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Bonas Histórias

O Bonas Histórias é o blog de literatura, cultura, arte e entretenimento criado por Ricardo Bonacorci em 2014. Com um conteúdo multicultural (literatura, cinema, música, dança, teatro, exposição, pintura e gastronomia), o Blog Bonas Histórias analisa as boas histórias contadas no Brasil e no mundo.

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Ricardo Bonacorci

Nascido na cidade de São Paulo, Ricardo Bonacorci tem 42 anos, mora em Buenos Aires e trabalha como publicitário, produtor de conteúdo, crítico literário e cultural, editor, escritor e pesquisador acadêmico. Ricardo é especialista em Administração de Empresas, pós-graduado em Gestão da Inovação, bacharel em Comunicação Social, licenciando em Letras-Português e pós-graduando em Formação de Escritores.  

  • Foto do escritorRicardo Bonacorci

Romances: Primeira Página - Procurado

Escancarar o conflito logo de cara é a estratégia narrativa que prende a atenção do leitor e torna o texto ficcional mais dinâmicos.

Primeira Página - Procurado - Ricardo Bonacorci

Três mil e quatrocentos... Serginho ainda fazia contas mentalmente quando pulou da cama. Era madrugada e ele não queria esperar o despertar do celular. Para que ficar deitado se não pregara o olho a noite inteira? Além do mais, o toque do aparelho poderia levantar suspeitas. Ele nunca acordava cedo. Nunca! Ainda mais durante a semana. O que os vizinhos de barracão iriam pensar da inesperada mudança de hábito, hein?! Serginho não podia correr riscos. Precisava sair de casa logo e na surdina.


Olhou no relógio do celular: eram quatro e cinco. Talvez não encontrasse muitos conhecidos pelas ruelas do bairro naquele horário. Na certa, Paulínia já estava de pé e com o menino a tiracolo. Porém, dificilmente ela sairia de casa antes das cinco. Quanto ao Seu Peixoto e ao Humberto, eles deviam, naquela altura do campeonato, estar puxando um ronco bravo. Só de pensar na palavra “deviam”, Serginho estremeceu. Ele tinha alguma chance de sair daquela enrascada? Sim, mas era preciso agir. Agir rápido. Agir com inteligência.


Três mil e quatrocentos... Três mil e quinhentos se fosse arredondar. Com essa grana no bolso dava para pagar todo mundo e sua barra ficaria novamente limpa. Pelo menos por mais um tempinho. O melhor é que ainda sobrava um trocado para a comemoração, que seria obviamente no bar da Sueli ou na casa da Dinorá. O que o agonizava era não saber como levantar aquela quantia em tão pouco tempo. Serginho não tinha um plano definido. Ainda! A preocupação agora era deixar o subúrbio e seguir para o centro. Lá, as chances de topar com a ex-mulher, com o dono do barracão ou com o desgraçado do irmão eram menores. Uma vez na rua, ele pensaria o que fazer.


Ao terminar de vestir a camiseta regata, o bermudão e o chinelo, Serginho bateu o olho no que sobrou do espelho da porta do armário do quarto, que ficava na verdade na sala. Sua imagem o assustou. A barba comprida, o cabelo desalinhado, as olheiras profundas e a roupa velha não combinavam com a aparência que ele precisava para aquele dia tão importante. A sujeira no espelho também não contribuía em nada para torná-lo um homem respeitável nem mesmo aos próprios olhos. Como iria conseguir três mil e quinhentos contos daquele jeito, me fala? Jamais! Ninguém lhe daria um centavo, o que dirá três mil e... três mil e setecentos, se quisesse arrumar o espelho. Se bem que era a Paulínia quem deveria pagar por aquilo. Não foi ela quem atirou o vaso na porta do armário quando descobriu que ele estava saindo com a Lurdinha?


O reflexo no espelho fez Serginho mudar os planos. Melhor se atrasar uns minutinhos agora do que chegar ao centrão desarrumado. Por isso, o rapaz ferveu água na chaleira e, para ganhar tempo, fez a barba na pia da cozinha. Usou para isso a faca mais afiada que tinha, o que não era grande coisa. Depois, levou a chaleira para o banheiro, atirou o líquido no balde e misturou com água fria. O banho foi rápido e morno. Um luxo que há muito tempo não se dava. Agora era só colocar a roupa de domingo, aquela que usava quando ia aos cultos do Pastor Macedo, e pá-pum – pegaria o busão em direção à Praça da Matriz com uma aparência impecável.


Ao sair de casa, encostou a porta da frente para não fazer barulho. A escuridão e o silêncio ainda tomavam conta do bairro humilde quando o rapaz apertou os passos. O cenário pacato era uma arma de Serginho. Se tudo desse certo, ninguém iria notar sua presença por ali. Ainda bem que acordara cedo e saíra antes do sol pintar. Acordara?! Como poderia falar aquilo se nem conseguiu dormir, né? Para se certificar do horário, olhou mais uma vez para o relógio do celular. Eram... eram... eram... Depois de um chacoalhão e duas batidas no aparelho, descobriu que o bichano estava apagado. Como era possível o telefone ter morrido se Serginho o tinha recarregado na noite anterior? A bateria foi para o saco, pensou. Ela já dava sinais do fim há alguns dias. Revoltado com a má sorte, o moço não se aguentou e soltou um palavrão aos quatro ventos.


– Quem tá aí?!


A voz era do Geraldo, que muito provavelmente rumava naquele horário para a padaria no alto do morro. A presença de alguém oculto na escuridão deve ter preocupado o padeiro. Seria um assaltante na espreita?


– Calma, Geraldão. Sou eu, parceiro, fique de boa – Serginho aproximou-se do meio da rua, onde a luz de um poste enfim o descortinou em sua totalidade – Achou que fosse o bicho-papão, hein?


– Cara, cê quase me mata de susto, porra! O que ocê faz de pé nessa hora, ainda mais vestido como homem?! Até o cabelo tá lambido. E fez a barba.


– Engraçadinho. Tó indo pro centro. Vou trampar. Sabe como é, tem uma hora na vida que a gente precisa fazer isso.


– Só ocê memo, Porralouca. De pé na madruga e falando que vai trampá. Não tá cedo para vir com lorota para cima de mim?


– Cala boca, Geraldão. Vai fazer pão que você ganha mais e me deixa com meus problemas.


Sem se despedir, Serginho virou à esquerda na primeira esquina e desceu a ladeira, em caminho oposto ao padeiro. Mal tinha ficado sozinho outra vez, ele se arrependeu daquele encontro fortuito. Na certa, Geraldo iria contar para todo mundo que o viu perambulando pelo bairro logo cedo. Eita sujeitinho mais cagueteiro aquele. Paciência! Se Serginho voltasse à tarde com três mil e setecentos no bolso, o povo poderia falar o que quisesse. Sua vida não era da conta de ninguém. Ou de quase ninguém. Insistentemente, Paulínia, Seu Peixoto e Humberto cobravam-lhe um comportamento compatível a de um pai de família. Pai de família?! Serginho riu e olhou novamente para o celular. Talvez o melhor fosse voltar com três mil e novecentos reais. Ele precisava de um aparelho novo.


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“Primeira Página” é a sétima série narrativa da coluna Contos & Crônicas. Nessa nova coletânea de textos do Bonas Histórias, Ricardo Bonacorci apresenta, ao longo de 2021, a primeira página de oito possíveis romances. A ideia é mostrar a força e a intensidade dos parágrafos iniciais das tramas ficcionais. Enquanto tenta cativar a curiosidade dos leitores, Ricardo utiliza (e explica suscintamente) algumas técnicas clássicas de abertura narrativa.


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Técnica utilizada em “Procurado”: Escancarar o conflito logo de cara.


Escancarar o conflito logo de cara é uma das estratégias narrativas que os escritores têm para prender rapidamente a atenção do leitor e, principalmente, para apresentar quase que instantaneamente o enredo do conto, novela ou romance. Afinal, não há nada mais chato do que ler algo sem entender o sentido daquela trama e a lógica por trás das ações das personagens. Para evitar esse tropeção, infelizmente comum na literatura comercial, nada melhor do que expor já de saída o conflito. Essa técnica é comumente usada em thrillers e em romances policiais, mas pode ser aplicada em vários gêneros ficcionais.


A vantagem de se escancarar o conflito logo de cara é que o leitor sabe já nas primeiras páginas o problema central que move os protagonistas. Se os acontecimentos que modificaram a vida das personagens principais são significativos, impactantes, dramáticos, originais e inusitados, a chance de o público continuar lendo a história é alta. Além disso, uma vez apresentada a dinâmica da trama, o autor pode se concentrar nos desdobramentos da narrativa, o que a torna dinâmica. A desvantagem desse tipo de estratégia é que, se o conflito não for forte, não estiver bem formulado e/ou não ser criativo ao ponto de empolgar rapidamente o leitor, temos a possibilidade de o público descartar a leitura em poucas páginas, não dando muitas chances para o texto.


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