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Bonas Histórias

O Bonas Histórias é o blog de literatura, cultura, arte e entretenimento criado por Ricardo Bonacorci em 2014. Com um conteúdo multicultural (literatura, cinema, música, dança, teatro, exposição, pintura e gastronomia), o Blog Bonas Histórias analisa as boas histórias contadas no Brasil e no mundo.

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Ricardo Bonacorci

Nascido na cidade de São Paulo, Ricardo Bonacorci tem 42 anos, mora em Buenos Aires e trabalha como publicitário, produtor de conteúdo, crítico literário e cultural, editor, escritor e pesquisador acadêmico. Ricardo é especialista em Administração de Empresas, pós-graduado em Gestão da Inovação, bacharel em Comunicação Social, licenciando em Letras-Português e pós-graduando em Formação de Escritores.  

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Livros: Febeapá 1 - A obra-prima de Stanislaw Ponte Preta

Publicada em 1966, a coletânea de contos e crônicas de Sérgio Porto com o 1º Festival de Besteira que Assola o País é um clássico da literatura brasileira.

Livro Febeapá 1 - 1º Festival de Besteira que Assola o País de Stanislaw Ponte Preta/Sérgio Porto

A coluna Livros – Crítica Literária dá uma passadinha, hoje, na estante dos clássicos da literatura brasileira. No último final de semana, li a obra mais famosa de Sérgio Porto, jornalista, crítico cultural e escritor carioca que se imortalizou com o heterônimo (ou pseudônimo, como preferir) de Stanislaw Ponte Preta. A leitura que estou me referindo é “Febeapá 1 – 1º Festival de Besteira que Assola o País” (Civilização Brasileira). Comprei essa coletânea de contos e crônicas há alguns anos em uma visita despretensiosa a um grande sebo no centro de São Paulo. Contudo, só agora consegui apreciá-la com a devida atenção. Afinal, em época de eleição presidencial, período em que a polarização ideológica atinge decibéis insuportáveis, é bom procurar entender a realidade nacional sob o ponto de vista de uma das mentes mais privilegiadas da crônica brasileira. Por isso, a ideia da confecção deste novo post do Bonas Histórias. Para quem não aguenta mais as discussões políticas, fique tranquilo(a): o debate aqui será exclusivamente literário –conforme reza a cartilha de um blog voltado para o universo artístico-cultural.


Ao concluir a leitura de “Febeapá”, entendi o porquê dessa publicação ser tão cultuada e estar entre os cânones literários do nosso país. Quase seis décadas depois de seu lançamento, o livro de Sérgio Porto/Stanislaw Ponte Preta continua atual, engraçado, revelador e, de certa maneira, tragicômico. Infelizmente, o Brasil de hoje (e seus incontáveis problemas sociais, econômicos, políticos e ambientais) é muitíssimo parecido àquele de meados da década de 1960. A sensação é que não evoluímos como nação em (quase) nada. Se eu já suspeitava disso antes de mergulhar nas páginas de “Febeapá”, agora tive a certeza. Essa é justamente a parte mais delicada da obra: a constatação amarga que fracassamos como sociedade. Durmamos com tal dor de cabeça, meus amigos!


Criado em 1953, quando Sérgio Porto tinha apenas 20 anos e estava iniciando no jornalismo profissional, Stanislaw Ponte Preta era o fictício colunista social que debatia de maneira debochada os problemas típicos do Brasil nos anos 1950 e 1960. Sua especialidade era revelar o falso moralismo da alta sociedade carioca, as burrices dos brasileiros, as incongruências do dia a dia nacional (que, convenhamos, não são poucas!), a corrupção e a intolerância dos fardados (que insistiam em se meter na política), as maracutaias e as gafes das figuras públicas (um capítulo à parte em nossa História), os casos de polícia que chamavam mais a atenção da mídia, as mazelas do rincão da nação e os escândalos de infidelidade conjugal mais ruidosos da época. O resultado é um texto delicioso, marcante, original e revelador.


A estreia de Stanislaw Ponte Preta na imprensa carioca aconteceu em novembro de 1955 no jornal Última Hora. O texto daquele colunista linguarudo, debochado, petulante, provocador e namorador (estou falando agora de Ponte Preta, não de Sérgio Porto) chamou a atenção do público. Rapidamente, ele virou uma grande referência para os leitores do periódico, que adoravam os bordões (alguns usados até hoje em nossas ruas), as gírias (uma novidade para o jornalismo da época), os neologismos (divertidíssimos!) e o humor (ora fino e elegante, ora escrachado e agressivo). Surgia, assim, uma das figuras mais ousadas, engraçadas e inusitadas do jornalismo nacional e da crônica brasileira.

Sérgio Porto, escritor e jornalista que tinha o heterônimo/pseudônimo de Stanislaw Ponte Preta

Para embasar o que falava/escrevia em sua coluna, Stanislaw recorria invariavelmente às informações coletadas pela Pretapress – sua própria agência de notícias –, às opiniões de familiares – como as da zelosa mãe (D. Dulce), da sagaz tia (Zulmira), do primo namorador (Altamirando) e do parente patriota (Bonifácio Ponte Preta) –, aos fatos conferidos nas ruas do Rio de Janeiro (hábito cotidiano de todo bom cronista) e às notícias obtidas da leitura de jornais e revistas (algo que as pessoas faziam antes da invenção das mídias sociais). Repare que a matéria-prima do colunista era uma mistura de elementos ficcionais (a agência de notícias e os familiares eram obviamente invenções de Sérgio Porto) com componentes verídicos (a realidade do Rio de Janeiro e as maluquices do Brasil eram captadas pessoalmente pelo autor ou indiretamente pela mídia).


Se avaliarmos o trabalho de Ponte Preta (ou seria o trabalho de Sérgio Porto, hein?) com os olhos atuais, podemos dizer que Stanislaw é a versão original de alguns dos principais humoristas contemporâneos que retratam de maneira impagável a nossa sociedade. Nesse caso, Stanislaw Ponte Preta seria o pai intelectual de José Simão, colunista hilário da Folha de São Paulo, da dupla Vesgo & Sílvio, os repórteres sem noção do extinto Programa Pânico na TV, de Gil Gomes, falecido repórter policial de televisão que se tornou famosíssimo na segunda metade do século XX, de Márcia Goldschmidt, apresentadora televisiva chegadinha em um bom barraco ao vivo, dos integrantes do CQC – Custe O Que Custar, atração de TV importada da Argentina que fustigava os políticos em Brasília, e de Ratinho, jornalista/apresentador célebre por revelar as baixarias (e os segredos mais absurdos) das famílias em horário nobre.


Parece exagerada essa minha comparação?! Então saiba que O Pasquim, jornal humorístico criado em junho de 1969 no Rio de Janeiro por Ziraldo, Jaguar, Sérgio Cabral e Tarso de Castro, que foi o símbolo máximo da contracultura nacional e que atuou como fortíssimo opositor ao Regime Militar nas décadas de 1970 e 1980, se inspirou diretamente em “Febeapá – Festival de Besteira que Assola o País”. Não por acaso, o humor do periódico carioca era extremamente parecido à comicidade dos textos de Stanislaw Ponte Preta. Inclusive, os fundadores de O Pasquim homenagearam Sérgio Porto, falecido poucos meses antes da criação do jornal, na primeira edição da publicação.


É legal notar que, de tão interessantes que eram seus textos e sua figura, Ponte Preta deixou o papel de mero personagem de Porto e ganhou a aura de autor independente (e quase real). Assim, saía de cena Sérgio (que aceitou desde cedo o maior destaque dado/recebido por seu heterônimo) e entrava no palco da literatura nacional Stanislaw. Essa construção foi tão bem-feita que o colunista social ganhou uma série de parentes (Tia Zulmira, Primo Altamirando, D. Dulce e Bonifácio Ponte Preta), uma biografia paralela e características distintas do seu autor. Em outras palavras, para o imaginário popular e artístico, Sérgio Porto era uma pessoa e Stanislaw Ponte Preta era outra. Acho incrível essa brincadeira de embaralhar os universos reais e ficcionais em um mesmo plano literário/jornalístico.

Livro Febeapá - Festival de Besteira que Assola o País de Stanislaw Ponte Preta/Sérgio Porto

Publicado originalmente em 1966, “Febeapá – Festival de Besteira que Assola o País” foi o quinto livro a estampar o nome de Ponte Preta na capa. Antes, Sérgio Porto tinha lançado com seu heterônimo “Tia Zulmira e Eu” (Civilização Brasileira), em 1961, “Primo Altamirando e Elas” (Civilização Brasileira), em 1962, “Rosamundo e Os Outros” (Do Autor), e “Garoto Linha Dura” (Civilização Brasileira), em 1964. Com o nome verídico, Porto possuía, nessa época, outras três obras nas livrarias: “Pequena História do Jazz” (Os Cadernos da Cultura), de 1953, “O Homem ao Lado” (José Olympio), de 1958, e “A Casa Demolida” (Do Autor), de 1963.


Hoje em dia é normal encontrarmos “Febeapá – Festival de Besteira que Assola o País” com título e subtítulo um pouco diferentes aos originais. A nova nomeação é: “Febeapá 1 – 1º Festival de Besteira que Assola o País”. Essa mudança foi necessária porque a obra deu origem a uma série que totaliza três livros. “Febeapá 2 – 2º Festival de Besteira que Assola o País” (Civilização Brasileira) e “Febeapá 3 – 3º Festival de Besteira que Assola o País” (Civilização Brasileira) foram lançados, respectivamente, em 1967 e 1968, e completam a célebre trilogia de Stanislaw Ponte Preta.


Não é preciso dizer que essas publicações se tornaram enormes sucessos na época de seus lançamentos. “Febeapá” virou até mesmo uma das peças artístico-culturais mais críticas à Ditadura Militar brasileira, que havia sido imposta em 1964. Sérgio Porto só não sofreu maiores represálias por parte dos fardados que se apoderaram do poder político em Brasília porque o escritor faleceu em setembro de 1968, vítima de infarto fulminante aos 45 anos. O Ato Institucional Número Cinco (o famigerado AI-5), vale a pena a menção, seria decretado quinze meses mais tarde, em dezembro de 1969, o que lançou o Brasil em uma censura mais severa e intensificou a perseguição aos opositores do regime.


Se não tivesse morrido tão precocemente, Sérgio Porto teria fugido, na certa, do país para não ser preso pelos milicos no início dos anos 1970. E com certeza, o jornalista teria muito mais material para seguir produzindo no exílio os novos volumes da série de contos e crônicas. Quem sabe não teríamos hoje nas estantes de nossas livrarias “Febeapá 4”, “Febeapá 5”, “Febeapá 6”, “Febeapá 7”... Em relação à matéria-prima tragicômica que o Brasil e os brasileiros fornecem diariamente para os humoristas nacionais, dava muito bem para Stanislaw Ponte Preta continuar, se vivo obviamente, lançando sequências da coletânea todos os anos. Fico imaginando o que ele não diria dos nossos governantes e do nosso povo atualmente, né?

Febeapá 1 – 1º Festival de Besteira que Assola o País é o livro de Stanislaw Ponte Preta/Sérgio Porto

Já que estamos falando nessa trilogia, preciso destacar que há publicações mais contemporâneas que já trazem em um único volume a coleção completa do “Festival de Besteira que Assola o País”. Ou seja, “Febeapá 1”, “Febeapá 2” e “Febeapá 3” vem juntos em um título integrado chamado simplesmente de “Febeapá”. Em 2015, a Companhia das Letras apresentou uma edição impecável com os três volumes da série. Vale a pena conferi-la. E no ano passado, ainda na pegada da revalorização da literatura de Stanislaw Ponte Preta/Sérgio Porto, a principal editora brasileira lançou “A Fina Flor de Stanislaw Ponte Preta” (Companhia das Letras), uma antologia com os melhores textos do autor/heterônimo. As narrativas dessa obra foram extraídas de “Tia Zulmira e Eu”, “Primo Altamirando e Elas”, “Rosamundo e Outros”, “Garoto Linha Dura”, “Febeapá” e “Bola na Rede” (Civilização Brasileira).


“Febeapá – Festival de Besteira que Assola o País” nasceu (assim como a própria figura de Stanislaw Ponte Preta) das crônicas que Sérgio Porto produzia para os jornais do Rio de Janeiro. Ele manteve uma badalada coluna no Última Hora por dois períodos: de 1955 a 1960 e de 1963 a 1968. De 1960 a 1963, Porto deixou o Última Hora e trabalhou para o concorrente Diário da Noite. O retorno ao Última Hora se deu após o jornalista receber uma proposta financeira irrecusável da antiga empregadora. O jornal queria a volta de um dos principais colunistas do país. No início da década de 1960, é importante destacar, Sérgio Porto/Stanislaw Ponte Preta era aquele tipo de figura da imprensa capaz de fazer os leitores mudarem de periódico só para continuar acompanhando seus textos. E aquele período representou também a Era de Ouro da crônica brasileira.


O livro “Febeapá 1 – 1º Festival de Besteira que Assola o País” possui 168 páginas. A coletânea de contos e crônicas está dividida em duas partes. Na primeira seção, com cerca de 50 páginas e 11 capítulos, temos as crônicas propriamente ditas. Esses textos foram produzidos especialmente para a publicação literária e seus conteúdos (tiradas cômicas, notícias do Brasil e causos do dia a dia nacional) foram extraídos/inspirados da coluna que Stanislaw Ponte Preta mantinha no Última Hora. Ou seja, essa é uma parte readaptada (requentada). Antes que você pense que essa característica é um demérito do livro, ela não é não. Esse é justamente o pedaço mais interessante desse título. Suas narrativas são deliciosas!


Na segunda seção de “Febeapá 1”, temos os contos. As narrativas ficcionais são 40 e ocupam aproximadamente 110 páginas. Esse trecho é quase que um recorte exato das colunas jornalísticas de Ponte Preta, em que ele relatava as confusões cotidianas de seus conterrâneos. Não houve aqui, portanto, a preocupação de adaptar o material extraído do jornal e exportado para o livro, como vimos na primeira parte. Isso é perceptível pelo tamanho reduzido dos textos. Apesar de boas, as histórias ficcionais de Sergio Porto/Stanislaw Ponte Preta são, na minha opinião, um tantinho inferiores às crônicas.

Livro Febeapá - Festival de Besteira que Assola o País é um clássico da literatura de Stanislaw Ponte Preta/Sérgio Porto

Levei pouco mais de quatro horas para concluir essa leitura no último final de semana. Mesmo sendo possível ler “Febeapá 1” tranquilamente em um dia (ou mesmo em um período só do dia, se você tiver mais fôlego literário), utilizei duas tardes consecutivas para tal. Praticamente percorri a primeira metade das páginas da obra mais famosa de Stanislaw Ponte Preta no sábado à tarde e finalizei a outra metade no domingo. O que torna a leitura de “Febeapá 1 – 1º Festival de Besteira que Assola o País” tão rápida e cativante é o texto divertido (marca do autor) e a estrutura de pequenos capítulos (afinal, estamos falando de uma coletânea de narrativas curtas, né?). Em média, essas histórias de Ponte Preta têm em torno de três páginas. Quando você pisca o olho, já devorou um conto/crônica. Piscou duas vezes, terminou a seção da publicação. E em três piscadas, lá se foi a obra inteira!


A primeira crônica (da parte I) de “Febeapá” se chama “O Festival de Besteira”. Aqui, o autor apresenta a proposta do livro. Stanislaw Ponte Preta/Sérgio Porto explica como surgiu o Febeapá e detalha a dinâmica de trabalho da Pretapress, a fictícia agência de notícias utilizada por ele para mapear o que acontece no país. Em seguida, o cronista já começa a listar a série de bizarrices ocorridas no Brasil de Norte a Sul entre 1965 e 1966. Esse é um dos textos mais hilariantes (e famosos) da publicação. Qualquer semelhança com a realidade atual não é mera coincidência, tá?


“O Puxa-saquismo Desvairado”, a segunda crônica, mostra como os brasileiros das mais diferentes regiões tentam agradar a autoridade máxima da nação. Em “O Informe Secreto”, o chefe do Serviço de Inteligência faz uma descoberta bombástica capaz de abalar os alicerces de Brasília. “Meio a Meio” e “Nas Tuberosidades Isquiáticas” relata, respetivamente, o que se passa quando alguém é acusado de ser comunista no Brasil da Ditadura Militar e as consequências da assinatura da portaria do Ministério do Trabalho que obriga os comerciários a atuarem sentados. “A Conspiração”, por sua vez, escancara a denúncia de que estaria havendo uma conspiração na casa do Coronel.


Em “Desrespeito à Região Glútea”, a sétima crônica da parte I de “Febeapá 1”, os agentes do Dops no Aeroporto do Galeão protagonizam uma série de mancadas. “Garotinho Corrupto” e “Por Trás do Bimbo” detalham, respectivamente, o fechamento de uma escola infantil porque ela tinha um nome subversivo e a aglomeração do povo em volta de um corpo estatelado no meio da rua. “Depósito Bancário” narra a entrada de um cidadão em um banco chiquérrimo e a utilização alternativa do tapete principal da instituição. E em “O General Taí”, o décimo primeiro texto e a última crônica dessa seção, Genésio conseguiu certo prestígio no Ministério ao ser um dos mais ativos dedos-duros do governo.

Febeapá 1 – 1º Festival de Besteira que Assola o País é a coletânea de contos e crônicas de Stanislaw Ponte Preta/Sérgio Porto

A parte II de “Febeapá 1 – 1º Festival de Besteira que Assola o País” é, como já falei, dedicada aos contos. “O Antológico Lalau”, primeiro texto dessa seção, mostra o encontro fortuito de Stanislaw Ponte Preta com um patrício. Por essa conversa aparentemente banal, o colunista social descobre que um de seus textos integrará uma antologia literária. Em “O Paquera”, conhecemos Batalha. À medida em que foi crescendo, ele foi ficando cada vez mais feio. Por isso, já adulto (e com aparência horripilante), Batalha só espiava as moças de longe. “Eram Parecidíssimas” relata o encontro de dois amigos no bar. Leleco conta para Peixoto que está saindo com uma socialite paulista chamada Laís. A questão é que Laís é muito parecida com Alice, a esposa de Peixoto. No “O Sabiá do Almirante”, um oficial das Forças Armadas pega, no instante em que estava saindo para ir ao cinema, um ladrão de passarinho no quintal de casa.


Em “Os Tímidos o que é dos Tímidos”, o quinto conto de “Febeapá 1”, Leovigildo conseguiu uma namorada, mesmo sendo o mais tímido dos rapazes. O problema é que um sujeito metido a fortão começa a cortejar sua pequena. “O Filho do Camelô” narra o trabalho de um vendedor ambulante. Assim que percebe que não há nenhuma autoridade por perto, ele arma a barraquinha na rua e começa o discurso para atrair os clientes. Nessa hora, vale tudo para amaciar os coraçõezinhos da freguesia. “O Diário de Muzema” se passa no pequeno e pacato bairro perto da Barra da Tijuca. Ali, a população se revolta com um sujeito que tem a mania de anotar em um caderno tudo aquilo que vê pelas ruas. Em “Um Cara Legal”, Carlão prepara uma festa de arromba para comemorar seu aniversário. Os convidados são a fina flor da sociedade (só que não). Talvez o barulho e a confusão incomodem um pouco a vizinhança do apartamento de Carlão. E em “Desastre de Automóvel”, assistimos às crises de ciúme da esposa de Cravinho. Por ser uma mulher extremamente violenta, a moça costuma espancar o marido toda vez que se sente ameaçada por outra mulher. O curioso é que o rapaz parece não ligar tanto assim pelo mulheril que está ao seu redor. A grande paixão de Cravinho está nos carros esportivos.


O décimo conto de “Febeapá 1” se chama “Barba, Cabelo e Bigode”. Nessa trama, Luís, o dono da principal barbearia da pequena cidade do interior, tenta desvendar o comportamento inusitado de Armandinho, o rapaz vida mansa que vai frequentemente ao salão. Depois de conferir o tamanho da fila, o preguiçoso sempre vai embora sem que o serviço possa ser realizado. Os três contos seguintes são: “Liberdade! Liberdade!”, “O Padre e o Busto” e “Diálogo de Réveillon”. No primeiro, vemos a alegria de um rapaz recém-separado que curte a solidão em seu apartamento. Depois de aguentar seis anos de casamento, enfim ele está livre, livre! Na narrativa seguinte, uma linda moça vestindo um biquíni minúsculo caminha pela calçada. Ela está retornando da praia. A cena é um colírio para os olhos masculinos. O único homem que não gosta do que está vendo é o padre velho e gorducho, que resolve recriminar os trajes da gatinha. E encerrando essa sequência, temos a conversa de uma senhora com um homem bêbado na virada do ano de 1965 para o de 1966.

Livro Febeapá - Festival de Besteira que Assola o País de Stanislaw Ponte Preta/Sérgio Porto

“Um Predestinado” é a décima quarta história da parte II de “Febeapá 1 – 1º Festival de Besteira que Assola o País”. Aqui, assistimos ao drama de dois amigos que passam a tarde paquerando vulgarmente as mulheres que trafegam em uma esquina de Copacabana. Como são pobres, a dupla não consegue ser bem-sucedida no flerte. Em “Mitu no Menu”, os brasileiros viajam para a Inglaterra para acompanhar in loco a Copa do Mundo de 1966. Muitos embarcaram para acompanhar os jogos da seleção canarinha sem ter dinheiro suficiente no bolso e sem falar uma só palavra de inglês, o que causa, evidentemente, muitos dissabores. “Não Sou Uma Qualquer” e “O Analfabeto e a Professora” são contos que demonstram as preocupações de duas moças muito bonitas. No primeiro relato, a protagonista fica brava com os comentários maldosos que está sendo vítima da alta sociedade carioca. E no segundo, a professora de um curso de alfabetização de adultos tem o desafio de ensinar o aluno mais burro que já passou pela instituição. Em “Adúlteros em Cana”, uma multidão se forma na frente de um prédio na Rua Barata Ribeiro. Todos querem saber se o marido conseguirá pegar a mulher em flagrante de adultério.


Enquanto “Urubus e Outros Bichos” mostra a alegria dos brasileiros mais patriotas com a notícia de que o país começou a exportar urubus para a Europa, “Futebol com Maconha” descreve, por sua vez, o curioso embate futebolístico entre o time de maconheiros do Puxa Firme, do Morro do Queimado, e a equipe do santo padre local. “Vacina Controladora”, o vigésimo primeiro conto desse livro de Stanislaw Ponte Preta, é sobre a última invenção dos cientistas norte-americanos – uma vacina que controlará a taxa de natalidade. Em “Adesão”, o camarada tem a infelicidade de viajar em um vagão de trem juntamente com um animado time de futebol que retorna de uma partida de futebol. Em “O Cafezinho do Canibal”, uma loira estonteante é a única sobrevivente de um acidente aéreo. Para a infelicidade da moça, a aeronave caiu perto de uma tribo de canibais e ela foi aprisionada. “Arinete – A Mulata” e “Deu Mãozinha no Milagre” tratam, respectivamente, da paixão platônica do soldado da PM por uma jovem que carrega um .45 na bolsa e das artimanhas de um padre de Goiânia que falsifica milagres, para desespero dos superiores eclesiásticos.


“A Bolsa ou o Elefante” é o vigésimo sexto conto. Aqui, o elefante come a bolsa de uma visitante do zoológico, o que traz sérias complicações para ambos. Em “Suplício Chinês”, o único hóspede de um hotel de uma pequena cidade do interior é desalojado de seu quarto. Tudo para abrigar a lua de mel da filha do coronel, um importante político local. “O Homem das Nádegas Frias” mostra um ônibus lotado. Desacostumado com o cavalheirismo nos tempos presentes, uma senhora recusa o gesto de um senhor que cede seu assento para ela. Em “O Passeio do Pastor”, assistimos às saidinhas noturnas e pouco cristãs de um pastor. “O Correr dos Anos” e “O Homem que Mastigou a Sogra” narram, respectivamente, a alegria de Bonifácio Ponte Preta com a inauguração de uma adutora que iria resolver os problemas de desabastecimento de água no Rio de Janeiro e as agruras do noivado de Gilson Calado e Délia com a marcação cerrada da mãe da moça.


“As Retretes do Senhor Engenheiro” cita trecho de um livro em que construtores de banheiros públicos expõem as estratégias para trabalhadores e estudantes não perderem tempo no banheiro. Em “Dois Amigos e Um Chato”, Flaudemíglio deixa a carteira cair na rua ao embarcar em um ônibus lotado. Por sorte, o amigo Zé estava por perto e ligado. “Mirinho e o Disco” mostra a preocupação do Primo Altamirando com as notícias do aparecimento de um OVNI. “A Governanta”, o trigésimo quinto conto da parte II de “Febeapá 1”, é sobre a contratação de uma nova funcionária para a casa de Miriam e Alcindo. A jovem foi indicada por Iolanda, a amiga classuda de Miriam. Em “O Alegre Folião”, João é um mendigo muito digno que tem ponto fixo na escadaria da igreja. Ele só sai de lá algumas vezes por ano quando é “convidado” pela polícia para um passeio pela viatura policial. Por sua vez, “Movido pelo Ciúmes” é o descritivo de uma notícia jornalística. Luís Caldas assassinou a noiva Rosa Maria dos Santos por não suportar ouvir como foi animado o Carnaval dela.

Febeapá 1 – 1º Festival de Besteira que Assola o País é o livro de Stanislaw Ponte Preta/Sérgio Porto

As três últimas narrativas de “Febeapá” são “Patrimônio”, “A Nós o Coração Suplementar” e “Transporta o Céu para o Chão”. Em “Patrimônio”, Benedito vai ao cartório para registrar o nascimento do novo (e quarto) filho que teve com Isaura. Aí o homem pobre tem uma ideia genial. Na certa, a sacada criativa proporcionará um futuro melhor para a criança. Em “A Nós o Coração Suplementar”, cientista cria o mecanismo de um coração artificial. A dúvida agora é saber se o aparelho irá cuidar também das questões sentimentais do transplantado. E “Transporta o Céu para o Chão”, o conto derradeiro da coletânea, acompanhamos um mendigo metido a seresteiro. Ele sai pelas ruas cantando bêbado e feliz.


Gostei muito de “Febeapá 1 – 1º Festival de Besteira que Assola o País”. O livro de Sérgio Porto/Stanislaw Ponte Preta é engraçado e espirituoso, além de ser bastante revelador. Ele mostra com propriedade a realidade nacional nos anos 1960, um período marcado por graves problemas sociais, econômicos e políticos. Como toda coleção de narrativas curtas, “Febeapá 1” possui alguns capítulos melhores do que outros. Em outras palavras, temos ótimos contos e crônicas ao lado de relatos não tão inspirados assim. Os meus textos favoritos são: “O Festival de Besteira”, “O Informe Secreto”, “A Conspiração”, “Eram Parecidíssimas”, “O Sabiá do Almirante”, “Desastre de Automóvel”, “Barba, Cabelo e Bigode”, “Não Sou Uma Qualquer” e “O Analfabeto e a Professora”.


O que me chamou mais atenção em “Febeapá” foi o estilo narrativo de Ponte Preta. Seu jeitão de escrever é único e, por que não, pitoresco, o que torna a leitura muito agradável. Ele usa e abusa da oralidade. Como consequência, acabamos ficando próximos tanto do autor/narrador quanto de seus contos e crônicas. A graça está na utilização de gírias, neologismos e ditados populares, que ficam saborosíssimos no contexto da coletânea narrativa e da coluna que ele produzia nos jornais da época. Os termos mais comuns do livro são: “cocoroca” (pessoa conservadora), “Redentora” (Ditadura Militar), “embasbacado”, “bacanérrimo”, “barbada”, “mancada” e “chave de cadeia”. Repare que algumas dessas palavras não saíram totalmente do uso cotidiano.


Algumas expressões de Stanislaw Ponte Preta que valem por si só a leitura são: “segundo Tia Zulmira” (parente que é “batata”, ou seja, alguém confiável), “time dos descontentes de Sousa”, “não é para me gambá”, “nossa imperturbável e deficiente polícia”, “ficou mais branco que bunda de escandinavo”, “fez-se sério como ministro de Estado”, “olhar de peru encachaçado”, “havia cabrito em sua horta” e “estava praguejando mais que trocador de ônibus”. Para completar, o autor cita parentes e conhecidos o tempo inteiro, escreve em tom de diálogo com o leitor (marca das crônicas) e relata o que aparentemente viu e ouviu por aí (nos periódicos, nas ruas, nas conversas em casa, nas festas da alta socialite, nos botecos da periferia etc.).

Livro Febeapá - Festival de Besteira que Assola o País é um clássico da literatura de Stanislaw Ponte Preta/Sérgio Porto

Temos em “Febeapá 1” um genuíno retrato do Brasil pós-golpe de 1964 e pré-AI 5. Nas crônicas de Ponte Preta, conseguimos enxergar com clareza a corrupção, a violência, a injustiça social, o puxa-saquismo, o conservadorismo, o autoritarismo, as leis esdrúxulas, a intervenção político-social dos militares, as carências materiais da maioria da população, a péssima oferta de serviços públicos e os preconceitos dos brasileiros de Norte a Sul. Por sua vez, os contos escancaram as desavenças conjugais, o machismo (com direito a feminicídio), o conservadorismo religioso, o racismo, o preconceito de classe social, os encontros e desencontros amorosos, as traições matrimoniais (praticamente um esporte nacional tão popular quanto o futebol), o vidão da classe política e dos militares, a violência nas ruas (e nas casas), a futilidade da alta sociedade carioca e os perrengues que os mais pobres eram/são obrigados a enfrentar diariamente.


Tudo isso vem embalado com ótimas cenas do cotidiano, o que confere um ar de contemporaneidade às tramas. Daí a sensação que não evoluímos (quase) nada em termos econômicos, sociais, religiosos, políticos, educacionais, civilizatórios, científicos e comportamentais. O Brasil descrito com sinceridade por Sérgio Porto/Stanislaw Ponte Preta é o mesmo que temos hoje, em 2022. Tente ler “Febeapá – Festival de Besteira que Assola o País” como se ele tivesse sido escrito no século XXI. Na certa, você irá se assustar com as semelhanças entre a realidade brasileira nos anos 1960 e a realidade atual.


Curiosamente, gostei mais das crônicas do que dos contos de “Febeapá 1”. Usei o termo “curiosamente” na frase anterior porque é mais comum a crônica, um gênero por si só efêmero, ficar datada e envelhecer mais rapidamente (o que prejudica sua leitura após algumas décadas) do que o conto, gênero mais duradouro (e, por isso mesmo, com uma leitura normalmente mais fácil após décadas e décadas de sua criação). E nessa coletânea de Stanislaw Ponte Preta, acredite se quiser, nenhuma das duas partes (lembre-se: a parte I é das crônicas e a parte II é dos contos) envelheceu mal. Troque os nomes dos políticos, das personalidades da alta sociedade, dos tipos populares e dos militares corruptos e violentos de ontem pelos de hoje e teremos um texto atualíssimo. Chegam a ser assustadoras as semelhanças!


Outro fator que pode ter ajudado na minha preferência pelas crônicas foi o trabalho distinto que essas narrativas receberam do autor. Nota-se que Sérgio Porto/Stanislaw Ponte Preta retrabalhou os textos da Parte I de “Febeapá 1”. Ele basicamente pegou vários trechos de suas colunas e os adaptou especialmente para o livro. Assim, temos tramas mais impactantes e ágeis na primeira seção. No caso dos contos, eles estão ipsis litteris (sempre sonhei em usar esse termo em um post do Bonas Histórias!!!). Ou seja, apareceram na parte II como foram publicadas nas páginas jornalísticas. Se essas histórias ficcionais tinham maior graça e relevância quando eram apresentadas com grande intervalo nos periódicos (semanalmente, na maioria dos casos), quando colocadas em sequência em uma obra literária (para leitura conjunta e sequencial), elas se tornam um pouco repetitivas. Chega uma hora em que elas falam praticamente a mesma coisa, tornando a leitura um pouco enfadonha (algo que não aconteceu, por exemplo, nas crônicas).

Stanislaw Ponte Preta é o heterônimo/pseudônimo do escritor e jornalista carioca Sérgio Porto

Por fim, precisamos falar do humor de “Febeapá 1 – 1º Festival de Besteira que Assola o País”. Esta coletânea de contos e crônicas é uma obra engraçada? Sim, ela é. O humor de Stanislaw Ponte Preta é empolgante? Na maior parte do tempo é! Deu para dar algumas boas gargalhadas durante a leitura do livro? Deu sim para me divertir em várias narrativas da publicação. E há histórias surpreendentes aqui? Com certeza temos várias reviravoltas ao longo das tramas. Então, Ricardo, Ricardinho do meu coração, qual o problema do humor deste título, hein?! É difícil explicar...


Contudo, em algumas histórias de “Febeapá 1”, achei o tom escrachado demais. Sabe quando a graça é construída em cima de escatologias, preconceitos (machismo) e brincadeiras pueris? Pois alguns contos têm essa característica meio infantojuvenil, meio bobinha. Confesso que prefiro quando Porto/Ponte Preta é mais irônico, sutil e enigmático no humor (algo que ele também é). Talvez o que tenha me incomodado um pouco seja essa diferença tão gritante de comicidade: a inteligente e bem-trabalhada versus a mais popular e apelativa. É raro (e um pouco difícil de engolir) assistirmos a uma obra que traga essas duas vertentes do humor lado a lado como temos nesta coletânea. Normalmente, os autores acabam enveredando por apenas um dos caminhos (e não pelos dois ao mesmo tempo).


Apesar de um probleminha aqui e outro acolá, naturais em uma obra com mais de meio século de vida, “Febeapá 1 – 1º Festival de Besteira que Assola o País” é um livrão. Se por um lado ficamos tristes ao constatar os fracassos do Brasil como nação e desesperados ao verificar a decadência dos brasileiros como povo minimamente civilizado, por outro lado ficamos encantados com o talento literário de Sérgio Porto/Stanislaw Ponte Preta. O cronista é sagaz e cirúrgico ao colocar os dedos em nossas maiores feridas. Ele também é brilhante ao retratar um país acossado pela burrice endêmica, pela corrupção, pelo falso moralismo, pela violência e pela injustiça social.


Será que daqui a cinquenta anos as coisas no Brasil permanecerão como são hoje (e como eram na década de 1960)? Infelizmente, a resposta positiva (que de positiva não tem nada!) teima em martelar nos meus pensamentos. Seria eu um pessimista?! Talvez. Ou seria simplesmente um realista? Ai, ai, ai. Como é difícil ser brasileiro... De qualquer maneira, vamos nos preparar para as próximas eleições em outubro. Cheguemos às urnas com a consciência limpa e o compromisso nobre para votar no buraco mais raso e menos sujo que temos à disposição. Bons votos a todos! E ótimas leituras.


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