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Bonas Histórias

O Bonas Histórias é o blog de literatura, cultura, arte e entretenimento criado por Ricardo Bonacorci em 2014. Com um conteúdo multicultural – literatura, cinema, música, dança, teatro, exposição, pintura, gastronomia, turismo etc. –, o Blog Bonas Histórias analisa de maneira profunda e completa as boas histórias contadas no Brasil e no mundo.

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Ricardo Bonacorci

Nascido na cidade de São Paulo, Ricardo Bonacorci tem 44 anos, mora em Buenos Aires e trabalha como publicitário, produtor de conteúdo, crítico literário e cultural, editor, escritor e pesquisador acadêmico. Ricardo é especialista em Administração de Empresas, pós-graduado em Gestão da Inovação, bacharel em Comunicação Social, licenciando em Letras-Português e pós-graduando em Formação de Escritores.  

Talk Show Literário: Dona Carolina

  • Foto do escritor: Ricardo Bonacorci
    Ricardo Bonacorci
  • há 5 dias
  • 7 min de leitura

Em mais um programa da oitava temporada do TSL, Darico Nobar entrevista a narradora-protagonista de Quarto de Despejo, livro de memórias de Carolina Maria de Jesus que foi publicado em 1960.

Talk Show Literário: Entrevista com Dona Carolina, narradora-protagonista de Quarto de Despejo, livro de memórias de Carolina Maria de Jesus publicado em 1960

[O estúdio do Talk Show Literário estava vazio e escuro. Ou quase totalmente vazio e escuro. Atrás da mesa no camarim, o apresentador fazia anotações em um calhamaço de folhas sob um único holofote de luz. Estava concentrado, lendo e rabiscando. Por isso, não reparou na chegada de uma senhora magra de esperança e maltrapida de felicidade. Ela bateu na porta com delicadeza e colocou a cabeça para dentro].


Dona Carolina: Dá licensa, Seu Darico. Tem papel pra eu levar?


Darico Nobar: Bom dia, Dona Carolina! [Abriu o sorriso assim que tirou os olhos das anotações]. Chegue mais, por favor. Como a senhora está?


Dona Carolina: Vou levando, vou levando.... [Entrou com embaraço].


Darico Nobar: O que já faz de pé, mulher?! [Olhou no relógio: não eram ainda sete horas da manhã]. Não é muito cedo pra ficar zanzando por aí?


Dona Carolina: O pobre não repousa. Não tem o previlegio de gosar descanço.


Darico Nobar: Como estão Vera Eunice, José Carlos e João José, hein?


Dona Carolina: Tão bem. Do nosso geito: com fome.... e descalsos.  


Darico Nobar: Você sarou das pernas?


Dona Carolina: Depois que operei, fiquei boa, graças a Deus. Até pude dançar no Carnaval, com minha fantasia de penas. Agora voltei a vida atribulada. Cato papel, lavo roupa para dois jovens, permaneço na rua o dia todo. Tudo quanto eu encontro no lixo eu cato pra vender. E estou sempre em falta. Por falar nisso, tem algo hoje pra eu pegar?


Darico Nobar: Acho que tem! [Levantou-se e foi ao fundo do camarim olhar as caixas de materiais para reciclagem]. Deixei uma papelada aqui pra senhora.   


Dona Carolina: Muito obrigada. Não estou descontente com a profissão que exerço. Já habituei-me andar suja. Faz oito anos que cato papel. O desgosto que tenho é residir na favela.


Darico Nobar: Onde mesmo a senhora vive?


Dona Carolina: Favela do Canindé, lá em São Paulo. Rua A, barraco 9. Com três filhos, mas sem homem para me repreender nem me bater. A favela é o pior cortiço que existe.


Darico Nobar: Dureza, hein? [De costas para a visitante, revirava as caixas].


Dona Carolina: Lá, todos impricam comigo. A mulheres dizem que falo muito bem. E os homem ficam no meu pé. Mas o pior é para as crianças. Favela não é lugar para criar os filhos. Sempre que chego, encontro novidades. A Dona Rosa ou a indolente Maria dos Anjos vive brigando com meus meninos. Tenho pavor destas mulheres da favela. Tudo quer saber! A lingua delas é como os pés de galinha.


Darico Nobar: Imagino.


Dona Carolina: Eu gosto de ficar dentro de casa, com as portas fechadas. Não fico nas esquinas conversando.


Darico Nobar: Quando se fala em favela, a primeira coisa que me vem à cabeça é senso de comunidade. A união das pessoas.


Dona Carolina: Ah, Seu Darico, que bobagem! A unica coisa que não existe na favela é solidariedade. A minha porta atualmente é theatro. Todas criança jogam pedras, mas os meus filhos são os bodes expiatórios. As mulheres alude que eu não sou casada. Mas eu sou mais feliz do que elas. Elas tem marido. Mas, são obrigadas a pedir esmolas. São sustentadas por associações de caridade. Os meus filhos não são sustentados com pão de igreja. Eu enfrento qualquer especie de trabalho para mantê-los. E elas, tem que mendigar e ainda apanhar. Parece tambor. A noite enquanto elas pede socorro, eu tranquilamente no meu barracão ouço valsas vienenses. Enquanto os esposos quebra as tabuas do barracão, eu e meus filhos dormimos socegados. Não invejo as mulheres casadas da favela que levam vida de escravas indianas. Não casei e não estou descontente.


Darico Nobar: Entendo...


Dona Carolina: O que me deixa horrorizada é que as crianças presenciam lá. Ouvem palavras de baixo calão. Tem barracões de meretrizes que praticam suas cenas amorosas na presença da meninada. Durante o dia, os jovens de 15 e 18 anos sentam na grama e falam de roubo. E já tentaram assaltar o emporio do senhor Raymundo Guello. E um ficou carimbado com uma bala. E quando as mulheres foge dos maridos, elas fica nuas na frente de todos. Uma baxaria!


Darico Nobar: Sério?


Dona Carolina: Semana passada, a Pitita saiu correndo e o seu esposo atrás. As crianças olhava estas cenas com deleite. A Pitita estava semi-nua. E as partes que a mulher deve ocultar estava visivel. Ela correu, parou e pegou uma pedra. Jogou no Joaquim. Ele desviou-se e a pedra pegou na parede, por cima da cabeça da Teresinha. Pensei: esta nasceu de novo!


Darico Nobar: Vixe. Que perigo!


Dona Carolina: Oh! Se eu pudesse mudar de lá para um núcleo mais decente, seria mais feliz. Mas já que não posso dar aos meus filhos uma casa decente para residir, procuro lhe dar uma refeição condigna pra eles. Preciso ser tolerante com os meus filhos. Eles não tem ninguém no mundo a não ser eu. Como é pungente a condição de mulher sozinha sem um homem no lar.


Darico Nobar: Dona Carolina, eu tenho essas coisas. [Arrastou três caixas grandes pelo chão]. Veja se serve.


Dona Carolina: Claro que serve. [Começou a retirar os materiais e a jogá-los num grande saco preto]. Valeu! Vai dar pra levantar uns bons cruzeiros.


Darico Nobar: Não é muita coisa pra carregar? Vai conseguir levar tudo?


Dona Carolina: Já estou habituada. Quem carrega a fome na alma, carrega qualquer coisa nos braço.


Darico Nobar: A senhora fala umas coisas bonitas. É verdade que gosta de ler?


Dona Carolina: Gosto de ficar sozinha e ler. Ou escrever! Quando fico nervosa com a gente do Canindé, não gosto de discutir. Prefiro escrever. Todos os dias eu escrevo nos meus cadernos. Sento no quintal e escrevo. E toda noite leio. Não sei dormir sem um livro ou revista. Gosto de manusear as páginas. O livro é a melhor invenção do homem.


Darico Nobar: E o que você escreve?


Dona Carolina: Todas as lambanças que pratica os favelado, estes projetos de gente humana. Ainda vou lançar um livro, sabia?


Darico Nobar: Livro?! Não sabia... Sobre o que exatamente?


Dona Carolina: A favela. O meu sonho é andar bem limpinha, usar roupas de alto preço, residir numa casa confortável. Vou conseguir quando publicar meu livro. Ou quem sabe ter meu diário divulgado no O Cruzeiro. Já pensou? Aí todo mundo vai conhecer a vida dos favelado, aqueles que vivem num quarto de despejo.


Darico Nobar: Quarto de despejo?!


Dona Carolina: Quando estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo. Sou rebotalho. Quem vive assim ou queima ou é jogado no lixo.


Darico Nobar: Tenho um amigo, o Audálio. Ele é repórter. Quer que eu diga para ele te procurar? Acho que ele iria gostar de publicar uma história como a da senhora...


Dona Carolina: Se ele não me enrolar como o pessoal da The Reader Digest, tudo bem. Fui no Correio retirar os cadernos que retornaram dos Estados Unidos. Cheguei na favela triste como se tivessem mutilado os meus membros. Devolveram os originais. Pior bofetada para quem escreve é a devolução de sua obra.


Darico Nobar: E os políticos estão fazendo alguma coisa para mudar a triste realidade dos pobres da favela?


Dona Carolina: O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora. Quem passa fome aprende a pensar no proximo, e nas crianças. Sabe, Seu Darico, eu luto contra a escravatura atual, que é a miseria do povo negro e a fome da nossa gente. E nenhum politico olha isso. Ou quase nenhum, né? Só o Doutor Ademar se preocupa com os favelado.


Darico Nobar: O Ademar de Barros!? Mas ele é um ladrão, não é?


Dona Carolina: Não fale assim, Seu Darico. Sou ademarista roxa. Sempre fui. Gosto muito dele. Uma vez votei no Janio. Quem eu não gosto é desse presidente aí.


Darico Nobar: O Juscelino?


Dona Carolina: O homem tem um nome esquisito que o povo sabe falar, mas não sabe escrever. E ele deu treze milhões em joias para a Rainha da Inglaterra como presente de aniversário. Onde já se viu uma coisa dessas?!


Darico Nobar: Eu gosto dele...


Dona Carolina: Os pobre  coisas diferente dos rico. Os visinhos ricos de alvenaria dizem que nós somos protegidos pelos politicos. É engano. Os politicosaparece no quarto de despejo nas épocas eleitorais. O que o senhor Juscelino tem de aproveitável é a voz. Parece um sabiá e a sua voz é agradavel aos ouvidos. E agora, o sabiá está residindo na gaiola de ouro que é o Catete.


Darico Nobar: Isso é verdade, minha amiga. [Riu]. Preciso concordar.


Dona Carolina: Mas quando estou com fome e não tenho comida para dar pros meus filhos, quero é matar o Janio, enforcar o Ademar e queimar o Juscelino. As dificuldades corta o afeto do povo pelos politico. [Terminou de colocar os materiais no saco]. Tem mais alguma coisa que posso levar?


Darico Nobar: É tudo o que tenho hoje.


Dona Carolina: Tá certo. Muito obrigada, Seu Darico. Vou indo porque a única coisa certa desta vida é a morte. Até logo.


Darico Nobar: Até a próxima. Bom trabalho pra você.


[A senhora passou pela porta carregando o saco que pesava mais do que ela. O apresentador retomou a preparação das entrevistas do Talk Show Literário daquela noite].


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O Talk Show Literário é o programa de televisão fictício que entrevista as mais famosas personagens da literatura. Assim como ocorreu nas sete primeiras temporadas, neste oitavo ano da atração, os convidados de Darico Nobar, personagem criada por Ricardo Bonacorci, são os protagonistas dos clássicos brasileiros. Para acompanhar as demais entrevistas, clique em Talk Show Literário. Este é um quadro exclusivo do Blog Bonas Histórias.


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