Na segunda metade da década de 1960, Rubem Fonseca já era considerado um dos grandes escritores nacionais de sua geração. Seus dois primeiros livros de contos, "Os Prisioneiros" (Agir), de 1963, e "A Coleira do Cão" (Nova Fronteira), de 1965, revolucionaram o gênero das narrativas curtas e foram recebidos com muita empolgação pela crítica literária da época. Fonseca não era visto apenas como um novato talentoso e sim como um autor peculiar que logo de cara conseguiu imprimir um estilo forte e único na literatura brasileira.
O sucesso retumbante de público e a conquista dos principais prêmios literários do país, contudo, só chegariam com a publicação de sua terceira coletânea de contos, "Lúcia McCartney" (Agir). Com este livro, Rubem Fonseca tornou-se um best-seller nacional e entrou definitivamente para o panteão dos grandes autores contemporâneos do Brasil. Exatamente por isso, iniciamos o Desafio Literário de setembro, a principal coluna do Bonas Histórias, com a análise desta obra.
Lançada originalmente com o nome de "Ficção e Não" (Olivé Editor), em 1967, esta coletânea de contos foi relançada, em 1969, com o título definitivo de "Lúcia McCartney". O nome é uma referência à narrativa mais marcante da obra. Com a nova edição, o livro tornou-se um dos mais vendidos nas livrarias brasileiras daquele ano e ganhou o prêmio Jabuti de 1970 na categoria Contos/Crônicas/Novelas (o primeiro dos seis prêmios Jabuti que Fonseca ganharia ao longo da carreira).
A crítica derreteu-se como nunca pelo autor mineiro. Sérgio Sant'Anna, autor de "Senhorita Simpson" (Companhia das Letras) e de "O Sobrevivente" (Edições Estória), declarou que "Lúcia McCartney" era a publicação brasileira mais importante dos últimos anos. Os demais críticos endossaram a opinião de Sant'Anna e enalteceram a força dramática e as inovações estéticas propostas por Rubem Fonseca.
"Lúcia McCartney" possui 19 contos distribuídos em 240 páginas. Há histórias curtíssimas, que ocupam apenas uma página (um parágrafo), e outras maiores, que se estendem por vinte, trinta páginas. A leitura deste livro é muito rápida, sendo possível fazê-la de uma tacada só. Foi o que fiz no domingo à tarde. Acho que demorei de duas horas a duas horas e meia para percorrer todas as páginas desta publicação.
A primeira história da obra é "O Desempenho". Nesta trama, acompanhamos o fluxo de pensamento de um lutador de luta livre no momento que está no ringue combatendo um adversário. O segundo conto é o famoso "Lúcia McCartney", a amalucada narração em primeira pessoa de uma prostituta da Zona Sul carioca. A protagonista é fã dos Beatles e gosta da vida boêmia que leva no Rio de Janeiro. Um dia, porém, a jovem de 18 anos se vê apaixonada por um cliente, um paulista bem mais velho do que ela. Aí, Lúcia entra em desespero.
Em seguida temos, "O Quarto Selo (Fragmento)", "O Caso de F.A." e "*** (Asteriscos)". Esses contos tratam, respectivamente, de um matador de aluguel contratado para assassinar o governador, de um cliente que procura o advogado/investigador Mandrake para resgatar uma jovem prostituta das garras da cafetina e da divulgação de uma peça teatral considerada inovadora pelo seu dramaturgo, mas que é odiada pelo público. Essas são as narrativas mais engraçadas do livro.
"Âmbas Gris" apresenta uma conversa em que se discute qual seria o animal mais inteligente do planeta. "Meu Interlocutor" trata de uma conversa entre dois homens que descamba para a violência física. "O Encontro e o Confronto" mostra dois amigos entediados em um programa com prostitutas. "Um Dia Na Vida" relata a rotina de um soldado do Exército. E "Corrente" descreve uma mensagem recebida pelos Correios que promete uma graça se for cumprida (para tal, é preciso enviar a mesma carta para mais um tanto de pessoas).
A segunda metade do livro começa com "A Matéria do Sonho". Neste conto, temos o relato em primeira pessoa de um homem com dificuldade para se relacionar sexualmente com as mulheres. Por isso, sua vida se transforma quando ele conhece a Gretchen. Depois, surgem "Correndo atrás de Godfrey", "Véspera" e "Zoom", que tratam, respectivamente, de um homem que procura Godfrey pelas ruas de Manhattan, de um rapaz bêbado perturbado com a chegada do Natal e de um hóspede de hotel que sofre de insônia.
Os últimos contos são "Os Inocentes", "J.R. Harder, Executive", "Os Músicos", "Manhã de Sol" e "Relato de Ocorrência em que Qualquer Semelhança Não é Mera Coincidência". Nestas tramas, temos: o corpo de uma mulher nua é trazido pelas ondas até a praia; o relato de um executivo norte-americano sobre a vida do Sr. Harder; o drama da viagem de navio feita por um músico; a prisão de um homem que roubou uma mulher na feira; e a reação dos moradores pobres de uma localidade diante do atropelamento de uma vaca na estrada.
O que torna "Lúcia McCartney" um livro tão espetacular é a união de um conteúdo forte com uma proposta estética inovadora. Ou seja, temos a junção de ótimos temas com uma forma peculiar de escrita que Rubem Fonseca foi lapidando com o tempo. O conteúdo destes contos é tipicamente fonsequiano: a violência familiar, a brutalidade coletiva e a pobreza de caráter das pessoas de todas as classes sociais (de executivos e ricos empresários a prostitutas, assassinos de aluguel, pobres e indivíduos marginalizados socialmente). Sérgio Sant'Anna chegou a afirmar no final da década de 1960: “Dificilmente se encontrará um contista com universo tão abrangente, (...) atento para todas as coisas do mundo (...) e com um olhar extremamente penetrante (para a realidade contemporânea)”.
Por sua vez, a forma da prosa de Rubem Fonseca possui uma linguagem seca, um ritmo narrativo acelerado, diálogos pouco convencionais, a mistura de idiomas (inserção de trechos em inglês, francês e latim, por exemplo) e muito humor. Mesmo diante de tantas tragédias e de cenas de violência gratuita, o leitor se pega rindo com o que lê. O humor neste caso é, obviamente, o humor negro. O autor expõe as fragilidades morais e psicológicas das personagens retratadas com um jeito leve e divertido.
Os contos que mais gostei foram "Lúcia McCartney", "O Caso de F.A.", "O Quarto Selo (Fragmento)", "*** (Asteriscos)", "Um Dia Na Vida" e "Relato de Ocorrência em que Qualquer Semelhança Não é Mera Coincidência".
Em "Lúcia McCartney", vemos a futilidade e as bizarrices de uma jovem prostituta que ironicamente se apaixona pelo cliente, um paulista rico que a despreza. Ou seja, temos a inversão dos papéis típicos (normalmente é o cliente que se apaixona pela meretriz mais nova). Além disso, é interessante notar algumas inovações estéticas propostas por Rubem Fonseca no texto, algo que seria feito em maior escala por Ignácio Loyola Brandão, dez anos mais tarde, em "Zero" (Global). Os fãs dos Beatles também irão notar certa intertextualidade musical neste conto: o nome de Lúcia é referência à “Lucy in the Sky With Diamonds”, um dos maiores hits da banda inglesa.
Em "O Caso de F.A.", temos a apresentação de um dos protagonistas mais famosos da literatura de Rubem Fonseca, o advogado mulherengo Mandrake. Mandrake seria mais tarde a personagem principal de algumas narrativas longas do escritor mineiro: do romance "A Grande Arte" (Círculo do Livro), de 1983, da novela "E do Meio do Mundo Prostituto Só Amores Guardei ao Meu Charuto" (Companhia das Letras), de 1997, e do romance "Mandrake a Bíblia e a Bengala" (Companhia das Letras), de 2005. Curioso notar que já na coletânea de contos de 1967/1969, a constituição psicológica e as características morais de Mandrake já estavam totalmente consolidadas.
Em "O Quarto Selo (Fragmento)", temos uma típica aventura policial que poderia muito bem ter se transformado em um romance (se o escritor assim quisesse). Afinal, o herói desta trama é o típico anti-herói que mais tarde Rubem Fonseca usaria e a abusaria em suas narrativas longas.
"*** (Asteriscos)" e "Um Dia Na Vida" são críticas bem humoradas à realidade nacional. Ambas tiveram forte componente autobiográfico. "*** (Asteriscos)" fala de um artista supostamente inovador, mas que é na verdade ruim. Rubem Fonseca conviveu com muitos dramaturgos. E "Um Dia Na Vida" descreve as situações corriqueiras em um quartel do Exército sob o ponto de vista de um soldado. O soldado é o próprio autor, que passou pela mesmíssima experiência, conforme narrado na novela autobiográfica "José" (Companhia das Letras), de 2011.
E, por fim, temos "Relato de Ocorrência em que Qualquer Semelhança Não é Mera Coincidência", que traz uma forte crítica social à fome e à miséria no Brasil. A compreensão das atitudes das pessoas só pode ser explicada pelo conhecimento de suas situações econômicas e pela carência de alimentos em suas mesas.
O sucesso de "Lúcia McCartney" foi tão grande no final dos anos 1960 e no início da década de 1970 que a história da prostituta que adorava os Beatles virou peça de teatro, filme, programa de TV e minissérie televisiva nos anos seguintes. A adaptação teatral de 1987 teve a atriz Maria Padilha no papel principal. Já na telona, quem interpretou a jovem prostituta foi a atriz Adriana Prieto. O filme "Lúcia McCartney - Uma Garota de Programa", dirigido por David Neves e lançado em 1971, uniu a história do conto homônimo com a de "O Caso de F.A.". A Rede Globo exibiu, em 1994, uma versão de teleteatro desta história em seu programa chamado "Caso Especial". Mais recentemente, uma minissérie de TV foi criada a partir do conto de Rubem Fonseca. O GNT, emissora de TV a cabo do Grupo Globosat, exibiu a minissérie baseada na história de Lúcia McCartney entre 2016 e 2017. Curiosamente, o roteiro da série foi escrito por José Henrique Fonseca, o filho do escritor que é cineasta.
Admito ter gostado bastante deste livro. Para mim, "Lúcia McCartney" continua sendo uma obra moderna tanto em sua temática quanto em sua estética. O difícil é decidir se Rubem Fonseca é melhor como contista ou como romancista. Talvez essa polêmica jamais tenha fim...
Na quarta-feira da semana que vem, dia 9, retorno ao Bonas Histórias com a análise de mais um livro de Rubem Fonseca do Desafio Literário de setembro. O próximo post será sobre o romance "O Caso Morel" (Biblioteca Folha), a estreia de Rubem Fonseca nas narrativas longas. Não perca as próximas análises do Desafio Literário deste mês.
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