Neste mês de junho, a coluna Teoria Literária apresenta o quinto elemento da narrativa ficcional, a Ambientação. Conforme o Bonas Histórias vem discutindo desde janeiro, são onze os elementos constituintes da prosa ficcional: Enredo, Personagem, Espaço Narrativo, Tempo Narrativo, Ambientação, Realidade Ficcional, Narrador, Linguagem, Discurso, Textualidade e Tipologia (BONACORCI, 2018). Em cada um dos meses de 2019, iremos estudar um desses componentes. Em maio foi a vez do Tempo Narrativo. Em julho, será a vez da Realidade Ficcional. No post de hoje, vamos tratar da Ambientação.
Também chamada de Ambiente, a Ambientação é parte fundamental da construção da prosa ficcional. Infelizmente, muitas pessoas confundem esse conceito com o Espaço Narrativo, não vendo qualquer diferença entre eles. Trata-se de um erro grave que o analista literário não pode cometer em seu trabalho.
A Ambientação pode ser descrita como o lugar "carregado de características socioeconômicas, morais e psicológicas onde vivem as personagens" (GANCHO, 2014, p.27). Ou seja, enquanto o Espaço Narrativo, de modo geral, refere-se às descrições físicas e geográficas de determinada localidade ficcional, a Ambientação constitui o lugar psicológico, social, econômico, religioso e moral onde acontecem as ações da trama. Portanto, a Ambientação extrapola em muito a representação objetiva do lugar.
Qual o Espaço Narrativo onde se passa Vidas Secas, romance de Graciliano Ramos publicado em 1938? O Espaço dessa trama é o Sertão Nordestino. Ele pode ser composto pela descrição física e geográfica dessa região do Brasil. No caso: seca, pobreza material, calor, grandes campos abertos, pouca vegetação natural, baixo número de animais, sol forte, escassez de comida. O Espaço Narrativo pode ser classificado como aberto (as ações são realizadas na maior parte do tempo no campo e ao ar livre) e rural (enredo construído em fazendas e pequenas cidades sertanejas).
E qual o Ambiente de Vidas Secas? Nesse caso, a Ambientação do romance é composta pela união de pobreza material, desigualdade econômica, injustiça social, violência, luta pela sobrevivência, brutalidade policial, carência afetiva e aflorado instinto de sobrevivência. O Ambiente do livro, assim sendo, abrange muito mais aspectos sociais do que a simples caracterização física do Espaço Narrativo.
A Ambientação é um conceito que une ou aproxima, de certa maneira, o Tempo Narrativo e o Espaço Narrativo (os dois últimos componentes da Narrativa analisados na coluna Teoria Literária). Além de ser a confluência desses dois aspectos, o Ambiente possui um elemento adicional: o clima.
Clima, neste caso, não é a temperatura ambiente ou a condição meteorológica de uma região geográfica (elementos esses integrantes do Espaço Narrativo). Ele pode ser entendido, aqui, como o conjunto de elementos que dão o tom a uma trama ficcional. O clima de uma história não apenas impacta as ações, as crenças e a mentalidade das personagens como também traz efeitos estéticos à narrativa, afetando o comportamento do leitor durante a experiência de leitura. Para Cândida Vilares Gancho, a Ambientação integra os conceitos de Tempo, Espaço e Clima (2014, p.27).
A constituição do Ambiente é vital para a criação de boas histórias, para a verossimilhança da trama, para a conexão com o leitor e para a amarração dos vários componentes da narrativa. Isso fica evidente no romance O Morro dos Ventos Uivantes, única obra da carreira da inglesa Emily Brontë. A Ambientação é quem melhor consegue retratar as frustrações do amor não correspondido de Heathcliff pela irmã adotiva Catherine Earnshaw. Também é quem melhor descreve as humilhações e a raiva presentes no coração de Heathcliff.
O Espaço onde a trama de Emily Brontë se passa é uma grande residência rural localizada em Gimmerton, Yorkshire, no interior da Inglaterra. O Tempo é essencialmente cronológico - a história narrada se passa entre 1771 e 1803. Contudo, o elemento essencial de O Morro dos Ventos Uivantes é o clima gótico do século XVIII. As residências escuras, grandes, frias e, muitas vezes, abandonadas e o tom opressor e violento da sociedade agrária e patriarcal daquela região da Europa intensificam o ar sombrio do enredo. Sem a Ambientação pesada na qual sua trama está envolta, esse famoso romance perderia grande parte de seu atrativo.
O Ambiente, em um romance, pode possuir até quatro funções determinantes (GANCHO, 2014, p. 28-29). Primeiramente, ele situa as personagens no tempo, no espaço e no grupo social, contextualizando a trama. Depois, ele faz a projeção dos conflitos vividos pelas personagens. Em terceiro lugar, a Ambientação, em um nível mais intenso, se opõe às personagens estabelecendo os conflitos. E, por fim, fornece índices para o andamento do enredo, como pistas para as investigações policiais ou elementos para intensificar o suspense e o terror da narrativa.
Conhecer a Ambientação de uma trama é desvendar parte da experiência estética proposta por um autor durante sua construção ficcional.
Bibliografia:
BONACORCI, Ricardo. Análise Literária dos Romances de Rubem Fonseca - Investigando a Nova Literatura Brasileira. Projeto de Iniciação Científica. Varginha: Centro Universitário do Sul de Minas (UNIS-MG), 2019.
GANCHO, Cândida Vilares. Como Analisar Narrativas. 9a ed., Série Princípios, São Paulo: Ática, 2014.
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