Recorrendo à técnica da descrição de cenários, Ricardo Bonacorci apresenta o terceiro início de narrativa da nova série da coluna Contos & Crônicas.
No sobe e desce das curvas verdejantes de Minas, escondia-se um povoado peculiar. O que ele tinha de diminuto em extensão, tinha de grandeza em inquietação. Povolândia do Alto surgia no horizonte tão logo os tropeços das águas barulhentas do Rio Deus-me-livre se amansavam. Ou para quem vinha do Norte, bastava dizer que passando Pedra Branca, ponto turístico da vizinha Azeludinha da Enxada, virando à direita, caminhando cinco quilômetros em linha aparentemente reta, chegava-se às primeiras araucárias da cidade.
Daquele ponto da planície já era possível avistar ao longe os contornos das maiores edificações povolandenses do alto, como a torre da igreja, o último andar da prefeitura e a ponta da antena de rádio. A casa do Armandinho até que estava perto, mas não era visível dali, oculta que estava pela mata fechada. Obviamente, para descobrir o pequeno município, o viajante não podia estar com pressa. Caso contrário, não notaria o cinza artificial por de trás do verde das árvores e das montanhas e do azul do rio e do céu. Nos dias nublados, o branco vinha compor a paleta de cores daquela tela.
Para se chegar ao centro de Povolândia do Alto, era preciso caminhar mais um tantinho pela estrada de terra batida. Muita gente só considerava estar em solo urbano depois de cruzar a ponte sobre o Deus-me-livre. Outros achavam que era necessário enxergar o coreto da Praça Coronel Ataúde ou a fachada da Igreja Matriz. Alguns ainda afirmavam que você só chegava ao povoado se topasse com o Bernardo Bebe-pouco dormindo na calçada de boca aberta, se visse Dona Cleide encostada na janela com a língua solta ou se trombasse com o Fernandinho varrendo as ruas como se a sujeira fosse culpa sua.
De qualquer modo, uma vez lá, e a chegada a esse lá ficava à cargo de cada um, era possível sentir o perfume do pinhão fervendo, das folhas batendo nas árvores, do café sendo coado, da inocência da infância, do tique-taque dos relógios analógicos e das galinhas no fundo dos quintais. O que não se sentia, definitivamente, era o cheiro do dinheiro. E do progresso. Esse tipo de odor passava longe dali.
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“Primeira Página” é a sétima série narrativa da coluna Contos & Crônicas. Nessa nova coletânea de textos do Bonas Histórias, Ricardo Bonacorci apresenta, ao longo de 2021, a primeira página de oito possíveis romances. A ideia é mostrar a força e a intensidade dos parágrafos iniciais das tramas ficcionais. Enquanto tenta cativar a curiosidade dos leitores, Ricardo utiliza (e explica suscintamente) algumas técnicas clássicas de abertura narrativa.
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Técnica utilizada em “O Pobre Milionário”: descrição de cenários.
A descrição de cenários é uma das mais antigas estratégias para se começar uma história. Com esse expediente literário, o(a) autor(a) ficcional inicia seu relato apresentando as particularidades do espaço narrativo. De modo geral, a ideia de quem utiliza essa técnica é que, ao conhecer os detalhes da paisagem em que a trama está inserida, o leitor se sentirá envolvido para continuar a leitura. A descrição de cenários é muito usada na literatura infantil, nos romances românticos (romântico aqui se refere ao Romantismo, movimento literário do século XIX), nas aventuras de ficção científica e em narrativas históricas. O maior risco dessa estratégia é deixar o texto muito descritivo (algo que torna o ritmo narrativo lento e a leitura cansativa). Por outro lado, se bem-feito, o(a) escritor(a) consegue introduzir rapidamente a ambientação, o que cativa o leitor a continuar acompanhando as próximas páginas do romance ou da novela.
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