É muito legal quando renomados escritores produzem textos sobre seu ofício, sobre suas carreiras ou sobre a literatura de maneira geral. De cabeça, recordo de algumas obras maravilhosas neste sentido: “Sobre a Escrita” (Suma das Letras), de Stephen King, “A Arte do Romance” (Companhia das Letras), de Milan Kundera, “Um Teto Todo Seu” (Tordesilhas), de Virginia Woof, “Auto-retrato do Escritor quando Corredor de Fundo”, de Haruki Murakami, “História da Literatura Ocidental Sem as Partes Chatas” (Cultrix), de Sandra Newman, e “Por que Ler os Clássicos?” (Companhia das Letras), de Italo Calvino. Boa parte desta lista já foi analisada no Bonas Histórias. Hoje, gostaria de comentar um antigo ensaio sobre a história da literatura de terror, um dos meus gêneros narrativos favoritos.
“O Horror Sobrenatural em Literatura” (Iluminuras) é o único livro não ficcional de Howard Phillips Lovecraft, escritor norte-americano que revolucionou as histórias de terror na primeira metade do século XX. Seu trabalho foi tão marcante que ele influenciou vários autores contemporâneos deste gênero. A obra mais famosa de Lovecraft é a coletânea de contos “Histórias de Horror – O Mito de Cthulhu” (Martin Claret). Nessa publicação, a Terra é alvo de uma intensa disputa entre seres humanos e uma organização secreta formada por alienígenas. Os contos desta série misturam terror e ficção científica, uma das principais características literárias do autor. O Mito de Cthulhu é até hoje uma criatura cultuada por diversas seitas pagãs e por fãs da ficção sobrenatural de Lovecraft, o que torna o trabalho deste autor atemporal.
Em “O Horror Sobrenatural em Literatura”, H. P. Lovecraft deixa de lado as suas tramas ficcionais e apresenta um longo ensaio sobre a história das narrativas de terror. Seu foco neste livro é a produção literária dos seus colegas do presente e do passado. De início, Lovecraft explica o fascínio que este tipo de texto exerce sobre o leitor. Para o autor norte-americano, o medo é a mais antiga emoção humana. Ela está presente desde os primórdios de nossa espécie. Assim, é natural que contos, novelas, romances e sagas horripilantes possuam um público cativo ao longo do tempo e emocionem de forma considerável os fãs de literatura. Esta é uma das partes mais interessantes da obra.
Na sequência, Lovecraft passa a explicar o surgimento dos contos de terror e sua evolução para as novelas góticas. Depois das novelas góticas, vieram os romances sobrenaturais. O enfoque principal dessa retrospectiva histórica está na literatura de língua inglesa, território mais familiar para Howard Phillips Lovecraft. Há também algumas citações a obras alemãs e francesas. No meio do livro, temos a explicação sobre a contribuição de Edgar Allan Poe para este gênero literário. O escritor norte-americano do século XIX revolucionou os thrillers macabros e deu a receita para a moderna literatura que viria a seguir. Poe influenciou muitos autores norte-americanos e artistas de língua inglesa. Por fim, Lovecraft apresenta as obras contemporâneas mais significativas desse gênero, comentando-as e citando as contribuições dos novos escritores.
Produzido há quase cem anos, “O Horror Sobrenatural em Literatura” foi publicado pela primeira vez em 1927. Em suas 125 páginas, temos dez capítulos: “Introdução”, “O Início do Conto de Horror”, “Os Primórdios da Novela Gótica”, “O Apogeu do Romance Gótico”, “Os Desdobramentos da Ficção Gótica”, “Literatura Espectral no Continente Europeu”, “Edgar Allan Poe”, “A Tradição Fantástica nos Estados Unidos”, “A Tradição Fantástica nas Ilhas Britânicas” e “Os Mestres Modernos”. A edição brasileira ainda tem um prefácio intitulado “A Estética do Medo”, de Oscar Cesarotto, psicólogo e professor universitário.
Obviamente, este tipo de leitura é indicado para quem gosta de Teoria Literária e da História da Literatura Universal. Quem procura referências de obras clássicas de terror também pode apreciar este livro. Li “O Horror Sobrenatural em Literatura” no último sábado. Trata-se de uma leitura rápida e muitíssimo agradável (ao menos para um fã da Teoria Literária e para alguém apaixonado por narrativas macabras). Devo ter levado entre três e quatro horas para percorrer todas as páginas de “O Horror Sobrenatural em Literatura”.
Como todo ensaio literário, este livro de H. P. Lovecraft possui alguns pontos positivos e outros negativos. O legal é que os aspectos favoráveis são predominantes. É inegável a profundida do debate proposto e o domínio sobre o assunto por parte de seu autor. Além de ter sido um dos principais escritores de terror da primeira metade do século XX, Lovecraft mostra-se um grande entendedor do tema. Ele calcou sua produção literária no estudo e na leitura dos clássicos de horror. Nesse sentido, ele me lembrou muito Italo Calvino, escritor italiano que desenvolvia seu trabalho literário juntamente com uma profunda análise do portfólio dos colegas.
Na minha opinião, o principal mérito de “O Horror Sobrenatural em Literatura” está em sua linguagem acessível e na maneira direta como são apresentadas as explanações do seu autor. Esqueça os ensaios com ar acadêmico e com um formalismo excessivo. Isso passa longe desta obra. Lovecraft usa um tom direto, palavras simples e termos corriqueiros para debater a história da literatura de terror. Na certa, o autor norte-americano pretendia falar com um público maior e menos especializado quando iniciou a produção desse material.
A didática deste livro também deve ser elogiada. O jeito leve e descontraído de escrever de Lovecraft se traduz em um texto muito agradável e convidativo. O mais interessante é a sensibilidade do autor para compreender quais são as obras que os leitores devem conhecer e quais provavelmente eles não conhecem. No primeiro caso, como “O Morro dos Ventos Uivantes” (Martin Claret), de Emily Brontë, “O Médico e o Monstro” (L&PM Pocket), de Robert Louis Stevenson, “Frankenstein” (Darkside Books), de Mary Shelley, e “Drácula” (Penguin Companhia), de Bram Stoker, temos apenas a análise de suas narrativas. No segundo caso, como “Zanoni” (Zefiro), de Edward Bulwer-Lytton, “O Monge” (Pedra Azul), de Matthew Gregory Lewis, “Mistérios de Udolpho” (Pedra Azul), de Ann Radcliffe, e “A Casa na Fronteira” (Sem edição em língua portuguesa), de William Hope Hodgson, há o cuidado para a apresentação do enredo da trama. Achei isso espetacular. Afinal, é preciso conhecer a história do livro para se interessar por sua análise. Até parece que Lovecraft adivinhou quais obras conhecemos e quais ficariam em segundo plano um século mais tarde.
Gostei também da escolha de grande parte dos títulos comentados em “O Horror Sobrenatural em Literatura”. As obras e os escritores de língua inglesa selecionados para a análise e para a composição histórica são realmente clássicos até hoje. Não é fácil fazer uma seleção como esta, assim como não é nada tranquilo narrar a trajetória artística de um gênero literário ao longo dos séculos.
Repare na sensibilidade e na humildade do autor de não se incluir como um dos escritores mais importantes da ficção macabra. Quando escreveu este livro, Howard Phillips Lovecraft já sabia da sua importância histórica para este tipo de literatura. Contudo, ele preferiu se abster de se referendar ou de citar seu próprio trabalho nas páginas desta obra. Apesar de perdermos uma importante parte da produção literária do início do século XX, essa opção se mostrou acertada por indicar a isenção completa do estudo realizado.
O principal ponto negativo de “O Horror Sobrenatural em Literatura” está no fato do livro ter sido publicado em 1927. Ou seja, não temos a continuação da trajetória das narrativas de terror de lá para cá. O hiato é de quase cem anos. Obviamente, Lovecraft não tinha como prever o que aconteceria ao longo do século XX e no início do século XXI. Mesmo assim, o leitor de hoje sente uma certa decepção por ver terminada uma análise tão boa “ao meio”. “E os autores atuais?!” e “Cadê a contribuição de Stephen King, Ira Levin e Scott Smith?”, pensamos um tanto frustrados. Para Lovecraft, os escritores contemporâneos são Arthur Machen, Algernon Blackwood, Lord Dunsany e Montague Rhodes James, autores do final do século XIX e do início do século XX.
Apesar da excelente escolha de obras e de autores analisados, fica evidente o quanto o olhar de H. P. Lovecraft é enviesado para a literatura de língua inglesa. Cadê a contribuição dos outros países e das outras línguas para o desenvolvimento das tramas de terror?! Para quem lê “O Horror Sobrenatural em Literatura” a impressão que fica é que não há este tipo de produção literária fora dos Estados Unidos e do Reino Unido. Há citações rápidas de obras desenvolvidas na França e na Alemanha, mas não há a menção à contribuição de autores e livros estrangeiros (de fora da literatura inglesa) para o desenvolvimento deste gênero.
De qualquer forma, “O Horror Sobrenatural em Literatura” é uma obra fundamental para quem deseja conhecer a história das narrativas de terror ou precisa estudar os clássicos deste gênero. Se esse é o seu caso, desejo desde já boa leitura. Na certa você não se arrependerá de mergulhar este ensaio.
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