami para desenvolver textos enxutos e diretos é um tanto engraçada. Ele primeiro escreve em inglês (língua em que possui intimidade, mas não grande repertório linguístico) para só depois "traduzir" para o idioma japonês (sua língua materna). Assim, ele acredita conseguir extrair "a essência das palavras e das ideias", sem recorrer o risco de ser muito descritivo ou redundante.
Gostei de "Ouça a Canção do Vento". Essa é uma novela com aspectos experimentais que apresenta uma reflexão poética e emotiva da vida dos jovens japoneses na década de 1970. A melancolia do cotidiano moderno e os medos das pessoas inseguras, desiludidas, solitárias e confusas expressam o tom sombrio da existência do homem contemporâneo.
Apesar do sucesso dessas primeiras histórias e da cada vez maior procurada dos leitores no mundo inteiro pelas obras iniciais da carreira do popular autor japonês, Haruki Murakami nunca viu com bons olhos essas suas novelas de estreia. Tanto "Ouça a Canção do Vento" quanto "Pinball, 1973" ficaram muitos anos sem novas edições (inclusive no Japão) por imposição do escritor. Murakami considera sua primeira obra literária efetiva o romance "Caçando Carneiros" (Alfaguara), de 1982.
A explicação para isso se deve ao fato de "Ouça a Canção do Vento" e "Pinball, 1973" terem sido escritas quando Murakami ainda não era um escritor profissional. Ele produziu essas novelas rapidamente (seis meses cada uma) em um período em que administrava seu bar. Com os dias e as noites corridos pelo empreendimento, ele usava as madrugadas para escrever. O local escolhido para isso foi a mesa da cozinha de sua casa. Exatamente por esta condição, ele chama, de forma um tanto pejorativa, essas duas primeiras histórias de "novelas de mesa de cozinha".
Sinceramente, não vejo motivos para essa vergonha ou reticências de Murakami. Obviamente, "Ouça a Canção do Vento" não é uma obra-prima nem é fruto de uma literatura madura e evoluída de seu autor. Porém, a novela está muito distante de ser um livro fraco que mereça ser renegado ao esquecimento. Encaro-a como uma ótima experiência estética de um escritor iniciante. Como primeira obra ficcional, ela é muito boa. Quem dera se todo texto amador tivesse essa qualidade e profundidade!
Na próxima segunda-feira, volto ao Blog Bonas Histórias para comentar a sequência dessa história. Não perca a análise de "Pinball, 1973", outra "novela de mesa de cozinha" de Murakami!
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