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Bonas Histórias

O Bonas Histórias é o blog de literatura, cultura, arte e entretenimento criado por Ricardo Bonacorci em 2014. Com um conteúdo multicultural (literatura, cinema, música, dança, teatro, exposição, pintura e gastronomia), o Blog Bonas Histórias analisa as boas histórias contadas no Brasil e no mundo.

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Ricardo Bonacorci

Nascido na cidade de São Paulo, Ricardo Bonacorci tem 42 anos, mora em Buenos Aires e trabalha como publicitário, produtor de conteúdo, crítico literário e cultural, editor, escritor e pesquisador acadêmico. Ricardo é especialista em Administração de Empresas, pós-graduado em Gestão da Inovação, bacharel em Comunicação Social, licenciando em Letras-Português e pós-graduando em Formação de Escritores.  

  • Foto do escritorRicardo Bonacorci

Talk Show Literário: Gregório de Matos e Guerra

Na nova entrevista da sétima temporada do TSL, Darico Nobar conversa com o protagonista de Boca do Inferno, romance histórico de Ana Miranda que conquistou o Prêmio Jabuti de 1990.

Talk Show Literário: Entrevista com Gregório de Matos e Guerra, o protagonista do romance histórico Boca do Inferno, obra mais famosa da escritora Ana Miranda

[No canto de um estúdio de TV qualquer, no lado obscuro do mundo, alguém dedilha uma guitarra. No centro do palco e atrás da mesa do entrevistador, um senhor espera o fim da melodia. A cena é acompanhada pela plateia atenta e, por vezes, inculta].


Darico Nobar: No Talk Show Literário de hoje, receberemos ele, cuja difamação é o seu Deus. Loquaz, sedutor, um poeta afundado no colo das meretrizes. Graduado na escola da luxúria, que é a mais brava das universidades da vida. Herói nacional das trovas burlescas, tem o pecado como parte de sua natureza. Nas horas vagas, é tesoureiro e desembargador da Sé. E, nos últimos anos, acreditem se quiser, é protagonista de um romance histórico premiado. Com vocês, Doutor Gregório de Matos!


[Sob os aplausos do público, o homem de cabelos tonsurados entra no palco. Veste-se como um leigo, elegante e limpo, com um colete de pelica de âmbar. O suor escorre da testa. No rosto muito branco, os óculos fazem os olhos parecerem minúsculos].


Darico Nobar: É um enorme prazer receber um dos maiores poetas brasileiros...


Gregório de Matos: Valha-me Deus! [Suspira e balança a cabeça negativamente]. É mais difícil viver do que interpretar um papel social ou literário.


Darico Nobar: Tens teu lugar garantido na literatura!


Gregório de Matos: Que ingênuo tu és, Dom Darico [Coloca a mão sobre o ombro do velho apresentador]. Eles me odeiam pois sou um artista torto que caiu na mal falada boca do povo. Ser poeta é uma maldição da nossa língua e uma perdição em nosso país.


Darico Nobar: Não rascunhes teu talento para o deboche e para o riso franco.


Gregório de Matos: Talento?! Pois eu, de minha parte, vejo como uma habilidade que fui aprimorando em disputas verbais e que hoje me causa tanta dor de cabeça. Estou cansado de tentar ser Gongora y Argote. Minhas composições são mais profanas. Na verdade, temo a pena da inquisição.


Darico Nobar: Temes a Santa Inquisição?!


Gregório de Matos: O que me tira o sono é a inquisição do governador da Bahia.


Darico Nobar: Tenho ouvido notícias. Soube das disputas entre as facções dos Menezes e dos Ravasco. Como começou essa rixa?


Gregório de Matos: Os problemas políticos são o retrato da Capital do Brasil. O poder fica restrito a um pequeno grupo, quase sempre impune. A população desobediente quanto às normas de convivência está sujeita a castigos que vão desde a multa em dinheiro, exílio, galés, até marcação com ferro quente, espancamento, enforcamento e decapitação. Esta é a São Salvador da Bahia de Todos os Santos, meu amigo!

Darico Nobar: Por que assassinaram o alcaide-mor, Doutor Gregório?


Gregório de Matos: O Braço de Prata montou um forte ardil muito bem calçado em cima de três pés: ele próprio, com seus sequazes de sangue de carrapato, na Fazenda e na política. Os desembargadores Palma e Gois, que lhe dão o sustento no Tribunal, arrebanhando outros juízes venais. E, finalmente, o alcaide-mor, o falecido, que o dominava e assegurava sua supremacia na área municipal. Sem o alcaide, uma das três pernas da besta-fera, tudo começa a desmoronar.


Darico Nobar: Condenas o assassinato do alcaide?


Gregório de Matos: Não considero injustiça o que está feito.


Darico Nobar: Temes ser envolvido na conspiração?


Gregório de Matos: Em cada esquina há um olheiro que pesquisa, escuta, espreita, denuncia. Esse povo não tem eira nem beira.


Darico Nobar: Tuas sátiras ao Braço de Prata não te ajudam em nada a ficar em paz com o governador. Poderias nos contar uma ou duas delas, por favor?


Gregório de Matos: Vamos lá. [Pega as folhas do bolso e começa a leitura]. Xinga-te o negro, o branco te pragueja, e a ti nada te aleija. Por teu sensabor e pouca graça, és fábula do lar, riso da praça, até que a bala, que o braço te levara, venha uma segunda vez levar-te a cara. [Plateia e apresentador caem na risada]. Outra! Oh, não te espantes não, Dom Antônio, que se atreva a Bahia com oprimida voz, com plectro esguio, cantar ao mundo teu rico feitio, que já é velho em poetas elegantes o cair em torpezas semelhantes. O bigode fanado feito ao ferro está ali num desterro, e cada pelo em solidão tão rara, que parece ermitão da sua cara: da cabeleira, pois, afirmam cegos, que a mandaste comprar no arco dos Pregos. Olhos cagões que cagam sempre à porta, mas tem esta alma torta, principalmente vendo-lhe as vidraças no grosseiro caixilho das couraças: cangalhas que formaram, luminosas, sobre arcos de pipa duas ventosas. De muito cego, e não de malquerer a ninguém podes ver; tão cego és que não vês teu prejuízo, sendo cousa que se olha com juízo: tu és mais cego que eu que te sussurro, que, em te olhando, não vejo mais que um burro.


Darico Nobar: Ainda vás terminar homiziado, preso ou degredado!


Gregório de Matos: Não temo o Braço de Prata.


Darico Nobar: Braço de Prata é um nome pitoresco, né?


Gregório de Matos: Antônio de Souza de Menezes tem uma peça de prata que usa no lugar do braço direito, perdido numa batalha em Pernambuco, na armada do Conde da Torre, após uma refrega. O membro artificial é quem lhe empresta a odienta alcunha. Segundo dizem, o objeto foi feito pelo mais famoso ourives do Porto. Os dedos são perfeitos. Até mesmo as unhas e o desenho da pele nas articulações foram esculpidos.


Darico Nobar: Chega de falar de política! Falemos agora de assuntos mais leves. Tu sempre foste um namorador, Doutor Gregório?


Gregório de Matos: Sentia-me um idiota, fraco e delicado, já precisava de meus óculos, mas, com a graça de Deus, meu traseiro era seco e murcho, repugnante. Meu caralho passava o dia inteiro como uma espiga de milho, empinado. Eu só pensava nas negras. Assim, começou minha fama.


Darico Nobar: O senhor tem visitado Anica de Melo no lupanar?


Gregório de Matos: Anica de Melo é uma senhorita de grande compaixão pelos pobres. Ela estende os serviços de sua casa para gente de todas as condições. Apenas os escravos não podem entrar ali, pois afugentam os demais fregueses, ainda que as mais solicitadas damas do alcouce sejam as negras.


Darico Nobar: Um bando de mulheres corre atrás de ti. Não pensas em te casar?


Gregório de Matos: Sou viúvo e não encontrei nenhuma que me sirva. Mas sei que existe uma mulher para mim em algum lugar como uma princesa de meus sonhos.


Darico Nobar: Talvez num convento. Ou numa cozinha. Talvez a encontre no banho público. Ou mesmo numa procissão.


Gregório de Matos: Eu a amarei como Jaufré de Rudel amou a condessa de Trípoli, que jamais vira, e matou-se de amor por ela.


Darico Nobar: E se ela for feia?


Gregório de Matos: Amarei do mesmo jeito.


Darico Nobar: E se for... uma meretriz?


Gregório de Matos: Mesmo que cheire a cebola ou que não tenha um dente ou que não tenha um olho.


Darico Nobar: És um romântico. Soube do teu recente interesse por Maria Berço.


Gregório de Matos: É uma moça direita que está tendo problemas com a lei. Me sinto na obrigação de interceder ao seu favor já que sou um advogado.


Darico Nobar: É isso apenas? É tudo?


Gregório de Matos: Para mim é tudo. A justiça é o que me basta.


Darico Nobar: Fale-me um pouco da Salvador do século XVII.


Gregório de Matos: Esta cidade acabou-se, Dom Darico. Não é mais a Bahia. Antigamente, havia muito respeito. Hoje, até dentro da praça, nas barbas da infantaria, nas bochechas dos granachas, na frente da forca, fazem assaltos à vista. Salvador parece ser a imagem do Paraíso, mas é onde demônios aliciam almas para povoarem o Inferno. As portas das igrejas estão repletas de miseráveis e loucos. Com tanta riqueza interna, há grande pobreza e muita gente morrendo de fome no lado de fora.


Darico Nobar: A violência urbana e a pobreza são mesmo problemas graves.


Gregório de Matos: Não há grandes assaltantes na Bahia, mas quase todos furtam um pouquinho. Alguns salteadores de estradas, raros ladrões violentos ou cortadores de bolsas andam por ali. Porém uma desonestidade implícita e constante faz parte do procedimento das pessoas da nossa terra. Negros fugidos tornam as estradas e certas ruas mais perigosas. A cobiça do dinheiro ou a inveja dos ofícios, além disso, é um sentimento comum. Muitos querem ver seus patrícios abatidos de crédito, ou arrastados pela pobreza, ou mortos, numa luta destra e sinistra. Nem ao sagrado perdoam, fosse rei, bispo, sacerdote ou donzela metida em seu retiro. Todos levam seus golpes e todos sofrem com as intrigas cruéis e nefandas.


Darico Nobar: Mas deve haver algo de bom nesse lugar, né?


Gregório de Matos: A serpentina vai veloz pelas ladeiras. As ruas principais são largas e cobertas com pedregulhos. Há passeios públicos nos lugares mais notáveis e muitos jardins dentro ou fora da cidade, com árvores frutíferas, plantas medicinais, verduras para saladas e flores variadas. Muitas igrejas surgem no caminho, quase todas em pedra-lioz creme com veias cor-de-rosa. Os conventos são espaçosos e imponentes. Ah, esta notável cidade, a primeira Capital desaventurada de um povo néscio e sandeu. De dia, as missas se sucedem interminavelmente, às quais o povo comparece para expiar suas culpas e poder cometer novos pecados: concubinatos, incestos, jogatinas, nudez despudorada, bebedeiras, prevaricações, raptos, defloramentos, poligamia, roubos, desacatos, adultério, preguiça, paganismo, sodomia, lesbianismo, glutonaria.


Darico Nobar: Se pudesses pedir algo para Deus, o que seria?


Gregório de Matos: Não seria exatamente o céu, tampouco a riqueza material. Pediria para mim paz de espírito e para todos um mundo mais justo.


Darico Nobar: Te ouvindo falar, pensei que...


[Sem explicação, o sinal do programa é cortado. Após alguns segundos de chiado na tela, entra no ar o pronunciamento do governador da sede administrativa da colônia].


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O Talk Show Literário é o programa de televisão fictício que entrevista as mais famosas personagens da literatura. Assim como ocorreu nas seis primeiras temporadas, neste sétimo ano da atração, os convidados de Darico Nobar, personagem criada por Ricardo Bonacorci, são os protagonistas dos clássicos brasileiros. Para acompanhar as demais entrevistas, clique em Talk Show Literário. Este é um quadro exclusivo do Blog Bonas Histórias.


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