No último sábado, fui ao SESC Avenida Paulista para ver a exposição “Gold – Mina de Ouro Serra Pelada”. A mostra apresenta uma das coletâneas fotográficas mais famosas de Sebastião Salgado, o principal fotógrafo brasileiro da atualidade. Conhecido internacionalmente por seus trabalhos relacionados à ecologia e à denúncia social, Salgado ficou um mês em Serra Pelada, então o maior garimpo à céu aberto do mundo, na década de 1980. É verdade que ele não foi o primeiro fotógrafo a chegar a esta região da Amazônia paraense que vivia na época a “febre do ouro”. Porém, seus registros rodaram o mundo e serviram de afirmação para o então jovem artista. Eu conheci essas imagens ainda na escola. No final dos anos de 1980, estava no ensino fundamental e meus livros escolares já estampavam algumas dessas fotografias de Sebastião Salgado. Muitas delas não saíram mais de minha mente e se transformaram em símbolo do Brasil daquela década.
Não é errado afirmar que a trajetória de Salgado como fotógrafo independente mudou radicalmente depois de Serra Pelada. Até os anos de 1970, ele atuou como contratado de algumas das principais agências de fotografia do mundo: Sygma, Gamma e Magnum. Seus trabalhos naquele momento eram mais voltados para a cobertura de eventos políticos. Nos anos de 1980, há a grande guinada em sua carreira. Sebastião Salgado passa a visitar os recôncavos da África e da América Latina em busca do registro da pobreza e das injustiças sociais. E as imagens de Serra Pelada representam indiscutivelmente o ápice desta proposta ideológico-artística. As fotografias tiradas no garimpo do Pará transformaram-se em livro fotográfico e em exposições. Ambos rodaram o planeta. Agora, “Gold – Mina de Ouro Serra Pelada” do SESC resgata um pouco da memória deste trabalho histórico do brasileiro.
A mostra “Gold” possui cerca de 50 fotografias. Elas denunciam a realidade assustadora no garimpo paraense. O cenário grandioso, onde a multidão de trabalhadores se apequena (em muitas tomadas, a sensação é de vermos um formigueiro), é repleto de violência, descaso, condições insalubres, desumanidade e agressões ao meio ambiente. Ora as imagens são feitas em zoon out, ora em zoon in. Esse contraste entre o longe/grandioso/impessoal e o perto/arrebatador/individual é o elemento mais interessante desta exposição. De longe, vemos o drama social de um país que vivia a quimera pelo enriquecimento fácil e rápido. De perto, notamos a abissal distância entre o sonho e a realidade. O cotidiano desses brasileiros era constituído, na verdade, de uma brutalidade indescritível (ao menos em palavras, pois a câmera de Sebastião Salgado conseguiu fazer esse registro). Para completar, o uso do P&B (preto e branco) pelo fotógrafo acentuou ainda mais o drama humano no interior da Amazônia. Simplesmente incrível!
Serra Pelada chegou a abrigar, na década de 1980, 50 mil pessoas. Elas eram atraídas pelo sonho de encontrar ouro e enriquecer rapidamente. Contudo, o dia a dia no garimpo não tinha nada de idílico. Os trabalhadores viviam em um sistema análogo à escravidão. Não havia qualquer segurança ocupacional nem infraestrutura básica. Os perigos e a precariedade eram rotina tanto no campo de extração quanto no alojamento. Era a polícia quem precisava apartar as brigas que aconteciam a todo instante (afinal, eram milhares de pessoas disputando cada centímetro quadrado de terra). Uma vez retirada a saca de terra do garimpo, o trabalhador precisava percorrer uma longa distância para saber se ali continha alguma pedra preciosa ou não. Tal deslocamento era feito com a carga nas costas ou na cabeça (as mãos eram usadas para apoiar o corpo). O trabalhador utilizava-se, acredite se quiser, unicamente cordas e madeiras rudimentares durante o trajeto de montanha acima e de montanha abaixo. As imagens fotográficas da exposição são chocantes pois elas denunciam essa realidade atroz.
De certa maneira, as fotografias de Sebastião Salgado adquirem um tom de fábula dolorosa. Elas registram um momento histórico do país e, ao mesmo tempo, possuem uma contundência estética ímpar. Nunca o feio e o triste se transformaram em algo tão magnífico e belo do ponto de vista artístico. Contudo, do ponto de vista social, vale a pena ressaltar, Serra Pelada foi uma calamidade pública e vergonha até hoje para o Brasil. Assim, nas imagens do fotógrafo, os homens ganham tons animalescos. Os braços e as pernas musculosas dos trabalhadores e a combinação de pobreza e sujeira desses indivíduos, em muitos momentos, lembram as telas de Candido Portinari. Se procurar bem, o visitante da mostra poderá encontrar nas versões fotográficas de Salgado elementos típicos de “Os Retirantes” e de “O Café”, os quadros mais conhecidos de Portinari.
É difícil dizer o que mais chama nossa atenção nas imagens de Sebastião Salgado: a brancura dos olhos dos trabalhadores (muitas vezes, ela é o único sinal de humanidade destes homens), a lama que se acumula nas roupas, o fluxo intenso de pessoas em um labirinto formado por cordas e pontes informais de madeira, a dimensão bíblica ou faraônica do garimpo, a musculatura robusta dos corpos desses indivíduos castigados pelo esforço físico extremo ou a falta de verde (lembremos que estamos no meio da Amazônia).
As fotos de Salgado são apresentadas em grandes painéis. Elas ocupam o quinto andar inteiro do prédio do SESC da Avenida Paulista. As grandes dimensões das fotografias permitem ao visitante da mostra mergulhar nos detalhes das imagens do fotógrafo brasileiro. Por isso, reserve ao menos uma hora para sua visitação. Na certa, você ficará arrebatado na frente de tomadas de tirar o fôlego.
A exposição “Gold – Mina de Ouro Serra Pelada” foi inaugurada no dia 17 do mês passado e estará em cartaz até o dia 3 de novembro. A entrada é gratuita. Com curadoria de Lélia Wanick Salgado, esposa do fotógrafo brasileiro, a mostra traz um mix entre as mais famosas imagens de Sebastião Salgado feitas no Pará e algumas fotos inéditas daquela época. Juntamente com “Gold – Mina de Ouro Serra Pelada”, Salgado lança o livro “Sebastião Salgado – Gold” (Editora Taschen). Com mais de 200 páginas com imagens do maior garimpo do mundo na década de 1980, a obra pode ser comprada nas Lojas do Sesc e nas principais livrarias do país. Seu preço é para poucos: aproximadamente R$ 400,00.
Não tenho dúvida que uma visita à mostra de Sebastião Salgado vale a pena. Se você estiver na região da Avenida Paulista, dê uma passada no SESC de lá e confira “Gold – Mina de Ouro Serra Pelada”. Durante a semana, o fluxo de visitantes é tranquilo e dá para conferir o evento confortavelmente. Aos finais de semana, entretanto, a pegada é punk. O fluxo intenso de pessoas e os confusos elevadores do prédio do SESC atrapalham a experiência dos visitantes (não se surpreenda se você ficar esperando mais de meia hora a chegada de um elevador minimamente vazio). Paradoxalmente, depois de constatarmos como é a vida real fora dos grandes centros urbanos brasileiros (Serra Pelada é só uma evidência disso), reclamar da demora do elevador pode parecer o maior contrassenso do mundo (e é!). Quando der, vá de escada (ninguém morrerá com um pouquinho de exercício, né?).
Triste mesmo é saber que, infelizmente, a realidade captada pelas lentes das câmeras de Sebastião Salgado há quase 40 anos é ainda hoje atual e persistentes no Brasil (e há quem ainda insista que nosso país seja rico...). Se o local físico de Serra Pelada desapareceu com a extração mineral do garimpo (agora, a grande montanha virou um lago artificial no meio da floresta), outros bolsões de pobreza, violência, desumanidade, insalubridade, injustiça e agressão ao meio ambiente continuam crescendo nos rincões do Brasil. Isso sim é algo que devemos reclamar e nos envergonhar!
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