Na nova edição de seu programa de TV, Darico Nobar entrevista a protagonista de O Guarani, romance indianista clássico de José de Alencar.
Darico Nobar: Olá, Brasil! O Talk Show Literário já está no ar. [A banda toca os acordes iniciais da canção mais famosa de Carlos Gomes]. Esta noite promete ser inesquecível, meus amigos. Vamos receber não apenas um convidado, mas duas personalidades da mais alta prateleira da literatura brasileira.
Plateia: Eeeeeeeeeeeeeeeeh!
Darico Nobar: A entrevista de hoje é com um dos casais mais belos da ficção do nosso país. Com vocês, Peri e Ceci!
[Em pé, no meio do auditório formado pelo grande mar de cabecinhas curiosas, sob saraivada de aplausos, surge uma mulher na flor da idade. A donzela lusitana de grandes olhos azuis, lábios vermelhos, hálito doce e a tez pura tem sobre o vestido branco de cassa um ligeiro saiote de riço azul apanhado à cintura por um broche. Os longos cabelos louros, enrolados negligentemente em ricas tranças, descobrem a fronte alva e caem em volta do pescoço por uma rendinha finíssima de fios de palha cor de ouro. Em um rubor vivo que acende o rosado das faces, a jovem se dirige ao palco].
Darico Nobar: É um prazer te receber em nosso programa, Ceci.
Cecília de Mariz: Obrigada, Sr. D. Darico.
Darico Nobar: E cadê Peri? [Olha insistentemente para os lados]. Não vá me dizer que ele não veio?
Cecília de Mariz: Há dois dias que não sei notícias dele. Mal pisamos na cidade, Peri sumiu-se no horizonte.
Darico Nobar: Dois dias? Mas será que ele está bem?
Cecília de Mariz: Aposto que está entranhado na mata a brincar com uma onça como vós com o vosso gatinho doméstico; ou está a caçar-me um tigre só para vê-lo domesticado em meus braços.
Darico Nobar: Mas não há onça nem tigre à solta no Rio de Janeiro, Cecília.
Cecília de Mariz: Peri não passa aprumo, meu bom senhor. Se não está atrás de bicho, deve estar a me rodear, velando secretamente pela minha proteção, como costuma fazer lá na vizinhança do Paquequer.
Darico Nobar: De certo! [Solta uma risada desfazendo o ar de preocupação]. Mesmo assim, queria conhecê-lo pessoalmente.
Cecília de Mariz: Estou convencida que ele se envergonha de ter vindo à cidade comigo. Teme ser visto, no meio de homens civilizados, como um índio ignorante, nascido de uma raça bárbara, a quem a sociedade repele e marca o lagar de cativo.
Darico Nobar: Pudera. Tratam muito injustamente o pobre índio que não faz mal algum.
Cecília de Mariz: Ora, num momento de zanga de um ou outro...
Darico Nobar: Procede que a família de Mariz o trata como um selvagem que tem a pele escura e o sangue vermelho?! Tua mãe diz mesmo que o índio é um animal como um cavalo ou um cão?
Cecília de Mariz: Sr. Darico!!!
Darico Nobar: Sei que você não pensa assim, doce Cecília. O seu bom coração não olha a cor do rosto para conhecer a alma. Mas os outros... Sei do desdém com que tratam Peri lá na casa do Paquequer.
Cecília de Mariz: Digo que é uma desconfiança tua; todos o querem, e o respeitam como devem.
Darico Nobar: Será mesmo?!
Cecília de Mariz: Crede-me, Sr. D. Darico, Peri é um cavalheiro português no corpo de um selvagem! Meu pai diz que ele tem nobre coração, que é dono dos principais predicados de um legítimo cavalheiro português.
Darico Nobar: O coração desse rapaz é mesmo gigantesco.
Cecília de Mariz: Sim! Vós que sabeis compreender tudo que é nobre! Em Peri, o sentimento é uma espécie de idolatria fanática, na qual não entra um só pensamento de egoísmo ou vaidade; ama algo ou alguém não para sentir um prazer ou ter uma satisfação, mas para dedicar-se inteiramente à causa, para cumprir o menor de seus desejos.
Darico Nobar: Não conheço ninguém que diga que viu alguém mais apaixonadamente do que Peri.
Cecília de Mariz: Se bem que acho que eu conheço... [Murmura timidamente].
Darico Nobar: E eu diria mais, minha amiga. Peri é extremamente corajoso. Ele é impávido que nem Muhammad Ali e tranquilo e infalível como Bruce Lee.
Cecília de Mariz: Peri é filho de Ararê, é o primeiro de sua tribo, forte entre os fortes, guerreiro goitacá. [Faz uma careta]. Ele vive repetindo essa ladainha...
Darico Nobar: O que a senhorita diria para aqueles que te acusam de escravizar o rapaz?
Cecília de Mariz: Meu pobre Peri! Ele é tão livre como o canto dos pássaros. Se age como meu escravo, é por força unicamente do coração. A Lua é serva dos movimentos do Sol e o Sol é vassalo dos caprichos da Lua pelos desígnios da natureza; e ninguém parece se preocupar com as incongruências da dinâmica celestial.
Darico Nobar: E isso é justo aos olhos da senhorita?
Cecília de Mariz: Por Deus! Eis um direito original!
Darico Nobar: Original ou romântico?
Cecília de Mariz: O julgamento dos tribunais dos homens pode exagerar-se; o coração, por sua vez, é sempre verdadeiro, não diz senão o que sente; e o sentimento, qualquer que ele seja, tem a sua beleza.
Darico Nobar: Parece-me, querida Cecília, que você é uma byroniana inveterada!
Cecília de Mariz: Sou filha de um Rio de Janeiro violento, inóspito, selvagem e inculto. De onde venho, a civilização não teve tempo de penetrar o interior da natureza nem da alma humana.
Darico Nobar: Talvez as coisas não tenham mudado muito de lá para cá... [A fala sai baixinho, mais para si do que para a entrevistada ou para o público].
Cecília de Mariz: E as paixões no deserto, sobretudo no seio da natureza grande e majestosa, são verdadeiras epopeias do coração.
Darico Nobar: Podemos dizer, então, que Peri é o modelo de brasileiro perfeito?
Cecília de Mariz: Oh! não, meu senhor; ele é um anjo de bondade, mas Peri também pode ser mau e ingrato; em vez de ficar perto de sua senhora, gosta de caçar o risco de morrer! [O tom de voz tem certo arzinho de rainha contrariada]. Ele está sempre a me desobedecer.
Darico Nobar: Aproveitando que a senhorita está revelando os aspectos mundanos de Peri, gostaria de saber os detalhes mais picantes da rotina dele na mata.
Cecília de Mariz: Por quê, Sr. D. Darico? Fez ele alguma coisa?!
Darico Nobar: É exatamente o que gostaria de saber; se ele fez alguma coisa.
Cecília de Mariz: Não estou a te compreender. [Fita nele os seus grandes olhos azuis e cora].
Darico Nobar: Vocês dois são jovens, estão na flor da idade, vivem grudados e tem os hormônios em ebulição. Ele acompanha a senhorita e sua prima nos banhos no riacho, né? É o único que tem acesso ao seu quarto nas noites quentes do Verão fluminense. E parece gostar de velar seu sono. É natural que imaginemos que a relação de vocês dois tenha evoluído para algo menos platônico, não é?
Cecília de Mariz: Ah! nunca! Não me peças uma coisa impossível, Sr. D. Darico! Já sabes demais; não me obrigues a morrer a teus pés de vergonha.
Darico Nobar: Vergonha?! Mas foi a senhorita mesma que disse que, como é mesmo, as paixões no deserto são epopeias do coração. [Ao silêncio da convidada, prossegue]. E o sentimento, qualquer que seja, tem lá a sua beleza.
Cecília de Mariz: Sr. Darico, é a primeira vez que dizeis palavras em um tom que me desagrada; pareceis querer dar a entender alguma coisa, mas falta-vos o ânimo de a proferir. Uma vez por todas, falai abertamente, e Deus vos guarde de mencionar questões que são sagradas.
[Uma seta de penas azuis e brancas, que não se sabe de onde vem, atravessa o espaço com a rapidez de um raio e, antes que se ouça o sibilo forte e agudo do impacto, prega-se na mesa do apresentador. De repente, os microfones do estúdio captam um grito].
Voz desconhecida: Iara!
[O espanto dos presentes se transforma em pânico quando uma nuvem de flechas desagua em todas as direções, atingindo chão, paredes, objetos e teto. Por um milagre, nenhuma seta atinge ninguém, por mais perto que tenham chegado por vezes].
Darico Nobar: Socorro!!! Estamos sendo atacados?! [Abaixa-se atrás da mesa].
[A única pessoa aparentemente tranquila no auditório é a convidada, que permanece sentada em postura lânguida no sofá. O restante sai correndo em direção às portas, em um gigantesco tumulto. A câmera que segue filmando as cenas é operada remotamente].
Cecília de Mariz: Meu Deus!... Peri!... Pares de pirraça. Tires-me daqui.
[O sistema contra incêndio é disparado e os splinters instalados no teto do auditório começam a jorrar água, o que potencializa a confusão e o desespero do povo que ainda tenta fugir. Muita gente escorrega e cai na correria, enquanto a água sobe rapidamente].
Cecília de Mariz: Peri, por que não fizeste o que tua senhora te manda? [O sofá em que está boia segundo a maré da enxurrada].
[Tudo é água e caos. A inundação cobre a emissora de televisão até onde a vista pode alcançar; quando a energia elétrica do auditório é cortada, a luz cai e a transmissão é interrompida. Após alguns segundos de escuridão total na tela, surge o anúncio de um sabão em pó. O próximo programa da noite não deve demorar para começar].
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O Talk Show Literário é o programa de televisão fictício que entrevista as mais famosas personagens da literatura. Assim como ocorreu nas cinco primeiras temporadas, neste sexto ano da atração, os convidados de Darico Nobar, personagem criada por Ricardo Bonacorci, são os protagonistas dos clássicos brasileiros. Para acompanhar as demais entrevistas, clique em Talk Show Literário. Este é um quadro exclusivo do Blog Bonas Histórias.
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