Mostrar um diálogo é a técnica utilizada nos parágrafos iniciais dessa nova narrativa da coluna Contos & Crônicas.
– Oi.
– Bom dia! Achei que você não viesse falar comigo hoje – O velho fingiu certo descontentamento para ver a reação do menino.
– Por quê?
– Porque eu estou sentado aqui desde que você chegou na praça e até agora você não tinha dado atenção para mim. Nem ao menos me cumprimentou. Onde está a sua educação?
– Não sei... Estou brincando com o meu amiguinho ali e não reparei em mais nada. Me desculpe. Nós estamos jogando bolinha de gude. Eu sou tão bom e ele é tão ruim que dá até dó. Se no futebol ele ganha de mim, no gude eu me vingo bonito – Bateu a mão no bolso da bermuda e as bolinhas acumuladas na última meia hora tintilaram.
– Sei bem disso. Você é o melhor. Sempre foi e sempre será o grande campeão!
O garoto abriu um sorriso orgulhoso. Seu cabelo era tão claro que com o reflexo do sol da manhã parecia branco. Ele não sabia como, mas o velho já conhecia todas as suas façanhas antes mesmo de contá-las. Ainda assim, o menino adorava falar de suas vitórias. E o senhor com a cabeleira e a barba brancas também apreciava ouvi-las. O velho saboreava as longas narrativas daquele loirinho como se fossem a dele próprio. Gostava principalmente do entusiasmo e do tom épico com que o pequeno amigo temperava cada uma de suas histórias.
– Estava com saudade de você, sabia? Há quanto tempo não nos víamos? Olha como você cresceu. Às vezes, tenho a impressão de que nos vimos pela última vez em outra vida.
O garotinho não respondeu, se limitando a olhar para o idoso sentado no banco com ar de desprezo. O velho era um cara bacana, mas era um tanto exagerado, pensava o loirinho. Eles haviam se visto há pouco tempo e não em outra vida. O menino até sabia o significado da palavra saudade e já a sentira algumas vezes. Porém, ele não conseguia nutrir tal sentimento pela ausência do velho amigo. Como aquilo era possível? Ele gostava daquele senhor, mas não sentia saudade dele.
– E aí, vou ganhar ou não o meu presente de hoje?
– E algum dia eu já esqueci do seu chocolate, hein?! – Tira do bolso do casaco um punhado de bombons – Mas antes, preciso saber como foi a sua semana. Sente-se aqui do meu lado. Vamos conversar um pouco.
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“Primeira Página” é a sétima série narrativa da coluna Contos & Crônicas. Nessa nova coletânea de textos do Bonas Histórias, Ricardo Bonacorci apresenta, ao longo de 2021, a primeira página de oito possíveis romances. A ideia é mostrar a força e a intensidade dos parágrafos iniciais das tramas ficcionais. Enquanto tenta cativar a curiosidade dos leitores, Ricardo utiliza (e explica suscintamente) algumas técnicas clássicas de abertura narrativa.
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Técnica utilizada em “Devaneios”: Mostrar um diálogo.
Iniciar a narrativa com um diálogo pode ser uma estratégia extremamente interessante. Afinal, esse recurso possibilita a apresentação de uma ação (algo que sempre confere dinamismo ao texto), a exposição das personagens (e de algumas de suas principais características) e a construção do cenário (contextualizando o ambiente em poucas palavras). Quando bem realizada, a técnica de mostrar um diálogo já nas linhas iniciais da trama pode ajudar o escritor a ganhar a confiança do leitor, a cativar sua curiosidade, a exibir rapidamente o conflito e a promover velocidade à cena de abertura. Por outro lado, se não for bem executado, esse expediente narrativo pode confundir o leitor (o que está acontecendo?) e tornar a ação amarrada ou lenta (sensação de que nada está ocorrendo).
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