Neste domingo, li “Mrs. Dalloway” (L&PM Pocket), o livro mais famoso de Virginia Woolf. Para aqueles que aportaram agora no Bonas Histórias, saibam que a escritora inglesa está sendo analisada no Desafio Literário deste mês. Depois de comentarmos, na semana passada, “A Viagem” (Novo Século), a publicação ficcional de estreia de Woolf, vamos discutir, no post de hoje, “Mrs. Dalloway”, seu quarto romance. E que diferença substancial entre esses dois títulos, hein?! Se “A Viagem” apresenta uma trama sem graça e, por que não, profundamente decepcionante, “Mrs. Dalloway”, lançado dez anos depois, é uma obra irretocável. Não à toa, ele é o trabalho literário mais celebrado de Virginia Woolf. Na lista de principais romances da língua inglesa do século XX, invariavelmente temos este livro nas primeiras posições. Justo, muito justo, justíssimo!
Em uma narrativa para lá de ousada, “Mrs. Dalloway” subverte a lógica dos textos ficcionais até então consagrados e apresenta um novo jeito de se contar uma história dramática. Essa pegada inusitada marcaria o estilo autoral de Woolf dali para frente, se tornando uma de suas principais contribuições ao Modernismo literário. O resultado é um dos melhores livros que li neste ano. Em meu ranking pessoal de leituras de 2020, “Mrs. Dalloway” está lado a lado com “Os Vestígios do Dia” (Companhia das Letras), romance espetacular de Kazuo Ishiguro, e com “Uma Questão Pessoal” (Companhia das Letras), drama semi-autobiográfico e angustiante de Kenzaburo Oe.
Para entender essa mudança tão significativa entre a primeira e a quarta obra de Virginia Woolf, é preciso analisar, obviamente, os dois romances intermediários da escritora. Eles explicam em boa parte a evolução estética da literatura woolfiana. “Noite e Dia” (Novo Século), publicado em 1919, e, principalmente, “O Quarto de Jacob” (Nova Fronteira), de 1922, já apresentavam de maneira experimental as maiores ousadias vistas em “Mrs. Dalloway”: o narrador em terceira pessoa com acesso total aos pensamentos das personagens em cena, o fluxo de consciência intenso, a falta de uma definição clara sobre o conflito do romance, a multiplicidade de visões/pensamentos dos vários indivíduos retratados, as ações banais de pessoas pouco interessantes e a maior importância do que acontece na mente das personagens do que na ação narrativa em si.
Diante de um receituário narrativo tão heterodoxo, um leitor mais crítico e ressabiado pode até se questionar: no final das contas, esse experimentalismo todo de Woolf gera bons livros?! Minha resposta é direta: depende. Em “A Viagem”, essa receita não funcionou nada bem. Em “Noite e Dia” e em “O Quarto de Jacob”, o resultado foi muito mais favorável. E em “Mrs. Dalloway”, atingimos o status de uma obra-prima. Evidentemente, temos nesse processo criativo uma evolução natural da nova proposta da inglesa. Não é errado pensarmos que Virginia Woolf, em “A Viagem”, era uma escritora principiante com boas intenções, mas com graves problemas de execução narrativa. E em “Mrs. Dalloway, por outro lado, ela, então com 43 anos, atingia a maturidade artística, sendo capaz de desenvolver um texto com o máximo de qualidade. Essa é a grande diferença entre as duas obras: o patamar profissional que a autora tinha atingido.
Publicado em 1925, “Mrs. Dalloway” foi criado a partir de dois contos de Virginia Woolf, “Mrs. Dalloway em Bond Street” e “O Primeiro Ministro”. Além disso, os leitores de “A Viagem” irão se lembrar da protagonista deste quarto romance da autora inglesa. Clarissa Dalloway, a tal Mrs. Dalloway, e seu marido foram apresentados rapidamente no livro de estreia de Woolf. O casal viajou alguns dias no Euphrosyne, o navio de Willoughby Vinrace. Inclusive, Richard Dalloway, o honrado esposo de Clarissa, tascou um beijo na boca da inocente Rachel Vinrace, a protagonista de “A Viagem”, dando início ao conflito existencial daquela obra. Durmamos com essa! Mais tarde, a família Dalloway ainda apareceria em outros cinco contos de Virginia Woolf. Por essas e outras, Mrs. Dalloway é considerada a principal personagem da literatura woolfiana.
“Mrs. Dalloway” se passa em um único dia de junho de 1923. A narrativa em terceira pessoa começa naquela manhãzinha, quando Clarissa Dalloway, uma socialite de 52 anos, casada e com uma filha de dezessete anos, vai sozinha até a floricultura Mulberry´s na Bond Street. Ela quer comprar arranjos florais para enfeitar sua casa. Afinal, uma festa será dada ali naquela noite. A trama do romance acompanha as horas posteriores ao passeio matinal da protagonista até culminar, obviamente, na recepção noturna. Nesse tão esperado encontro na residência dos Dalloway, a nata da aristocracia londrina se reunirá para alguns momentos de descontração, flerte, politicagem, exibicionismo, saudosismo, amizade e fofoca.
Nesse intervalo de aproximadamente treze, quatorze horas entre os dois eventos (ida à floricultura e a realização da festança), assistimos à rotina das personagens que cruzam de alguma maneira o caminho de Clarissa. Algumas pessoas são conhecidas dela: seu marido (Richard Dalloway, um parlamentar inglês), o velho amigo que era apaixonado por ela no passado (Peter Walsh, que passou cinco anos morando na Índia), a amiga de infância (Sally Seton, que ficou anos sem falar com a personagem principal do romance após uma briga fortuita), a filha adolescente (Elizabeth Dalloway, que tinha sérios problemas de relacionamento com a mãe), a amiga da filha (Doris Kilman, com inclinações homossexuais) e o conhecido arrogante (Hugh Whitbriad, que trabalhava junto à monarquia). E havia outros indivíduos que Mrs. Dalloway simplesmente não conhecia, que apenas passaram por ela nas ruas da cidade: Septimus Warren Smith, um ex-soldado traumatizado pelo que viveu na Primeira Guerra Mundial, Lucrezia Warren Smith, a esposa italiana de Septimus e os médicos que trataram Septimus.
Ao todo, “Mrs. Dalloway” possui doze cenas: (1) caminhada de Clarissa pela Bond Street para comprar flores; (2) drama médico-conjugal de Septimus e Lucrezia Warren Smith em uma praça de Londres ; (3) volta de Clarissa para casa, pois ela precisa costurar o vestido para a festa daquela noite; (4) visita, às 11horas, de Peter Walsh à residência dos Dalloway; (5) Peter Walsh volta para seu hotel; (6) médico visita os Warren Smith; (7) almoço de Richard Dalloway com Millicent Bruton; (8) sesta na casa dos Dalloway; (9) passeio de Elizabeth Dalloway, primeiro com Doris Kilman e depois sozinha; (10) decisões tomadas na casa dos Warren Smith; (11) novas reflexões de Peter Walsh em seu quarto de hotel; e (12) festa na casa de Mrs. Dalloway.
Com 224 páginas distribuídas em um texto corrido (não há a divisão de capítulos, por exemplo), “Mrs. Dalloway” tem um narrador que mergulha na mente das personagens, relatando suas rotinas e reconstituindo suas memórias. É nesta hora que sabemos suas crenças, seus traumas, suas ambições, seus segredos mais íntimos e suas avaliações sobre as demais figuras em cena. Se as ações desta narrativa são extremamente banais (compra na floricultura, passeio na praça, ida ao restaurante para um almoço entre amigos, estada solitária em um quarto de hotel, consulta médica, recebimento da visita de um velho amigo, saída para fazer compras...), o universo interno de cada pessoa retratada no romance reserva uma riqueza e uma complexidade inimagináveis. É na mente das personagens do livro que moram os dramas e as inquietações que valem a pena esta leitura.
O grande mérito de “Mrs. Dalloway” está na construção primorosa do fluxo de consciência de suas personagens. Sabemos o que acontece e o que aconteceu quase que exclusivamente pelos pensamentos, pelas visões, pelas memórias e pelas opiniões das pessoas em cena. Sem uma descrição pormenorizada das ações, cabe ao leitor entender o que está efetivamente se passando no texto ficcional pelo rastro de impressões e de lembranças deixadas pelas personagens. Incrível notar como uma romancista pode fazer isso e a trama ficar interessante. Obviamente, os leitores que não gostam de experimentalismos estéticos e que apreciam exclusivamente as histórias convencionais poderão se sentir desgostosos durante essa leitura.
Definitivamente, Virginia Woolf não é uma autora para as massas. Seu estilo é mais condizente para um público menor e seleto, capaz de apreciar as nuances de uma narrativa entrecortada, psicológica e subjetiva. Ou seja, é preciso uma dose de coragem para encarar as páginas de “Mrs. Dalloway”. Mesmo assim, quem embarca de corpo e alma nesse inusitado livro poderá vivenciar uma experiência literária única.
É incrível notar que não há um conflito nítido neste romance. O leitor até pensa: “Legal, sei que vai ter uma festa à noite, mas e daí?”. Sim, e daí? Assistimos ao dia de uma dezena de personagens sem saber o motivo para isso. E mesmo assim, o relato é riquíssimo. Ao invés de um protagonista e de um único conflito, temos vários protagonistas (cada personagem possui seus quinze minutos de fama nessa história – a ponto de muitas vezes Clarissa ficar em segundo plano) e vários pequenos conflitos paralelos (cada figura retratada possui seu drama próprio). É maravilhoso ver uma construção textual desse tipo e perceber que mesmo com os riscos de algo assim desandar, o livro ficou excelente (nada desanda aqui). Vai você fazer isso em sua obra literária para ver a avaliação das pessoas...
Em meio à narrativa, temos vários temas sendo debatidos direta e indiretamente: os amores não realizados, a importância das aparências sociais, as reflexões sobre as escolhas tomadas no passado, os jogos políticos inerentes às vidas profissionais, familiares e sociais, as amizades feitas e desfeitas, as impressões que cada um tem de quem está ao seu redor, o saudosismo da juventude perdida, os aprendizados que a vida traz, o medo da morte, o padecimento das doenças, os horrores da guerra, as injustiças sociais, a loucura, os preconceitos, as vantagens e as desvantagens do matrimônio e da maternidade/paternidade, a sexualidade aflorada e escondida, o homossexualismo, o machismo da sociedade inglesa do início do século XX, as primeiras mulheres fortemente feministas, a política colonial do Reino Unido após a Revolução Industrial, as engrenagens da sociedade aristocrata etc. O mais interessante é que esses debates se dão, em “Mrs. Dalloway”, na mente das personagens e não nos diálogos, como aconteceu em “A Viagem” (e que critiquei muito naquela oportunidade).
Algo que notei (e adorei!), é que minha leitura acompanhou, de certa maneira, a própria cronologia dos acontecimentos da trama ficcional. Tive essa percepção porque li justamente o romance em um único dia (período coincidentemente retratado na ficção). Comecei a leitura de manhãzinha, logo depois do café da manhã. E o texto de “Mrs. Dalloway” se passava em um começo de manhã. À medida que avançava no texto, as horas do meu relógio e da narrativa iam batendo. Ao meio-dia, quando parei para almoçar, o livro relatava acontecimentos do meio-dia, quando as personagens foram almoçar. E assim seguiu por toda a tarde. Quando terminei a leitura à noite, o romance se passava à noite, na festa dada pela Mrs. Dalloway. Achei incrível esse recurso. Não sei se Virginia Woolf pensou em fazer isso (até acho que ela fez essa compatibilização temporal de propósito), mas que dá certinho, isso dá! Se você ainda não leu esta obra, tente fazer essa leitura em um único dia (acompanhando as horas da ficção). É muito legal!
Se fiquei decepcionado com a leitura de “A Viagem” na semana passada, agora estou encantado com o conteúdo de “Mrs. Dalloway”. Assim, não tenho mais dúvidas sobre a qualidade literária de Virginia Woolf (confesso que após “A Viagem”, me perguntei se ela não seria uma autora supervalorizada...). Além de criar uma obra-prima, Woolf mostrou ser uma artista extremamente corajosa e original. Afinal, não é qualquer escritor que se propõe a produzir uma narrativa tão inovadora, o que sempre suscita riscos que a trama desande. Não é o que acontece em “Mrs. Dalloway”. Tudo parece estar em seu devido lugar neste livro, por mais curiosa que seja sua receita narrativa.
O Desafio Literário de julho terá prosseguimento na próxima semana, quando comentaremos mais um romance de Virginia Woolf. A próxima obra da inglesa que vamos analisar no Bonas Histórias é “Um Passeio ao Farol” (Rio Gráfica), título publicado dois anos depois de “Mrs. Dalloway”. Considerado uma das principais criações de Woolf, “O Passeio ao Farol” é visto, hoje em dia, pela crítica literária como um dos marcos do Modernismo em língua inglesa. O post sobre esse livro estará disponível no blog na segunda-feira, dia 13. Se você é fã da boa literatura, não perca as próximas etapas do Desafio Literário de Virginia Woolf. Até mais!
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