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Bonas Histórias

O Bonas Histórias é o blog de literatura, cultura, arte e entretenimento criado por Ricardo Bonacorci em 2014. Com um conteúdo multicultural (literatura, cinema, música, dança, teatro, exposição, pintura e gastronomia), o Blog Bonas Histórias analisa as boas histórias contadas no Brasil e no mundo.

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Ricardo Bonacorci

Nascido na cidade de São Paulo, Ricardo Bonacorci tem 42 anos, mora em Buenos Aires e trabalha como publicitário, produtor de conteúdo, crítico literário e cultural, editor, escritor e pesquisador acadêmico. Ricardo é especialista em Administração de Empresas, pós-graduado em Gestão da Inovação, bacharel em Comunicação Social, licenciando em Letras-Português e pós-graduando em Formação de Escritores.  

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Músicas: Vingança - 70 anos da mais intensa dor de cotovelo de Lupicínio Rodrigues

Gravado por Lupicínio Rodrigues em 1952, o samba-canção com tintas autobiográficas rivaliza com Nervos de Aço e Felicidade como a principal canção do gaúcho.

Vingança é uma das músicas mais famosas de Lupicínio Rodrigues

Qual a sua canção favorita de Lupicínio Rodrigues, hein?! Normalmente, as respostas dos fãs do compositor gaúcho e dos amantes dos clássicos da música popular brasileira giram em torno de “Nervos de Aço”, “Felicidade” e “Vingança”. Isso é, se você não for torcedor do Grêmio, né? Lupicínio compôs o hino gremista em 1953, aquele dos versos: “Até a pé nós iremos/Para o que der e vier/ Mas o certo é que nós estaremos/Com o Grêmio, onde o Grêmio estiver”. Confesso que a minha favorita do trio (ou quarteto, como preferir) de criações inesquecíveis de Lupicínio Rodrigues é “Nervos de Aço”. Para mim, a sequência “Você sabe o que é ter um amor, meu senhor/ Ter loucura por uma mulher/ E depois encontrar esse amor, meu senhor/ Nos braços de um tipo qualquer” é insuperável, uma das mais belas canções românticas da MPB. Não por acaso, já comentei sobre essa composição de 1947 aqui na coluna Músicas (juntamente com “Felicidade”, aquela dos versos: “Felicidade foi-se embora/ E a saudade no meu peito ainda mora/ E é por isso que gosto lá de fora/ Porque eu sei que a falsidade não vigora”).


Como disse, essa predileção por “Nervos de Aço” é meramente a minha opinião pessoal. Quando ouvimos o gosto do público, notamos um grande equilíbrio de qual seria a maior composição de Lupicínio. Até mesmo a crítica musical nacional se divide quando precisa decretar qual seria a obra-prima das obras-primas da dor de cotovelo do gaúcho. Na lista das 100 Canções Essenciais da Música Popular Brasileira feita pela Revista Bravo em 2008, por exemplo, “Vingança” aparece na frente das irmãs: está na 13ª colocação no geral, enquanto “Nervos de Aço” e “Felicidade” figuram, respectivamente, nas 41ª e 81ª posições. Já no ranking da Revista Rolling Stone Brasil com as 100 maiores músicas brasileiras da história, que foi divulgado em 2009, temos uma inversão: “Nervos de Aço” (86ª colocação no geral) e “Felicidade” (91ª posição) estão à frente de “Vingança” (que não aparece sequer na listagem da Rolling Stone).


Por tudo isso, não dá para decretarmos qual é a maior composição de Lupicínio sem polemizar. Prefiro colocar as três (tá bom, gremistas, as quatro) músicas lado a lado em nível de excelência artística. O que dá para dizer sem risco de errar é que “Vingança” possui uma carga emotiva maior. Sua letra vem carregada de passionalidade e desespero, fruto do coração partido de seu compositor. Essa é possivelmente a faixa mais intensa e mais dramática criada por Lupicínio Rodrigues. Para entendermos tais características, precisamos nos aprofundar nos versos e na história por trás do desenvolvimento dessa canção. Como já comentei “Nervos de Aço” e “Felicidade” no Bonas Histórias, falaremos no post de hoje exclusivamente de “Vingança” (o hino do Grêmio ficará para uma próxima, tá?). Apesar de menos executada atualmente do que suas coirmãs, essa música continua sendo uma das criações memoráveis da cultura popular brasileira.

Música Vingança de Lupicínio Rodrigues

“Vingança” foi composta no finalzinho da década de 1940, alguns anos depois de “Nervos de Aço” e “Felicidade”. Como boa parte das canções de Lupicínio Rodrigues, essa faixa tem elementos autobiográficos e componentes melodramáticos em seu enredo. É a vida servindo de matéria prima para a arte e é a realidade influenciando a ficção, meus(minhas) caros(as)!


No início dos anos 1940, Lupicínio se apaixonou por Mercedes, uma “mulher da vida”. Sem pestanejar, o músico, que trabalhava na época como bedel de uma faculdade, tirou a moça do prostíbulo e a levou para morar com ele. Iniciava-se, assim, um relacionamento aparentemente feliz. Cinco anos mais tarde, Lupicínio Rodrigues, agora proprietário de um bar em Porto Alegre, recebeu a notícia bombástica de um jovem funcionário. O rapazote disse para Lupicínio que Mercedes estava apaixonada por ele e que insistia em iniciar um romance clandestino. Não querendo ter problemas com o patrão (e talvez pouco interessado na moça), ele resolveu revelar tudo. À princípio, o músico-empresário não acreditou no que ouvia. Porém, quando o funcionário apresentou os vários bilhetes amorosos escritos e mandados por Mercedes, Lupicínio teve a certeza da tentativa de traição. Com o coração despedaçado, ele mandou a amada embora de casa e pediu para ela nunca mais aparecer.


Nem mesmo a expulsão de Mercedes aplacou a ira de Lupicínio Rodrigues. Ele queria mais, ele queria vingança. E como se vingar definitivamente da moça infiel que tanto tempo compartilhou a cama com ele? A resposta para um compositor de talento é simples: transformar em versos musicais o seu drama sentimental. Dessa maneira, surgiu “Vingança”. O samba-canção trata da satisfação de um homem que descobre pelos amigos que a ex-mulher está triste e abandonada em uma mesa de bar. Após a separação deles, fruto de uma traição dela, o mundo da moça desmoronou. A alegria do eu-lírico da canção contrasta com a tristeza da antiga companheira, arrependida pelos atos cometidos.


Confira, abaixo, a letra da música “Vingança” e, logo a seguir, a interpretação do próprio Lupicínio Rodrigues. A execução da canção no vídeo foi realizada em um programa de televisão em 1972.

Lupicínio Rodrigues é o compositor da música Vingança

“Vingança” (Lupicínio Rodrigues)


Eu gostei tanto

tanto quando me contaram

que a encontraram

bebendo e chorando na mesa de um bar


E que quando os amigos do peito

por mim perguntaram

Um soluço cortou sua voz

não lhe deixou falar


Ah, mas eu gostei tanto

tanto quando me contaram

Que tive mesmo de fazer esforço

pra ninguém notar


O remorso talvez seja a causa

do seu desespero

Ela deve estar bem consciente

do que praticou


Me fazer passar esta vergonha

com um companheiro

E a vergonha é a herança maior

que meu pai me deixou


Mas enquanto houver força em meu peito

Eu não quero mais nada

E pra todos os santos vingança

vingança clamar


Ela há de rolar qual as pedras

que rolam na estrada

Sem ter nunca um cantinho de seu

pra poder descansar

Comecemos a análise dessa canção pela letra. Nos dois primeiros quartetos, Lupicínio Rodrigues já escancara o enredo da música (e o motivo de sua dor): “Eu gostei tanto/ tanto quando me contaram/ que a encontraram/ bebendo e chorando na mesa de um bar/ E que quando os amigos do peito/ por mim perguntaram/ Um soluço cortou sua voz/ não lhe deixou falar”. É incrível como o compositor gaúcho vai direto ao ponto e nos mostra a cena emblemática que escancara a separação do casal de protagonistas. Em poucos (e intensos) versos, ele apresenta o contexto da história e nos confidencia a razão do coração partido.


Ao ver a antiga companheira destruída na mesa do bar, a alegria do eu-lírico é imaginar que ela se arrependeu da traição cometida (ou pretendida, como no caso real). Lupicínio, assim, canta: “O remorso talvez seja a causa/ do seu desespero/ Ela deve estar bem consciente/ do que praticou/ Me fazer passar esta vergonha/ com um companheiro”. Curiosamente, em nenhum momento ele cogita que a infelicidade da moça seja o pé na bunda indireto que tomou do homem que ela verdadeiramente amava (o tal companheiro do eu-lírico, que preferiu a manutenção da amizade masculina à aventura com a mulher casada do amigo). Qual a verdadeira razão da tristeza da personagem feminina dessa música, hein?! Não sabemos. Afinal, ela não diz uma palavra sequer. Se acompanharmos a versão do eu-lírico (obviamente enviesada pela raiva e pela sede de vingança), somos levados a acreditar que ela se culpa por ter destruído o antigo casamento.


Uma parte da letra que suscitou certo debate na época é: “E a vergonha é a herança maior/ que meu pai me deixou”. Ao invés de apontarem uma má relação de Lupicínio com o pai (algo que nunca existiu – eles sempre se deram muitíssimo bem), esses versos indicam que o pai do eu-lírico também passou pelo mesmo problema que o filho enfrenta nesse momento. É como se o sofrimento amoroso, a desilusão sentimental e a traição conjugal estivessem no DNA dos homens daquela família. Do ponto de vista poético, esse trecho é um dos mais belos da canção.


A parte final de “Vingança” vem carregada de rancor. O eu-lírico não superou a traição e, tal qual uma fera ferida, destila o veneno da vingança. Para ele, sua antiga companheira deve sofrer mais e mais até o final da vida. Não há aqui nem uma pontinha de consideração ou piedade. Veja: “Mas enquanto houver força em meu peito/ Eu não quero mais nada/ E pra todos os santos vingança/ vingança clamar/ Ela há de rolar qual as pedras/ que rolam na estrada/ Sem ter nunca um cantinho de seu/ pra poder descansar”. Como falei, são versos fortes, maldosos e impiedosos, típicos de alguém profundamente ressentido.

Música Vingança de Lupicínio Rodrigues

Vale a pena dizer que o último quarteto de “Vingança” ganhou desdobramentos em outras músicas brasileiras, o que comprova a importância dessa canção de Lupicínio para a cultura popular nacional. Uma boa referência do que estou dizendo é a faixa “Medo da Chuva”, de Raul Seixas. O roqueiro baiano cantou em 1974 (portanto, 22 anos depois da gravação de Lupicínio Rodrigues): “Como as pedras imóveis na praia/ Eu fico ao seu lado sem saber/ Dos amores que a vida me trouxe/ E eu não pude viver”. E segue: “Aprendi o segredo, o segredo/ O segredo da vida/ Vendo as pedras que choram sozinhas/ No mesmo lugar/ Vendo as pedras que choram sozinhas/ no mesmo lugar/ Vendo as pedras que sonham sozinhas/ no mesmo lugar”.


Repare que Raul usa a mesma simbologia de Lupicínio para mostrar o relacionamento amoroso – pedras agem como as pessoas/amantes, seja na estrada, seja na praia. Enquanto o Mestre da Dor de Cotovelo diz que a antiga parceira não encontrará um lugar tranquilo para descansar depois da traição, o Rei do Rock nacional, por outro lado, quer ter a liberdade de trair a companheira a torto e direito (levando a canção para um lado totalmente carnal e menos emocional). Se a construção poética é a mesma (pedras são pessoas), as mensagens finais dos versos das duas composições não poderiam ser mais distintas.


Da perspectiva da melodia, “Vingança” é um samba-canção um tanto diferentão. Ele possui uma batida bem lenta, o que o aproxima mais dos boleros das décadas de 1930 e 1940 e menos dos sambas dos anos 1950. Note que em alguns momentos, os acordes sobem e descem. A amplitude melódica dá espaço para o cantor explorar uma interpretação mais sentimental, mais dolorosa (assistimos quase a um choro de um homem amargurado). Essas opções musicais de Lupicínio Rodrigues (ritmo lento e variação dos acordes) foram propositais e se encaixaram perfeitamente com o conteúdo melodramático da letra de “Vingança”. Grande parte da passionalidade dos versos dessa canção vem justamente do casamento harmônico de melodia e letra.

Lupicínio Rodrigues é o compositor da música Vingança

A primeira gravação de “Vingança” foi realizada, em 1951, pelo Trio de Ouro. Naquele momento, o grupo musical já estava na segunda formação: Herivelto Martins, Nilo Chagas e Noemi Cavalcanti, que substituía Dalva de Oliveira. A canção foi escolhida a dedo por Herivelto, que acabara de se separar de Dalva. A ideia do líder do Trio de Ouro era ter uma canção que falasse da alegria de ver a antiga companheira triste com o fim do relacionamento. Contudo, a música não se tornou sucesso com o Trio de Ouro. O público e a imprensa pareciam mais interessados nas notícias sobre o ruidoso término do matrimônio de Herivelto Martins e Dalva de Oliveira, uma bomba atômica no universo musical da época que chegou aos tribunais e foi comentada pelo povo nos quatro cantos do país.


Assim, coube a Linda Batista a oportunidade de fazer sucesso com “Vingança”. Ela ouviu a faixa de Lupicínio em um encontro de amigos e decidiu, ainda em 1951, gravá-la. Na voz de Linda, a música estourou nas rádios e se tornou um dos maiores hits na virada de 1951 para 1952. Paradoxalmente, Linda Batista conseguiu obter êxito com uma canção há pouco gravada pelo Trio de Ouro, um dos grupos musicais mais populares daquele momento.


Até o estouro comercial de “Vingança”, Lupicínio Rodrigues jamais havia feito um álbum próprio. Até então, ele era mais conhecido como compositor do que como intérprete. O gaúcho ganhava a vida como bedel na Faculdade de Direito da UFRGS e, mais tarde, como proprietário de bares e restaurantes em Porto Alegre. Com o sucesso de “Vingança” na voz de Linda Batista e, alguns anos antes, de “Felicidade” e “Nervos de Aço” na voz de Francisco Alves, Lupicínio se sentiu encorajado para lançar seu próprio disco. E o LP de estreia, “Roteiro de Um Bohêmio” (com “h” mesmo), foi gravado em 1952 com várias composições autorais. Obviamente, uma das faixas do álbum era “Vingança”. Estou usando justamente essa data (1952) para a celebração da efeméride (e não os lançamentos dessa canção pelo Trio de Ouro e por Linda Batista em 1951). A gravação de “Vingança” por Lupicínio completa, em 2022, 70 anos.

Disco Roteiro de Um Bohêmio de Lupicínio Rodrigues

A interpretação do compositor da canção é a mais intimista de todas. Sua voz fina e açucarada casa perfeitamente com a letra ácida e passional. A impressão é de presenciarmos o desabafo de um homem com o coração dilacerado. Incrível! A principal versão de “Vingança” que conhecemos hoje é aquela que Lupicínio Rodrigues regravou no finalzinho da década de 1960 e no começo dos anos 1970. Já no final de carreira e quase sessentão, o cantor lançou álbuns com seus grandes sucessos. Não por acaso, as interpretações mais famosas de “Nervos de Aço”, “Felicidade”, “Vingança”, “O Amor Deve Ser Sagrado”, “Esses Moços”, “Cadeira Vazia”, “Que Há de Dizer”, “Ela Disse-me Assim” e tantas outras músicas célebres do gaúcho são dessa época (muita coisa dos anos 1950 e 1960 se perderam).


Mais tarde, “Vingança” foi cantada por Jamelão, o eterno mangueirense, ainda nos anos 1950 e por Elza Soares, a Rainha do Samba e do Soul Blues, na década de 1960. Para Lupicínio Rodrigues, a melhor interpretação de “Vingança” é a de Jamelão. Para mim, fã que sou do vozeirão rouco da recém-falecida sambista, a versão mais contundente de “Vingança” é a de Elza Soares. Opiniões à parte, ouça as duas. Elas valem a pena!


Depois do falecimento de Lupicínio Rodrigues em 1974, outros intérpretes cantaram “Vingança”. Dá para citar Adriana Calcanhotto, Alcione, Noite Ilustrada, Cauby Peixoto, Angela Maria, e, claro, Nelson Gonçalves. Das versões mais atuais (não estou considerando, portanto, a interpretação de Lupicínio nem a de Elza, tá?), a melhor é a do Nelsão. Mesmo em fim de carreira e com a voz longe do ideal (o vício nas drogas cobrou seu preço nos anos 1970 e 1980), Nelson Gonçalves dá um show na hora de cantar os versos dramáticos de Lupicínio Rodrigues.


“Vingança” é uma música tão triste, mas tão triste que ela deu origem a uma lenda. Na década de 1960, Lupicínio Rodrigues contava em entrevistas que soube de uma moça que se suicidou ao som dessa canção. A dita cuja morreu depois de ligar simultaneamente o gás de casa e a vitrola na faixa de “Vingança”. Se essa história é verdadeira ou não, sinceramente não sei. Mas que ela mostra a força dos versos melodramáticos de Lupicínio, isso mostra.


E aí, o que você achou de “Vingança”? Essa canção merece mesmo o status de obra-prima de Lupicínio Rodrigues e a fama de uma das faixas mais tristes da música popular brasileira?


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